GUINÉ, IR E VOLTAR - XXII
1 - Outros horários
Em frente às vivendas, meia dúzia de escadas acima, ficava a messe dos oficiais do QG, um edifício também só de um piso, sobre o comprido. À entrada, à esquerda, um pequeno bar, bem fornecido, uísques de todas as marcas, Drambuie e outros licores, Gordon’s, chocolates, tudo o que se podia encontrar de melhor. Os lavabos em frente, urinóis em fila e nos cantos, os espelhos do costume, tudo bem limpo logo pela manhã. A sala das refeições era um salão comprido que dava para muita gente e também para alguns que, nas várias repartições do QG, davam o melhor do seu esforço para que nada faltasse às NT espalhadas pelo território.
Foi lá que tomou o primeiro pequeno-almoço, ainda não eram 9 horas, depois de duas ou três de sono.
Depois foi por ali fora, como se alguém o empurrasse, com o Capitão Valente e outros, por entre as palmeiras, no empedrado, relva bem tratada nos lados.
Entrou no edifício do comando, o capitão à frente com vontade em mostra-lhe as instalações, aqui a secretaria, o 1.º sargento tal, os nossos cabos tal e tal, o 314, soldado amanuense, este gabinete passa a ser seu, os lavabos são aqui, o alferes a olhar para aquele barracão grande, zinco no telhado. Agora vamos à cantina, venha ver o seu pelouro.
O meu capitão quer mesmo amarrar-me aos copos e às garrafas?
Tem mesmo que ser, não tenho outra opção, isto não custa nada, a voz amigável do velho capitão, pingalim na mão.
Por que é que tanta malta, aqui no QG, anda de pingalim, não vejo cavalos em lado nenhum!
Esta cantina está bem montada, tem tudo, quando aqui cheguei esta barraca estava a cair de podre, continuava o Capitão Valente.
Que ar miserável, precário, como os abarracamentos cobertos a zinco que vira nas Lajes, do tempo da 2.ª Guerra, por fora cinzentos-escuros, por dentro muito mais acolhedores que esta frieza. Parecida com a messe de oficiais, onde tomara há pouco o pequeno-almoço, só nos extremos.
Vamos, o capitão a mostrar tudo, a caminho outra vez do edifício do comando, tabuleta cá fora que o empreendedor capitão mandara o 314 pregar.
Nasci no Ribatejo, sem pai ao lado, nunca soube quem foi o responsável, a minha mãe foi sempre de pouco falar, na hora em que morreu estava eu em Angola, andei descalço pelo Cartaxo, aos caídos, uma família de lá a quem devo o que sou, meteu-me na Casa Pia. Sou casapiano com muito orgulho, fui para a tropa e fiz a carreira. Tenho uma tertúlia de amigos no Cartaxo que de vez em quando me mandam uns garrafões dos melhores tintos daquelas redondezas.
Meu capitão, o senhor está mesmo interessado em que eu tome conta das cantinas?
Nosso alferes, quantas vezes já lhe disse que sim?
Para não falar de outros, estava com um problema que ainda não tinha conseguido dar a volta. Não tinha sono às horas de agora, há meses que vivia com outros horários, não eram ao contrário destes, mas quase. Passava pelas brasas aí pela meia-noite, os companheiros de quarto a entrarem àquela hora, acordava, uma espertina contínua, as horas a andar para trás, nunca mais chegavam as 6 ou 7, então sim, um tiro, directo até à uma ou duas da tarde, o pessoal a regressar do serviço da manhã, então ainda de cama, não vens almoçar? Um banho, a caminho da messe, o Capitão Valente cá fora com os compagnons, como lhes chamava, ó nosso alferes, algum problema?
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2 - Contas com os fornecedores
Começava o dia e o serviço sempre à mesma hora, mais minuto menos minuto. Era quase sempre o primeiro a entrar no edifício do comando da CCS a seguir ao almoço, muito antes do Capitão Valente, aliás quando entrava nunca via lá ninguém.
Um dia, aí pelas duas da tarde, viu o capitão a entrar e a fazer um esforço danado para não arrotar, o bagaço ainda fresco em cima do almoço parecia tê-lo entupido. Amigavelmente perguntou-lhe se andava com algum problema, não satisfeito com a falta de resposta, voltou a perguntar com cara de pau, depois só com os olhos, o alferes calado a ler-lhe o pensamento, este gajo está mesmo a gozar comigo. Quando arriscou dizer-lhe que tinha dificuldade em dormir à noite arrependeu-se logo. O capitão engasgou-se com os arrotos e, aos soluços, saiu do gabinete a murmurar qualquer coisa como quero lá saber que não acorde a horas!
