domingo, 25 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15289: Meu pai, meu velho, meu camarada (47): A minha mãe terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 21 de Outubro de 2015:

No quarto dos meus pais, lembro-me desde criança, da fotografia deste jovem soldado. A minha mãe por não ter outra fotografia dos bons tempos de namorados, em que ambos trocavam olhares com promessas de beijos e palavras cheias de significado e de futuro, tirou esta fotografia da caderneta militar deste soldado garboso e colocou-a num lugar de destaque no quarto do casal.

Nesses tempos antigos do século XX, até à década de cinquenta, em que todos os militares tinham direito a uma farda número um, com dólman e quepe, semelhante aos dos oficiais superiores, em lugar do quico e do blusão verde dos nossos tempos, a minha mãe, costureira e esteta amadora, terá adorado esta fotografia do seu namorado, pelo aprumo e elegância que já lhe reconhecia, realçados pela distinção da farda que lhe assentava tão bem, que se lhe assemelhava a um general conquistador.

Emídio Baptista, meu pai

A fotografia dos últimos trinta anos ou talvez mais, já não será a original, pois a minha irmã mais nova, que sempre gostou de recordações da família, mandou fazer uma cópia e guardou para si uma delas.

À minha mãe, esse retrato de militar, devia trazer à memória recordações gratas da sua juventude e do seu namorado, tão discreto mas que sabia tão bem dizer-lhe as palavras apropriadas, que acompanhadas por um sorriso afável, lhe adoçavam os dias, a faziam sonhar e lhe prometiam um futuro radiante.

Apesar de todas as contrariedades e dissabores próprios do casamento, a minha mãe continuou a confiar para sempre nesse homem, que ela conheceu menino, adolescente e jovem.

Ele morava tão perto da sua casa, a menos de 100 metros. Aos 19 anos, por morte do pai dele, por ser o mais velho de 4 irmãos, teve que tomar conta da casa de lavoura e de dar todo o apoio possível à sua mãe viúva. Nesses anos e em anos anteriores teve tempo e oportunidade de avaliar esse vizinho, da idade dela, que passava à sua porta com as vacas e vitelos, com o carro puxado pelas vacas, vazio, para trazer cortiça, trigo, ou lenha, ou outros produtos agrícolas, ou com as charruas e os arados para lavrar as hortas, as oliveiras ou os campos de trigo e centeio. Muitas vezes se terão cumprimentado conforme os usos e costumes da terra: Bom dia Maria! Bom dia Emídio! E pela urgência das lides quotidianas ou pela timidez de um ou do outro, a troca de palavras terá ficado por aí.

Afinal, apesar do silêncio, da reserva e da dureza da vida após o casamento, o seu homem não era pior do que todos, mesmo irmãos ou cunhados. O seu homem era trabalhador e responsável e nunca faltaria com o indispensável às necessidades da família que ia aumentando ano após ano. Nessa sociedade patriarcal todos tinham essa máscara ou marca de rudeza, que tinham herdado dos pais e avós que lhe dava autoridade, até demasiada, mas que lhe iria também exigir muitas responsabilidades. O sustento da mulher de dos filhos ficaria para sempre a seu cargo, bem como todos os trabalhos agrícolas. A mulher teria o encargo de criar os filhos e de ajudar em alguns trabalhos agrícolas menores, se possível, como por exemplo alguma ajuda no tratamento da horta.

A minha mãe, uma mulher inteligente, acreditava na escolha da sua vida, pelo conhecimento e enamoramento que terá crescido dentro dela desde criança, ao longo dos anos, pela forma gentil com lhe terá dito que gostava dela e pelo seu sorriso simpático de garoto brincalhão ou trocista. Na fotografia desse soldado, a melhor representação do seu amor juvenil, que imaginou para a vida inteira, a minha mãe apostou todo o seu projecto de vida.

Apesar dos seus silêncios, do seu feitio reservado que não lhe conhecia bem dos tempos de namorado, os filhos iam nascendo para alegria dela, cada qual o mais belo (os filhos são sempre tão lindos), para compensar desgostos passageiros. Ao seu marido autoritário ela sabia que o sabia vergar e moldar aos seus gostos quando fosse necessário. Recordo-me bem quando plantávamos a horta, com feijões, tomates, cebolas, batatas, pepinos, melões, etc., as guerras que a minha mãe tinha com o meu pai, por ele não lhe querer garantir um bom lote de terreno para plantar as suas flores: os crisântemos, as sécias e as zínias. A nossa mãe ganhava sempre.

