Quadragésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 21 de Outubro de 2015.
...isto é a Flórida!
As rajadas de vento passavam a 31 milhas por hora,
naquela água revoltada do mar, podia-se ver, talvez a
mais de um quarto de milha de distância da costa,
dezenas de ondas seguidas, cobrindo-se umas às outras,
pintadas de branco, que não era bem branco,
pois havia alguns sinais, aqui e ali, mais escuros, que
deviam de ser troncos de árvores, restos de costas
tropicais que vinham dar à praia, fugindo da tempestade,
da fúria daquele pequeno furacão, que devastava a areia,
destruindo as dunas, onde dias antes era um lugar
paradisíaco.
Este foi o cenário que encontrámos, quando,
entusiasmados, na esperança de alguma aventura,
viemos passar uns dias fora da cidade, fora do ambiente quotidiano, do conforto daquelas coisas que existem na
nossa casa, procurando viver em contacto com a
natureza, sem computadores, sem rádio ou televisão, sem
ouvir e tomar conhecimento pelo que vai no mundo, pois
no “six o’clock news”, que é o noticiário das seis, é só
desgraças, são só notícias que excitam as pessoas, se for
uma boa notícia, não tem interesse, tem que ser uma
catástrofe, para aparecer a todas as horas ao abrir dos
noticiários, assim têm maior audiência, faz deles os
melhores.
Mas continuando, viemos
cozinhar as nossas refeições numa fogueira, com lenha
de cedro, perfumada com aquele cheiro que não existe à
venda em nenhuma casa de perfumes, tomando banho na
água do mar, ou em qualquer riacho, caminhando por
trilhos selvagens, às vezes tropeçando, caindo aqui,
levantando-se ali, dormindo no pequeno espaço da nossa
caravana, falando e convivendo com novas pessoas,
vindas de outros estados, também aventureiras, que
gostam de conversar, que contam anedotas e vivências de
aventura pela noite dentro, em volta da tal fogueira, onde
o café e alguma cerveja, dão alguma cor àqueles rostos
antigos, de pessoas da nossa idade.
Um casal que acampou num espaço ao nosso lado,
portanto nossos vizinhos, oriundos do estado de Montana,
falavam entre si, dizendo:
- Meu Deus, isto é a Florida? E
viemos nós de tão longe para ver o mar, a minha avó, que
nunca viu a cor do mar, chamaria a isto uma planície de
neve a querer derreter-se, que saudades da minha
Montana!
Quando o vento vinha do norte, a caravana balançava,
havia pequenos ramos e folhas no ar. Para caminhar,
colocava-se a mão sobre a testa, cobrindo os olhos,
protegendo-os, era a natureza revoltada, que
encontrámos nos primeiros dois dias da nossa fuga para o
passado mas, como diz o ditado, “depois da tempestade
bem a bonança”, agora o mar está calmo, a corrente é
serena, pode-se mesmo pescar, apanhar sol, entrar nas
pequenas ondas que estendem a água suavemente pelo
grande areal plano, que existe, antes de tocar nas dunas,
onde a vegetação rasteira tenta sobreviver, acolhendo
algumas palmeiras que começam a tomar o sentido
vertical, pois algumas vergaram no sentido sul, com o
forte vento que vinha do norte. Limpámos todo o local à
volta da nossa nova “vivenda”, abrimos o tolde da nossa
caravana, passamos algumas horas lendo, admirando a
natureza, meditando, criando em nós algum sossego de
espírito, tentando limpar a nossa mente, já antiga e
baralhada, deixando de pensar por alguns momentos em
emboscadas, ataques ao aquartelamento, sobretudo
naqueles irmãos mortos em plena juventude,
embrulhados nos restos do camuflado, a cheirar a medo e
pólvora, sujos de lama e sangue, daquela maldita guerra
que lá vivemos, na então nossa Guiné.
Tony Borie, Outubro 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15263: Libertando-me (Tony Borié) (39): Tal e qual lá na Guiné
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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