Às 5 da tarde como o regulamento dizia, os sargentos, os cabos, o 314, o pessoal todo a sair, até amanhã, e ele ainda às voltas com as existências das cantinas, bares, fornecedores, até se fazer noite.
Naquele final de dia, ao sair voltou a encontrar-se com o Capitão Valente, depois da cena a seguir ao almoço.
Nosso alferes, você anda a irritar-me! Tenha paciência, faça um esforço, venha de manhã, isto não é um trabalho em part-time! Diga-me lá, o que lhe devo fazer, o que devo fazer para você entrar a horas?
Eu, se fosse ao meu capitão mandava-me para a metrópole. Se não pudesse, despachava-me para o mato, um Catió qualquer serve.
Ouça lá, alferes, você quantos anos tem, 24 ou 25, não? A gozar comigo! Ora olhe para mim, tenho idade para ser seu pai! Olhe para mim, porra, está na frente de um casapiano, sabe o que representa isso? Não sabe!
Olhe, faça as liquidações aos fornecedores amanhã, à hora que lhe der na gana! À hora que lhe der na gana!
Na manhã seguinte, eram para aí 7 horas quando passou os olhos pela última página do livro, impresso na Tipografia tal na Amadora aos tantos dias do mês tal e tal, a pé antes que se arrependesse, o chuveiro em cima e o companheiro de quarto a protestar com o barulho, que é que te está a dar, pá, que horas são?
Porta fora, ar fresco, o pequeno-almoço como já não se lembrava, quando acabou estava a oficialada menos jovem a entrar, o Capitão Valente também, os olhos e os óculos arregalados para ele, pareceu-lhe.
Bom dia, fresco como uma horta acabada de regar, a caminho do edifício do comando da CCS, a prometer um novo horário.
O motorista não era como alguns guias no mato, conhecia as voltas todas dos fornecedores, começou por o levar à Ultramarina, parou o jeep e não é que quando põe o pé no chão vê a Teresa a bater com o portão, livros e cadernos na mão.
A farda amarela de terylene dava muito nas vistas, já não deviam chegar a uma dúzia as que ainda andavam pela Guiné toda, há muito que se usavam as fardas verdes, dos periquitos como lhe chamavam agora.
Para a frente, a outro fornecedor. Deu a volta até ao último, à Casa Gouveia, entrou, o empregado recebeu, recibos no envelope, porta fora, o empregado cabo-verdiano a chamá-lo, um esquecimento qualquer, a devolução do envelope, um minuto, outro envelope, a pasta de mão a ficar gorda de recibos, este envelope está mais grosso, recibos atrasados, deve ser, deixa arranjar melhor, abriu-o, um maço de notas de 50 pesos.
Ó senhor, há aqui um equívoco qualquer, não me mandaram receber, só pagar, deve ser engano, outra vez para dentro, uns minutos largos, as caras deles a olhar uns para os outros, um mais graduado a vir ter com ele, nada de especial, senhor alferes, apenas o costume para pequenos arranjos na cantina das praças, o senhor capitão tem conhecimento. Ficaram a olhar um para o outro e para o envelope. Decidiu-se pelos bons-dias, embora para a CCS.
Esbarrou à entrada com um Capitão Valente diferente, sorridente, então que tal?
Tem aqui os recibos, meu capitão.
Deixe isso para depois, junte ao relatório do final do mês.
Meu capitão, tome conta desta papelada toda, tem para aqui recibos que não são da minha gerência.
No final da tarde, viu o capitão entrar-lhe pelo gabinete, com explicações sobre procedimentos a seguir, outros costumes também que ainda não conhecia, os recibos que vinham dentro dos envelopes, afinal, traziam todos acompanhamento, uma deferência para com a CCS, arranjos na cantina e tal. Boa tarde, meu capitão.
Uns dias depois alguém conhecido dele, ouvira o Capitão Valente, na roda dos compagnons, explicar como se metia na ordem um gajo rebelde às horas do regulamento.
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3 - Um mês e meio para o fim
"A partir de hoje faltam-me 41 dias para o fim da comissão. Nunca mais volto cá, nem depois do Cabral se sentar no Palácio. Vou sem saudades desta terra.