Quando os filhos começaram a crescer, depois de fazerem a escola primária, a minha mãe lutou como uma leoa para que a todos fosse garantida toda a continuação da educação escolar possível.

O nosso pai já a pensar que com a ajuda dos quatro filhos varões podia aumentar bastante a riqueza da família teve que se curvar perante as exigências da mulher, que não sendo autoritária, se sabia impor em defesa das suas flores e dos seus filhos, os bens que mais amava.

A vida deste militar, garboso e aprumado, com o mesmo porte que conservaria para o resto da sua vida civil, continua a ser para mim um enigma, já que ele nunca falava do seu passado, civil ou militar, nem das suas recordações da meninice ou da juventude. Sei somente algumas coisas que a minha mãe ou outros contaram.

Consta-se que era da arma de Cavalaria e que terá tido uma repreensão por um dia ter vergastado um cavalo mais rebelde. Terá passado por Mafra em 1939, por onde eu passei 30 anos mais tarde. Sei que escrevia cartas muito meigas à namorada que a minha irmã mais nova, já depois da sua morte, morreu cedo, aos 59 nos, encontrou numa arca de madeira. no meio de lençóis de linho.

Cartas que tinham sempre no cabeçalho duas palavras: Minha Maria. A minha irmã, sempre a mais nova, teve tempo de ler duas cartas porque entretanto foi encontrada pela nossa mãe, nesse delito de inconfidência, as cartas, com os segredos desses namorados, terão sido queimadas ou bem escondidas, o que se sabe é que não mais foram encontradas.

Esta é a minha homenagem singela, que se me permitem os meus camaradas, presto a estes dois guerreiros que lutaram até ao limite das suas forças, pelo futuro dos filhos, e que a todos deixaram uma herança tão grande em valores humanos: honra, honestidade verticalidade, companheirismo, dedicação e solidariedade .

Um abraço.
Francisco Baptista
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OBS: 
- Foto editada por CV
- Título do poste da responsabilidade do editor 
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14648: Meu pai, meu velho, meu camarada (46): O meu avô, cruz de guerra de 1ª classe, esteve na I Grande Grande, nas margens do rio Rovuma, norte de Moçambique.... Quando regressou, trouxe com ele um "filho da guerra", que seria mais tarde o meu pai, que eu sempre adorei e adoro (Jaime Machado, ex-alf mil cav, Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70; membro do Lions Clube Lusofonia)

9 comentários:

Luís Graça disse...

Francisco, é uma homenagem muito linda que fazes não só ao "teu pai, teu velho e teu camarada!" mas também à tua querida mãe, à tua família, às tuas raízes... Li com emoção o teu texto. Já ontem tinha pensado na tua sempre esquecida mas indomável província natal, Trás-os-Montes, ao assistir à estreia (mundial) do filme de João Canijo e Anabela Moreira, "Portugal, um dia de cada vez" (Portugal, 2015, 155')o DocLisboa 2015...

Sinopse: "Uma viagem que começa no extremo Norte de Portugal e que, por terras de Trás-os-Montes e do Alto Douro, visita uma dúzia de aldeias e lugares. As casas, os cafés, as ruas e as pessoas que ainda as habitam. É o retrato do dia-a-dia de algumas dessas pessoas, cada vez menos, cada vez mais idosas. E sós. Gente que leva a sua vida, um dia de cada vez."

http://doclisboa.org/2015/filmes/portugal-um-dia-de-cada-vez/

O filme vai tem estreia marcada, no circuito comercial, em 5/11/2015, conforme se pode ler no sítio da produtora, a Midas Filme:


PORTUGAL - UM DIA DE CADA VEZ
JOÃO CANIJO Estreia: 05-11-2015

(...)

