segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15292: Notas de leitura (770): “As Naus", por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2014:

Queridos amigos,
António Lobo Antunes é um escritor recebido com aclamação ou pronto repúdio, não dá margem à indiferença. Lá para o termo dos anos 1980, dispunha de nome feito, era conhecido internacionalmente, publicou um romance um tanto à revelia da sequência de obras anteriores, “As Naus”, um achado experimental entre o passado e o presente, uma atmosfera das grandezas pretéritas e do caos que foi a chegada dos retornados, uma virulenta história trágico-marítima, em que se regressava de avião ou por nau.
É neste embrechado de histórias e historietas que um casal regressa de Bissau, na hora da independência e é metido temporariamente no Hotel Ritz.
Para ler e meditar, ou, quem sabe, querer ler o romance por inteiro. Sou suspeito, pois sou incondicional deste turbilhão da literatura.

Um abraço do
Mário


A Guiné num livro de António Lobo Antunes

Beja Santos

Médico em Angola, António Lobo Antunes estreou-se na literatura com duas obras associadas à sua experiência militar, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, em 1979. No fim dos anos 1980, o escritor, já então consagrado pelas singularidades da arquitetura da sua escrita, publica “As Naus” cujo tema eram os retornados.

O livro foi prontamente incensado e escarnecido, uns consideravam que o escritor obtivera um achado misturando o passado e o presente, gente na torna-viagem com nomes como Camões, Gil Eanes, Francisco Xavier, Diogo Cão, entre outros. Caravelas e aviões, os Jerónimos do passado entendido como glorioso e pensões mal-afamadas entre o Paço da Rainha e o Intendente. É um périplo pelo Império, e aquele regresso caótico que se seguiu à descolonização, tudo se passa em Lixboa, a capital do reyno, no termo desse regresso reabilitam-se os mitos litúrgicos de sempre como o sebastianismo, é esse o final belíssimo do romance:
“Amparados uns aos outros para partilharem em conjunto do aparecimento do rei a cavalo, com cicatrizes de cutiladas nos ombros e no ventre, sentaram-se nos barcos de casco ao léu, no convés de varanda das traineiras, nos flutuadores de cortiça e nos caixotes esquecidos, de que se desprendiam esquecidos odores de suicida dado às dunas pela chibata das correntes. Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam de trazer-nos, de mistura com os restos de feira acabada das vagas e os guinchos de borrego da água no sifão das rochas, um adolescente loiro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger ao pescoço, e tudo o que pudemos observar, enquanto apertávamos os termómetros nos sovacos e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital, foi o oceano vazio até à linha do horizonte coberta a espaços de uma crosta de vinagreiras, famílias de veraneantes tardios acampados na praia, e os mestres de pesca, de calças enroladas que olhavam sem entender o nosso bando de gaivotas em roupão, empoleiradas a tossir nos lemes e nas hélices, aguardando, ao som de uma flauta que as vísceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível”.