As veleidades de lutar pela Pátria aqui na Guiné ficam cá, deixei de acreditar. E aqui no QG, muito poucos têm coragem de defender a manutenção da guerra, a defesa disto está a limitar-se, é o que se ouve por todo o lado, à contagem dos dias que faltam para se irem embora. Apenas alguns oficiais, superiores sobretudo, fazem o seu papel, insistem na justiça da luta, mas quase ninguém lhes dá ouvidos. Junto deles, alguns dizem que sim como podiam dizer que sim a qualquer outra coisa, quando os vêem de costas mandam-nos à outra parte. E os que chegam, as primeiras coisas que querem saber é como se pode arranjar colocação no QG. Ainda agora chegou e já está a fazer perguntas dessas? Quem é quem, a ver se os papás, familiares ou amigos dão com a chave que lhes abra a porta para passarem o tempo nos corredores do ar condicionado".
Tinham chegado da metrópole há dias, as caras não enganavam. Camaradas da escola militar, todos tenentes, faziam parte da primeira fornada de subalternos que marchavam para o ultramar, um ano como adjuntos dos comandantes de companhia no mato, para depois regressarem à metrópole, formarem companhias e partirem para Angola, Moçambique e Guiné. Era uma boa ideia, parabéns a quem a teve.
Encontrou-os, cinco à volta de uma mesa na messe do QG, abriram espaço para mais um, os milicianos a passarem pela mesa a olharem para as caras que os recém-chegados costumam trazer.
Falaram da vida deles, por onde tinham andado, o que tinham feito, queriam saber coisas, como estava a evoluir a situação militar, um a perguntar-lhe pela ilha do Como, é um tal Nino não é?
Vocês querem mesmo saber a minha opinião? Esta é uma guerra quase só de milicianos. Não só alferes e furriéis, também cabos e soldados apanhados à mão, com a ajuda dos padres, dos tipos das juntas de freguesia, dos regedores, vai-se arrastando, mas é uma questão de tempo, meia dúzia de anos talvez, não muitos mais. Muitos mortos e estropiados depois, o PAIGC vai-se deitar nas camas onde agora dormimos. Sei que é uma chatice, que talvez preferissem ouvir outras coisas, mas é o que vos posso dizer. E desejar-vos sorte!
As caras deles, vermelhas do calor, sem troco, a olharem uns para os outros.
Dias depois deixaram de ser vistos na messe.
Quase todos os finais de tarde passava pela piscina, depois descia até à cidade, passava pelo quiosque do Bento, mexia nos livros, à procura de novidades, levava um ou outro, mais ao seu gosto, As Vinhas da Ira num dia, O Inverno do Nosso Descontentamento dias depois.
Na esplanada já encontrava poucas caras conhecidas, via muitos militares, mas quase todos com aspecto de recém-chegados, caras vermelhas, a escorrerem suor, à volta de mesas cheias de copos e garrafas de cerveja.
Ao Hotel Portugal deixara de ir, outros deveriam ter tomado conta daquelas mesas, quando ocasionalmente por lá passava também só via caras novas.
Num daqueles dias, ao fim da tarde, dirigiu-se para o quarto, cheio de boas intenções, vestir o fato de banho e ir até à piscina.
Quando abriu a porta viu o Manaças a sair do quarto de banho e um enorme cheiro a desinfectante.
Ó Manaças, andas a tomar banho em Old Spice?
Não é Old Spice, é Tabac, é para disfarçar o DDT que tem um cheiro do caraças!
DDT? Aqui dentro? Eu julgava que o pessoal da desinfestação andava a matar os mosquitos lá fora. DDT para quê? Uma camada de chatos, desde quando? Então e onde? Há quanto tempo andas com isso? Uma semana? É pá vamos mas é ao hospital, eles têm um líquido que tira isso tudo.
Tu vais mas é agora ao médico, ao hospital militar.
Porta fora, directo à messe, o Capitão Valente na mesa do costume, os compagnons à volta, ó nosso alferes, ainda bem que apareceu, preciso de falar consigo, no fim de jantar, estou ali pelo bar, apareça.
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4 - Um Folgado no QG
Chegou-me um alferes da metrópole, da Administração Militar, vem destinado à companhia, é de uma família minha conhecida de há muitos anos. Vem-me mesmo a calhar, e para si também, que está morto por deixar a gerência das cantinas. Vou entregar-lhe a responsabilidade desse serviço.
Você já teve a sua conta, tem sido um tipo leal, e eu aprecio muito isso, pode crer, tirando aqueles problemas que tivemos no início. Resolvemos bem o assunto, olhe que eu já o dava perdido. Vou deixar o filho da mãe para aí a comer relva, até ganhar flor! Mas sabe como é, não me canso de dizer, casapiano uma vez, casapiano para toda a vida. Eu tenho muita roda, sabe? Olhe, falta-lhe quê, para aí um mês, um mês e meio? Claro que vai ter que fazer, apareça por lá, todos os dias, dê uma ajuda na papelada, umas assinaturas e tal.