Nota de Intenções:

Tudo se passa numa terra interior de onde as pessoas fugiram e onde os restos do sonho de desenvolvimento se tornaram sinais do absurdo. «É a vida e a vida é triste», dizem com resignação os sobreviventes do Portugal interior. Sobrevivem na condição de viver um dia de cada vez, resignados à fatalidade do destino e a recordar um passado que podia ter sido melhor. A desilusão com o destino é enganada com a culpa da traição dos governantes e com a paixão pelos enredos da televisão. No vazio das horas iguais a tantas outras a existência passa e a vida gasta-se a tentar escapar ao desespero. É um filme de retratos de um país triste que fala de uma particular forma de esperança, a que sonha só com a felicidade de se cumprir a vida. Vivemos um dia de cada vez.

João Canijo e Anabela Moreira

http://www.midas-filmes.pt/estreias/proximas_estreias/portugal-um-dia-de-cada-vez

Amado, eu disse...

Diz o ditado que por trás de um grande homem está uma grande mulher. Esta estória homenagem que fazes aos teus pais representa isso mesmo. Muitos parabéns pelo teu escrito. Um grande abraço para ti

Amado, eu disse...

Quem fez o comentário foi o pai da Vanessa . Juvenal amado

Luís Graça disse...

Um beijinho para a Vanessa e o xicoração para o pai que, imagino, deve ter vindo este fim de semana à capital... LG

Luís Graça disse...

Francisco, as nossas "raparigas" sempre adoraram fardas (e, de preferências, brancas,c om espadas à cinta!)... Vá se lá saber porquê ?!...Tenho uma explicação: somos animais primatas, e compete aos machos seduzir as fêmeas... Os "adornos" sempre ajudaram os machos a tornar-se (ou parecer) mais sedutores, mais competentes como potenciais progenitores...

E quando a gente tinha 20 anos, também gostava de "arrear bem"... Até eu caí na asneira de comprar um blusão de cabedal (!) no Casão Militar para tirar uma "chapa" à maneira... Deve ter custado uma pequena fortuna... Mas, enfim, era "patacão da guerra"... Levei-o para Guiné, nunca o usei, com ele maldito calor e humidade!...

Anónimo disse...

Parabéns pelo teu escrito. Um prazer lê-lo, Caro Francisco.
Abraço do
V Briote

Anónimo disse...

Caro Francisco:
Está ali, na torrente das tuas palavras, bem caracterizada a organização familiar e a relação afectiva e funcional de um verdadeiro casal das nossas terras do interior : a interdependência dos dois membros do casal, cada um com o seu papel, num jogo hábil por parte da mulher sempre que precisa de vencer o machismo institucionalizado. A descrição é perfeita.

Um abração Carvalho de Mampatá

Anónimo disse...




Amigos e camaradas:

Muito obrigado a todos, pelos simpáticos comentários, Ao Luís, sempre tão presente a dar apoio a todos, à Vanessa e ao pai Juvenal Amado, ao Virgínio Briote, guerreiro e escritor de campanhas na Guiné, ao Carvalho de Mampatá, esse amigo que mora em Medas, tão próximo do Porto e sempre tão próximo da terra onde nasci, lá longe. O meu pai e a minha mãe se fossem vivos teriam gostado de vos ler. À laia de agradecimento envio-vos dentro dum certo contexto um provérbio de Brunhoso, a minha aldeia, do Nordeste Transmontano, que à partida eu sei que pelo menos o Luís vai apreciar. A pequena estória é a seguinte:
Soube ontem que uma prima minha, estava doente com alguma gravidade e hospitalizada. Hoje à tarde telefonei-lhe, disse-me que tinha tido uma pancreatite mas que já lhe tinham dado alta e se estava a preparar para sair do hospital. A propósito da doença eu disse-lhe que a ela todos os males lhe aconteciam. Ela que vai sofrendo e resistindo a todas os males sempre com bom humor, que herdou do pai e da mãe, disse-me o seguinte:
Chico, a minha mãe (uma senhora, digo eu, com 88 anos, muito lúcida que tem resistido também a muitas doenças) disse-me, quando me aconteceu isto: Minha filha, tu és como a vaca do pobre, que quando vai para parir amove (significado, aborta).
Um abraço. Francisco Baptista

JD disse...

Caro Francisco,
Depois de ter lido os comentários anteriores, nada me resta para acrescentar. Quero apenas registar que aprecio estas estórias do antigamente, que as escreves com paixão naif, o que valoriza bastante os teus conteúdos.
Mas ainda falta aquela apreciação do chefe (não é do Luís Graça) que o Vinhal te pediu.
Um grande abraço
JD