sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15304: Notas de leitura (771): “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
O narcotráfico entrou no imaginário da literatura de aventuras. Um guineense, Manel da Costa, escreveu um livro bem curioso, a que aqui já se fez referência elogiosa. O próprio Gérard Villiers se sentiu entusiasmado pelo narcotráfico e Buba N'Tchuto, escreveu o escaldante Féroce Guinée, bem elaborado para o género literário em causa.
Este livro de Estevão Sousa tem escrita ágil mas não é convincente, lembra uma daquelas comédias de Gervásio Lobato ou Marcelino Mesquita em que tudo está bem quando tudo acaba bem, depois de muitas peripécias e jogos de enganos. E dá que pensar como a Guiné-Bissau continua a interessar pelas piores razões.

Um abraço do
Mário


Tráfico no Rio Geba, por Estevão Sousa

Beja Santos

O narcotráfico na Guiné-Bissau tem sido matéria de livros em vários idiomas. Surge agora “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014. O autor avança com os seguintes dados curriculares: estudou em Tomar e aos 15 anos foi com os pais para Angola; fez um curso de Geologia e Mecânica dos Solos tendo ingressado na Junta Autónoma das Estradas de Angola; já em Portugal, fez um curso de Gestão e Administração de Empresas, exerceu funções de chefe de escritório, gerente comercial e diretor administrativo em duas empresas da cidade de Coimbra.

Trata-se de um romance de aventuras em que o narcotraficante encontra a redenção conjugando os esforços com uma população que vive perto de Bafatá para destruir o império de um poderoso barão da droga. Redigido numa prosa ágil, muitas vezes a descambar para a facilidade, em que os personagens nem sempre aparecem desenhados com plausibilidade, temos a história da família Mascarenhas que se pavoneia entre a Quinta da Marinha e Albufeira, casal e dois filhos; o menino é estroina e faz boas noitadas na roleta do Estoril; Dona Anunciação, a mulher, espatifa o tempo e o dinheiro em lojas de roupa e chás a meio da tarde; a menina Leopoldina queria casar rica, quanto aos estudos, tinha-se ficado pelo primeiro ano da faculdade numa universidade privada. A proveniência do dinheiro do clã era um grande mistério. E subitamente este ramerrão de um doce nada fazer na absoluta impunidade desmancha-se. O Mascarenhas comparece a uma reunião entre Albufeira e Olhos de Água e é intimidado a acompanhar dois sujeitos patibulares até ao aeroporto, metido num jato rumo à Guiné-Bissau.

Já nos trópicos, o Mascarenhas, atónito, percebe que vai à presença de Mohamed Jacob, o barão da droga. Num sketch intermédio, apercebemo-nos que a vida dos outros Mascarenhas está no plano inclinado, não há acesso a dinheiro, o menino Toninho está cada vez mais encalacrado com dívidas e a menina Leopoldina é multada sistematicamente por excesso de velocidade e já pensa em pôr os seus serviços como acompanhante. E estamos nos arredores de Bafatá, o barão da droga quer que o Mascarenhas lhe pague o que lhe deve, este revela total surpresa, toda a mercadoria fora vendida em Amesterdão a Godofredo Van Der Gaag, era a este que competia enviar-lhe o dinheiro. O barão entra em fúria, manda os seus capangas aplicarem um duro corretivo ao que ele julga ser um credor em falta. Era neste local que Mohamed Jacob armazenava a coca que recebia da Colômbia, do Peru e da Bolívia, alguma vinda através do Senegal, mas a maioria subia o rio Geba até Bafatá. Entrementes, o Mascarenhas safava-se da prisão e consegue escapulir-se para o mato, andou por ali a correr desenfreadamente entre os cajueiros, encontra uma moça jeitosa, Ignis, explica-lhe o sucedido, a rapariga leva-o até à tabanca onde os narcotraficantes são odiados, o Mascarenhas acompanhado por Ignis e o irmão vão até à ilha de Orango, nos Bijagós.

Na Quinta da Marinha, instalara-se o caos total, o Toninho, para ganhar uns cobres presta-se a ser transportador de droga, e como por pura casualidade vai até Bafatá, o negócio é cocaína. A menina Leopoldina começa o seu mister de acompanhante no hotel Ritz como acompanhante de Godofredo, entretanto chega Mohamed Jacob e vão todos até ao Bairro Alto. O barão da droga descobre que ela é filha do Mascarenhas e começa uma aventura de perseguição em que um táxi acaba por ser todo esburacado mas a Leopoldina chega a casa sã e salva. O casamento dos Mascarenhas já era uma causa perdida e portanto faz todo o sentido o Mascarenhas apaixonar-se pela Ignis que fazem amor permanentemente e vão até ao sétimo céu. Dona Anunciação não perde tempo e oferece o seu coração a um funcionário da Judiciária reformado e viúvo.