Amanhã convinha que estivesse no edifício do comando aí pelas nove horas para as apresentações, a seguir leva-o ao pessoal das cantinas, vai-lhe passando a escrita, deixe tudo em ordem, ok?
O alferes miliciano da Administração Militar já tinha chegado. Só podia ser aquele militar que estava à porta do barraco do Capitão Valente, o tal edifício do comando. Caqui muito verde, óculos escuros graduados na pele muito branca.
Mais um de óculos escuros logo pela manhã!
Então o nosso capitão ainda não chegou, a mão estendida para o ilustre administrativo.
Chama-se Folgado?1 O nome é bom. Está a gostar de Bissau? Nem por isso? Olhe que esta terra tem muitos encantos, os olhos também ajudam. Mas se anda à procura de paisagens encontra-as, bem lindas, fora de Bissau, no mato.
As merdas que tinha ouvido dos outros já estavam entranhadas. Desculpe, Folgado, com estas coisas não se brinca, esqueça.
Passara o dia todo com o alferes, economista recém-licenciado, casado logo a seguir com uma colega, papeis passados à máquina pelo 314, para um e para o outro, assinaturas dos dois, a do capitão por baixo, gerência passada, trespassada, tudo.
Pronto, é tudo, Folgado, felicidades, que a vida lhe corra bem por aqui.
O companheiro de quarto fora ao hospital, foi atendido por um médico de quem nem o nome fixou, mostrou-lhe as partes baixas, milhões de bichinhos, o doutor de óculos e lupa, de longe, mas são chatos, senhor alferes, são chatos mesmo, estes já nasceram com DDT, quanto mais DDT lhes der mais os gajos engordam, ó nosso sargento prepare aí um frasco daquele líquido para os ácaros aqui do nosso alferes, pode subir as calças, o alferes todo envergonhado, nunca se vira em tal achado. Ficou à espera que lho preparassem o líquido, feito de propósito segundo as regras da farmacopeia militar guineense, habituada também a este tipo de ataques.
É puro, meu alferes, o frasco vai um pouco mais de meio, enche com água, agita bem, para cima e para baixo, deixa assentar a espuma, toma banho primeiro, seca-se com uma toalha, toalha para dentro de um alguidar, não se esqueça.
Se não quiser queimar a sua roupa, mergulhe-a em água, lençóis, toalha, toda a roupa em que em tocado, com uma boa quantidade deste líquido e deixe-a num tanque ou em alguidares uns dias. O meu alferes toma banho, deixa-se secar, depois passa o líquido diluído em água por toda a zona genital, atrás também, orifícios não, claro, pelas pernas abaixo, deixe-se estar uns dez minutos, vai sentir um ardorzinho, depois banho outra vez, deixe-se estar outros dez minutos com água por todo o lado, fique a secar, eram uma vez esses chatos, vai ver, o alferes a perder o seguimento, cheio de comichões e já sem paciência para tanta minúcia, sim, sim, claro, nosso sargento, é o que vou fazer.
É pá, estou à rasca, olha para isto, arde-me isto tudo, olha como está a pele, até os pelos caíram todos. Passei a merda do líquido, se calhar mais concentrado que devia, não enchi o frasco de água até acima para ver se fazia mais efeito.
Mete-te no chuveiro, água a correr, entra pá, lingrinhas, quem te disse que um matemático tem que ser um bom enfermeiro?
É pá, a água ainda me faz arder mais!
Quem te mandou sair da água, não é nada de grave, tem calma, levanta-te, vamos ao hospital. O Manaças tremia todo, quase tanto como o Fiat Necker a descer Santa Luzia abaixo, Associação, Palácio, estrada para Brá, a chiar como nunca, agora até esta chocolateira a ganir nas curvas, rectas e tudo, uma grande travagem, o carro virado ao contrário, que classe, a porta do camarada a dar para as escadas do hospital, só faltaram palmas, poeirada e olhos não.
Meia hora depois o Manaças desceu as escadas com um ar já mais aliviado e entrou no carro.
Então, estás melhor ou não? Cheiras a pomada! Queres que te leve ao quarto? Eu vou ficar por aqui, como qualquer coisa no Império, uma sandes de queijo, pãozinho acabado de sair do forno, com uma cerveja em cima. Queres vir?