Pois bem, entre Índias e Angolas, há gente que regressa da Guiné, de onde vieram os primeiros escravos, a Guiné, diz o autor que se limitava então a um amontoado de casa no estuário do rio, muitas delas de madeira e de capim. Há para ali guerra, que se ouve em Bissau, e vamos então a algumas dessas referências guineenses avançadas por Lobo Antunes:
“A violência das explosões dos morteiros, das bazucas e dos canhões sem recuo estremecia as lagunas de Bissau, sobrepondo-se aos relâmpagos de Março (…) Uma noite escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções desconhecidas, e no dia imediato, a tropa parecia menos crispada, os bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. Convocaram-nos para uma reunião no Cine-Theatro das zarzuelas estafadas e das récitas dos bombeiros, onde um coronel de artilharia, com uma tripla fita de condecorações na clavícula, subiu ao palco em cujo fosso a orquestra desafinou entusiasticamente o hino, e lhes ofereceu de mão beijada, numa generosidade inexplicável, a possibilidade gratuita de tornar a Portugal (…) Batalhões completos, convulsos de amibas e lombrigas, com os furriéis a cabecearem de doença do sono logo após a charanga e a bandeira, alçavam-se para navios ferrugentos carregando as suas armas e os seus mortos (…) As naus aportavam vazias e partiam cheias, convexas de gente e de caixotes. Bissau despovoava-se de brancos e o início da estação das chuvas encontro-os sem saber o que fazer numa terra de selvagens triunfais que estilhaçavam à metralhadora os postigos das fachadas (…) 
Um amigo da fábrica de sonetos gongóricos, chamado Jerónimo Baía, descreveu-lhes os acontecimentos medonhos, sodomias, envenenamentos, rimas cruzadas, récuas de prisioneiros de algemas enxotados à coronhada para o mato. E quando o chá acabou e mergulhavam diariamente na água fervida o mesmo saquito sem sabor dependurado na extremidade de uma guita, a esposa, de costas para ele, anunciou-lhe na serena voz habitual com que enterrara, trinta e oito anos antes, a filha criança, já não pertenço aqui (…) Nessa mesma tarde subiu aos damascos rotos e óleos de defensores do reyno do palácio do governo, esperou numa enorme cadeira de dignatário, no meio de dezenas de brancos e mulatos, que lhe pronunciassem o nome e um funcionário de jaqueta o recebesse na cave do edifício e pediu dois lugares de porão para Lixboa (…) Se os brancos diminuíam, os pretos, em compensação, aumentavam nas casas atoladas nos caniços dos rios. Ocupavam as casernas que a tropa deixara, aliviada do peso da guerra, e enfeitadas de frases bélicas; acomodavam-se nos bancos de jardim, indiferentes à chuva, com as automáticas checoslovacas nos joelhos (…) Um grande paquete claro aproximava-se do cais a ameaçar destruir Bissau com o gume da proa. Não somos de parte alguma agora, respondeu o marido a designar o barco coroado de flâmulas, de emblemas reais, do estandarte do almirante Afonso de Albuquerque no topo do mastro principal (…) Depois de três meses de viagem um solzinho cor de pêssego despontou no meio da granito das nuvens e daí a nada avistaram o contínuo fervedoiro de mercado sírio de Lixboa a pular na distância, muralhas de castelo, fogueiras de judeus, procissões de flagelados, um trânsito simultâneo de carroças de escravos, cruzadores e bicicletas (…) 
Após cinquenta e três anos num cubículo de Bissau sofrendo mosquitos e cacimbo era-lhes difícil imaginar o ilimitado tabuleiro de damas do chão de mármore, as tapeçarias de hibiscos nas paredes, grooms disfarçados de hussardos, portas que se descerravam sozinhas. A cabine espacial do elevador, acostumado a assobiar de leve por órbitas de cometas, depositou-os numa espécie de corredor de basílica com os vãos dos altares laterais numerados (…) palpou-se longamente para se convencer da sua própria idade, tomando consciência dos molares que faltavam, dos músculos que obedeciam em guinadas dolorosas, do rosto devastado pelo clima da Guiné desde que aos quinze anos o pai o enviara para os trópicos aos cuidados de um primo sargento (…) 
Colocaram-nos na mesma mesa que três fazendeiros de Carmona que carpiam o café perdido e a lembrança das prostitutas da Muxima, um caçador de hipopótamos e um faquir guês de perinha ascética que mastigava parafusos e roscas (…) Um tenente de cabelos ralos, penteados desde a nuca numa minucia de ourives atravessou as tapeçarias, adaptou o microfone à sua altura, disse um dois três experiência, informou com ferocidade, damas e cavalheiros que se encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência paternal das autoridades revolucionárias preocupadas em zelar pelo conforto e tranquilidade dos seus filhos até o Estado democrático conseguir casas ou pré-fabricados ou apartamentos nos bairros económicos para as vítimas da ditadura felizmente extinta, e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção do socialismo dirigida pela vanguarda política do exército, passariam a ser punidos com a forca os intoleráveis abusos de assar sardinhas nos lavatórios, cozinhas refogados e fritos nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras, assim como servir-se das cortinas estampadas do hotel opara blusas e adornos”.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15283: Notas de leitura (769): “Diário de Ébano", por Sofia Yala Rodrigues (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

BS traz aqui um daqueles fala-barato sobre os Retornados e os colonialistas que ele examinou em Angola durante 24 meses em Luanda e na messe de oficiais do seu quartel nas encantadoras terras-do-fim-do-mundo, em frente à garrafa de Vat69.

Como Retornado acompanho desde o best-seller os cús-de-judas, mais ou menos de esguelha o que LA vai escrevendo.

E grande BS, sabes que te considero indispensável aqui, desculpa eu transmitir-te uma crítica literária sobre este grande escritor, de outro grande escritor falecido há dois anos: Urbano Tavares Rodrigues.

Escreveu ele numa entrevista para a Revista do Expresso mais ou menos um ano antes de falecer (1912?)

«Criticou ele que apreciava Lobo Antunes até um certo momento, agora já não é mais literatura, é masturbação». (revista do Expresso, não tenho memória para o nº da revista)

BS eu não chego a tanto porque me falta o verbo, mas posso falar um pouco mais rasteiro como Retornado: LA, ao referir-se aos Retornados, fá-lo de maneira de quem os conheceu antes de retornarem.

Fala de revolta simulada de ter estado lá a guardar-lhe as costas a esses que mais tarde retornaram.

E fala com o sentimento de uma certa burguesia nacional que tradicionalmente "não pode ver uma camisa lavada a um pobre" (Os emigrantes das remessas também foram sempre vítimas desses olhares nacionais).

Desejo que um dia LA venha a ser Prémio Nobel, com toda a sinceridade e todo o meu nacionalismo.

Obrigado BS

antonio graça de abreu disse...

Eu sei que é literatura, ficção, cruzando épocas e factos, mas é um bocado mentiroso o nosso camarada António Lobo Antunes. É verdade que escreve como ninguém, em Portugal. Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), meu professor,um grande escritor (pertencia ao Comité Central do PCP!) meu amigo até ao fim da vida, fala mesmo de "masturbação" na escrita pujante, bem batida do António Lobo Antunes? Talvez.

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Ó António Graça de Abreu, queira retirar o "talvez", se não eu zango-me e digo coisas piores!

Obrigado