Chegou a hora do ajuste de contas, Mascarenhas vai até Amesterdão enfia um balázio no joelho de Godofredo e regressa a Bafatá para a grande operação de destruir o poderoso bunker do barão da droga. O Toninho continua a trabalhar como pombo-correio e acerta com um boliviano o transporte de uma carga colossal de cocaína para Bafatá. Godofredo, com a perna engessada e com duas canadianas, resolve ir a Cascais falar com o Castilho, o patrão do Toninho, andam surpreendidos com o silêncio da barão da droga, decidem voar até Bafatá. À hora aprazada, dá-se o assalto à fortaleza e armazém de droga, não fica pedra sobre pedra, dentro de uma caixa forte descobre-se toneladas de dinheiro. A polícia guineense vem diligentemente prender os narcotraficantes.

Como manda a moralidade destes romances de aventuras, há gente maldosa que se vai redimir e há energúmenos que vão ser severamente punidos. O Mascarenhas e o Toninho vão viver os seus idílios nos Bijagós e até fazerem investimentos em Bubaque. Dona Anunciação informa o senhor Cintra que o Mascarenhas lhe dera o divórcio, e pulam os dois de contentes. A menina Leopoldina foi a Milão com o namorado, que é industrial de calçado, está a fazer-se uma rapariga séria. Parece um romance de Gervásio Lobato. O Mascarenhas até pode dizer ao antigo inspetor da Judiciária que se regenerou: “Meu caro senhor Cintra, com certeza que ouviu cobras e lagartos a meu respeito, mas posso-lhe garantir que a maior parte das coisas que lhe contarão não correspondem à verdade e a prova do que lhe estou a dizer é o facto de ter contribuído, em larga escala, para desmantelar a rede de narcotráfico do rio Geba, na Guiné-Bissau”. O Cintra replica: “Meu amigo, a partir de agora subiu muitos degraus no meu conceito. Sim, senhor. E quem é que nunca errou? O que é preciso é emendar os erros, como o senhor fez. Parabéns”. Todos cumpriram: a polícia guineense meteu aquela escumalha no chilindró; o Mascarenhas e o Toninho arrependeram-se e mudaram de vida, D. Anunciação anda a curtir o seu amor, a menina Leopoldina descobriu a segurança com um industrial do calçado. E nunca mais se falará nesse hediondo tráfico de cocaína pelo rio Geba acima.

Como um vinho frisante, o livro de Estevão Sousa lê-se em toda a sua leveza e digere-se bem. A capa do livro é muito impressiva, sugestiva.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15292: Notas de leitura (770): “As Naus", por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Mário, tu sempre "adoraste" este tipo de literatura (policial, suspense, terror, ação...). Não faz o meu género, o que não me impede de te agradecer a tua generosa nota de leitura... Leste, mais uma vez, por mim e por muitos de nós...

É engraçado que a África, em geral, e a Guiné, em particular, continua no nosso "imaginário", no imaginário dos portugueses... Agora que regressámos às fronteiras do início do séc. XV (o reino de Portugal e dos Algarves, mais as Berlengas, a Madeira e os Açores...).

Acho piada à ideia peregrina desta obra de ficção, colocando o rio Geba e Bafatá no centro do narcotráfico que passa pela Guiné-Bissau... Não me parece nada verosímnil a história; Bafatá é um ponto perdido no leste, o Gabu há muito que lhe leva a dianteira: lá, mais próximo da fronteira com a Guiné-Conacri, há gente, há vida, há fulas, há "djilas", há comércio, há bancos e até multibancos!... Por outro lado, o rio Geba Estreito deixou de ser há muito navegável, o que é uma tragédia para o leste e a sua economia.. Resta a estrada Bissau-Gabu, que se faz em duas horas (uma hora até Bambadinca, na esgalha, atropelando cabritos, crianças e velhos!)...

Fico contente se alguns dos nossos escritores, de 2ª e de 3ª, se alimentam também do nosso blogue!... Já li coisas mais hilariantes; Francisco José Viegas ("Longe de Manaus", por exemplo(... Esta literatura "ligth" tem a vantagem de manter acesa a chama da nossa "paixão" secular por aquelas terras e gentes... Deve haver algum sortilégio!...

Um abração... LG