Manaças, quanto tempo te falta para acabares a comissão, dezasseis meses ainda? Estás a fazer o teu pé-de-meia para quando chegares à metrópole comprares uma bruta máquina, não? Para o teu curso primeiro, a máquina fica para depois. E então, ora conta lá, os alunos das tuas explicações portam-se bem, aprendem com facilidade?
Interessados, atentos, bom comportamento, vontade de aprender, não estão ali para brincar, é como quisessem aproveitar um tempo que nunca tiveram.
Não, não é o caso de serem explicações, de terem que pagar, tenho até dois alunos a quem nem estou a levar nada. Vi que não era fácil eles pagarem, disse-lhes para pagarem quando pudessem.
Não, não me apercebo de animosidade contra nós, não lhes vejo ódio, sinto-os até amigáveis, há qualquer coisa entre mim e eles, talvez um espaço que ainda não consegui estreitar. Nunca abordei o assunto da guerra com eles, mas penso que não lhes será difícil perceber o que penso.
Falaram do ambiente da metrópole e muito de Coimbra. Manaças, o companheiro de quarto, tinha vindo de férias há dois meses, estava a juntar dinheiro para ir outra vez, queria ir para a Figueira entre Julho e Agosto, passar as férias ao sol e ao vento, com a namorada, colega dele em Coimbra.
Gostas dela?
Nem me fales!
E não tiveste vergonha de andar para aí a apanhar chatos?
É pá, não me fales mais nisso, até me sinto fraco!
Pois deves estar, falta-te peso, milhões de chatos a menos, para aí um quilo, não?
Sei lá, a gaja meteu-me a camada que viste e deu-me de brinde um escarepe, já viste?
A brincarem um com o outro, acabaram a rir-se, duas sandes no meio de outras tantas cervejas.
Sabes como é, desde que vim de férias, sem ver o padeiro, as bajudas que vão aos quartos de Santa Luzia buscar a roupa para lavar, todo o bicho careta se mete com elas, ganharam tanta ou mais resistência que os meus chatos, dali nunca levei nada.
Uma noite da semana passada, fui até ao Hotel Portugal, estive lá a beber umas cervejas, meti-me num táxi, é pá nunca na tua vida contes isto a alguém, ouviste?
Disse ao taxista que me apetecia dar uma volta para espairecer, o gajo meteu pelo Cupilão, quase ninguém àquela hora naquelas vielas, até tive receio, veio-me à cabeça aquela história que se conta dos dois gajos que apareceram com as gargantas cortadas, o taxista saiu, voltou passado um bocado, disse-me que eram 20 pesos2, que ela estava à minha espera.
Entrei um pouco desconfiado, olha pá, esqueci-me de tudo quando a vi na cama, de pernas dobradas, de barriga para cima, só com uma camisa de noite curtinha, nunca tinha visto tanto. Tinha ao lado dela na cama um bebé e no chão de terra andavam galinhas e um porco a passear, vê lá tu!
Chatos, escarepe de brinde, galinhas e porcos na assistência, 20 pesos para o taxista. Misérias, Manaças, confissão amanhã na Sé!
Volta à praça, o Palácio do Governador Schulz com as luzes apagadas, direcção ao QG.
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Notas:
1 - Nome fictício
2 - Equivalente a 20$00 (vinte escudos) da Metrópole
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5 - Vat 69
Os Homens de guerra de F. Ponthier, de Estalinegrado às terras da Argélia e de Marrocos, o reencontro de dois homens de armas na mão, 35 pesos. Uma agulha no Palheiro do J. Salinger, um jovem burguês expulso de casa a vagabundear por N.Y., drama da juventude, 35 pesos. A Morte do Cavalinho do Bazin, o duelo entre a mãe e o filho pequeno, uma perseguição implacável, a triste conclusão dessa luta, uma recordação da Teresa. O Escândalo Profumo, de três jornalistas, 40 pesos. A Sentença, de M. Gregor, a história da violação de uma jovem de 16 anos por um grupo de soldados americanos, numa cidade alemã ocupada. Chegar é já em si bastante, de José da Câmara Leme, uma série de contos que interligados são histórias de meia dúzia de homens de guerra, mercenários da Legião Estrangeira, passadas na guerra da Argélia, 35 pesos. Uns atrás dos outros, marchava tudo, a boa média a manter-se.
Começava normalmente pela uma ou duas, os dois comparsas a assobiarem de olhos fechados, o Manaças de papo para o ar, a boca escancarada, é por causa deste corneto, dizia ele. Por aí fora, até às 6 ou 7, o corpo sem posição, braços dormentes, livro no chão, acordava logo, com os barulhos, não podia ficar, metia-se no chuveiro, meio esquisito a sair para o dia alto a caminho da CCS do Capitão Valente.
À saída da messe encontrou o Manaças com os dois companheiros, então, queres vir dar uma volta, anda daí, meteram-se no carro, janelas abertas, a descer devagar a avenida até à cidade, e de repente todos à gargalhada com a história das aventuras no Cupilon de uma figura militar importante do QG. Uma história descoberta na cama de uma menina, a satisfazer também as necessidades de um camarada mais falador.
Vamos comer um gelado, o mais periquito e mais calado também para os outros.
Mesmo bons, é uma casa nova de uma senhora cabo-verdiana, abriu há pouco tempo.
Este gajo ainda agora chegou e já conhece mais que ele, vai longe! Para onde?
Benfica, por aí, uma rua para cima, umas escadinhas até à vivenda, uma varanda aberta para a rua, três ou quatro mesas, cadeiras à volta, muita frequência.
Uma taça de gelado para cada, copo de água a acompanhar, olhos para a rua, uma sirene de ambulância ao longe, um dente a doer-lhe logo à primeira colher, uma dor fininha, que chatice, julgava que isto já estava sossegado, eles a quererem conversa, a mão na cara sem saber para quê, é um dente, não?
A dor parecia que ia embora, ouvia o que estavam a dizer, colher na boca a medo, aí vinha ela outra vez, mão na bochecha para quê?
Não posso mais, tenho que me ir embora! Espera um pouco, vamos todos.
O livro a meio, a dor fininha, intermitente passou a corrente contínua, a latejar, parecia que o sacana do dente queria sair da boca, como se também já tivesse cumprido a comissão. Desvairado no quarto de banho a bochechar com uísque.
Vodka é melhor, não tens aí vodka, pergunta o Manaças. Vat 69 de serviço, boca abaixo pela garrafa, calor no estômago, na cabeça, parece que isto agora vai. Qual vai, qual carapuça, cama fora, desaustinado, camisa e calças num rápido, sapatos sem cordas nem nada, porta fora, onde vais, pá?
Meteu-se no VW, se a porta de armas não se abre tão depressa, ia o pau e o militar de sentinela, a acelerar pela avenida de Santa Luzia abaixo, não dava mais o desgraçado, nem chiava nem nada, a lembrança do fim da comissão, que se lixe! Nunca ninguém tinha tido uma dor como esta, a boca, cabeça, tudo a latejar. Farmácia perto da Amura, junto à Ultramarina. Olhe saiu agora isto, Optalidon, é uma coisa nova, leve este tubo.
Quantos tem, doze, acha que dá?
Vai dar e sobrar, amigo, tome um agora, se não abrandar, tome outro daqui a 4 horas.
Tem aí água? Foram logo dois pela boca abaixo, carro outra vez, uma festa numa vivenda e eu aqui com esta dor de dentes.
A festa dos dentes é que não havia maneira de acabar, isto agora vai começar a abrandar, mais devagar pela avenida acima, o sentinela ao encontro, pau da porta de armas a levantar-se, a chave de mansinho na porta, também não valia a pena, ressonavam como uns porcos. A dor é que nada, só se fosse maior.
Depois desapareceu, adormeceu. Quando acordou, não havia grandes alterações, os dentes doíam menos, mas doíam, sentia-se era um bocado estranho. Sabes que horas são, pá? Cinco, da tarde!
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Continua)
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Nota do editor
Poste anterior da série de 12 de novembro de 2015 Guiné 63/74 - P15357: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XXI Parte): Grande Hotel; Água IN; E agora para onde? e CCS, QG
7 comentários:
Virgínio
É uma beleza esta tua prosa sobre a guerra na Guiné em quadradinhos (quadradões!), embora aqui só em Bissau.
A do envelope mais gordo (e clandestino), os "ácaros" do alferes e o tratamento dos mesmos, o realismo ( que dor-de-alma!) daqueles espaços e "intimidades" do Cupilão, onde o tal alferes conseguiu vislumbrar toda aquela "fauna" (excepto os "ácaros"), o dente parecia que queria sair da boca porque já tinha acabado a comissão...etc..
Um abraço
Alberto Branquinho
Vb, e querias tu "mandar para o lixo" o teu blogue "Tantas Vidas"!...
Isto é "literatura" de primeira água, que se continuará a ler daqui a 50 anos... Há, nos teus textos, pérolas de muitos quilates, este capitão Valente é mais outra espécie, antológica, da "fauna humana" de Bissau daqueles idos tempos de 1967...
Ninguém como tu, com a tua escrita intimista, conseguiu até agora dar-nos uma ideia do ambiente físico e psicossocial desse ano terminal que antecede a chegada de Spínola...
Por nós, pelas tuas filhas, pelos teus netos, e sobretudo por ti, tens a obrigação de pssar isto, um dia, a papel!... Ou no mínimo publicar um e-book! Há hoje soluções a custo zero!... Temos de arranjar maneira, fácil, amigável e barata, de pôr os nossos textos acessíveis a um público mais vasto. Temos de publicar livros, em papel e/ ou formato digital, com ISBN (International Standard Book Number)e tudo, como mandam as normas legais!
Vb, espero que aceites este meu comentário como estímulo para continuares a escrever! Infelizmente nem todos temos o teu talento narrativo. Tens de escrever por nós! A nossa geração merece camaradas, homens e escritores como tu! Temos orgulho em ti!
Um alfabravo do Luís
(...)"Eu, se fosse ao meu capitão mandava-me para a metrópole. Se não pudesse, despachava-me para o mato, um Catió qualquer serve.
Ouça lá, alferes, você quantos anos tem, 24 ou 25, não? A gozar comigo! Ora olhe para mim, tenho idade para ser seu pai! Olhe para mim, porra, está na frente de um casapiano, sabe o que representa isso? Não sabe!
Olhe, faça as liquidações aos fornecedores amanhã, à hora que lhe der na gana! À hora que lhe der na gana!" (...)
Virgínio, impagável, esta tua criatura, o cap Valente!... Eram estes tipos que mandavam na tropa, tinham uma tarimba de 8 séculos!...
Olha uma maravilha pá. Ontem copy/paste e foi para a pasta onde tenho os teus escritos. Hoje com a cabeça mais liberta li devagarinho. Um tipo quando tem chatices deve ser lento em tudo, até na leitura. Li assim e estou mais leve. Estive aqui e lá, mas Bissau,cidade, diz-me pouco. Encaixei, no entento, algumas recordações. O Bento, A messe do QG, os sargentos eos esquemas, as casas dos alferes do QG. A primeira vez que vim de férias encontrei um alf que era amigo de infância. Saí do "Biafra" e fui lá para casa pernoitar. Melhor, mas tinha um figorifico no quarto e quando o dito arrancava eu abria a pestana. O pior aconteceu no segunda ou terceira madrugada, Não me avisaram que havia uma "carreira de tiro" ali perto...a meio da primeira saraivada de tiros já o figorifico estava no chão com a minha marrada. Apareceram os dois ou três alferes que cohabitavam e riam os desalmados...Nessa noite fui ouvir o meu amigo cantar no Solar dos Dez. Encontrei porlá um Sargento Fuzo, conhecido por Piçarra, devido ao Luis Piçarra, nosso conterrâneo e amigão fixe e cantor...saí de lá e não sei mais nada...saí, p+ois se aqui estou. Dias depois fui de férias pela 1ª vez...antes falei com o periquito Beja Santos...olha pá tens lá o Furriel Zacarias Saiegh que te mostra a guerra...um mês e tal depois no regresso encontrei o valentão BS...vidas...
Abraço V. Briote e continua a r~dar-nos o prazer da leitura
Ab,T
Luís Graça, Alberto Branquinho,Torcato Mendonça, Caros camaradas. Fico sensibilizado com as vossas opiniões e satisfeito por saber que estão a seguir a minha comissão. Não foi uma comissão fácil, foi uma comissão como tantas outras. Permitam-me uma introdução, que pode ajudar a perceber melhor como foi a minha vida na Guiné.
O meu trajecto enquanto jovem e adolescente não foi fácil no que diz respeito a lidar com a autoridade. Nunca me foi fácil aceitar ordens quando me diziam são ordens e pronto.
Alombei com as consequências. Durante o período escolar fui várias vezes posto fora das aulas, algumas com a justificação de insubordinação. O meu Pai era um homem justo, mas aos meus olhos era muito mais exigente comigo do que com o meu irmão. Não me perdoava nada, fosse o que fosse. A vontade de sair de casa aumentava à medida que ia crescendo e, acabado o 3º ciclo, vi na Academia Militar uma boa oportunidade para levar finalmente a minha vida. O Pai não levantou objecções, só perguntou se me achava com vocação para a tropa. Que sim, era o que queria. Na verdade o que eu queria era pirar-me de casa de qualquer maneira.
Um engano, claro, daqueles que se pagam caro. Dois anos perdidos. Se a memória não me falha, naqueles anos de 62 a 64, os cadetes tinham direito a duas dispensas de recolher por mês, além da obrigatoriedade de andarem fardados na rua. Estava constantemente em golpe e fui apanhado duas ou três vezes a entrar fora de horas pelo buraco feito nas sebes e que servia de muro na Amadora. Julgo, já não tenho bem presente, que apanhei duas ou três dezenas de dias de detenção e cheguei até a não ter férias e a ficar de castigo dentro da Academia.
Esta introdução, que estou a fazer, pode ajudar de alguma forma que se entenda o comportamento que fui tendo ao longo dos dois anos seguintes, 65/67, passados na Guiné. Também aqui tive problemas, o meu comportamento disciplinar ultrapassou mais que uma vez as fronteiras, que as autoridades militares consideram sagradas. Tive duas punições, uma delas devido à minha participação nos incidentes da Associação Comercial e outra quando optei por desobedecer a uma ordem de um comandante de batalhão. Paguei caro, a mais gravosa foi não ter tido férias. Apesar disso, mantive-me convicto que tinha tomado as decisões correctas, uma na defesa de camaradas que, em grande inferioridade numérica, estavam a ser atacados, a outra no sentido de preservar as missões dos grupos de comandos e na defesa dos homens do meu grupo.
O tempo na Guiné serviu para, de alguma foram, domar a minha maneira de ser. A minha entrada no mercado de trabalho foi cómica e dolorosa. Cómica porque duas horas depois de ter entrado ao serviço de uma empresa no Porto, perguntei a mim próprio se era aquilo que queria fazer. Virei-me para o Manuel António Pina, que também tinha sido admitido no mesmo dia e disse-lhe, vou-me embora daqui para fora! Os olhos do Pina espantados, o que se passa, será que posso ajudar. Bom dia e felicidades, Pina! E fui directo ao responsável pela empresa e disse-lhe que me desculpasse mas que não me sentia a pessoa certa para aquele lugar. Começou assim o meu percurso profissional. Dias depois fui a uma entrevista na Agência Abreu e fui admitido como guia-intérprete. Quando me encontrei ao fim do dia com a minha namorada, dei-lhe a boa nova. Engoliu, silêncio e momentos depois, vais ter que decidir ou guia intérprete ou eu. Bom , não acho justo para vocês, nem adequado para o blogue, estar a contar aqui a minha vida. Acrescento apenas que foi graças ao Coronel Cavaleiro que entrei a sério na vida profissional.
Quanto ao livro, Luís, já há muita coisa publicada e com muito interesse para quem se interessa ou queira estudar este assunto. Mas o tempo o dirá.
Mais uma vez, o meu obrigado por me estarem a seguir.
Abraço do V Briote
Amigo Briote,
Que bom ler as tuas lembrancas dos nossos tempos de Guine, Tenho printado tudo desde o 1 Capitulo para quando acabar a publicacao poder encadernar. Quem sabe, ainda poderas publicar em livro e nessa altura quero que seja autografado. Nao sabia que tinhas estado na Academia na Amadora, mas pelos vistos nao tinhas mentalidade para ser "chico". No entanto sempre te conheci como um militar correcto.
Julio Abreu
Grupo de Comandos Centurioes
Ex-Guine Portuguesa
Virgínio, bom amigo, "o tempo o dirá", escreves tu...
O tempo é boa medicina. A distância temporal ajuda-nos... Mas não podemos despedir-nos da "terra da alegria", parafraseando um dos meus poetas preferidos, Ruy Belo (, tão maltratado pela sua/nossa pátria, mátria, fátria do pós-25 de abril!), sem fazermos as pazes com o passado, connosco, com os nossos pais, namoradas, esposa, filhos, com os nossos amigos e até com os nossos inimigos... Temos que ficar bem com o mundo, sob pena de termos uma viagem tormentosa no além!...
Um livro é sempre uma forma de fazermos as pazes connosco e com o mundo... Fomos, somos, uma geração "desassosegada"... 1 ano de tropa (tum dois de Academia, nºão foi ?), dois de Guiné, mais outros tantos (três a cinco) para fazer o processo de transição... é muito tempo das nossas vidas... E agora ainda andamos à volta com o "puzzle" das memórias desses tempos...
Boa saúde, boa continuação da escrita... Luis
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