O José Nascimento no cais do Xime, que foi construído no tempo da CART 2520 |
O Soldado João Parrinha
O João Parrinha era um rapaz tipicamente alentejano. Natural de Cabeça Gorda, nas proximidades de Beja, bonacheirão, muito simples e humilde, sem qualquer instrução, quando lhe perguntei por que razão não sabia ler nem escrever, pois no tempo em que eu fui para a escola primária, já o era obrigatório, ele respondeu-me:
José Nascimento, foto atual |
Passado algum tempo de estarmos na Guiné, apercebi-me da sua proximidade, mais do que qualquer dos outros elementos do meu pelotão. Quando saíamos para o mato, ele procurava estar sempre perto de mim e até quando fazíamos segurança à ponte sobre o rio Udunduma, os nossos colchões eram colocados no chão ou em cima de algumas chapas de zinco e o nosso tecto eram as estrelas, eu dormia entre os soldados e normalmente o Parrinha era o que ficava mais por perto.
Certa vez quando houve uma pequena escaramuça com elementos do PAIGC, na zona de Madina Colhido, o Parrinha foi ferido por um estilhaço dum rocket e logo gritou por mim:
- Meu furriel, estou ferido!
Fui ver o que se passava, foi de imediato tratado pelo nosso enfermeiro. Felizmente era um ferimento ligeiro nas costas e sem qualquer gravidade.
Por coincidência ou não, ele fazia anos na mesma data que eu e numa das nossas deslocações a Bambadinca, cruzámo-nos com um nativo que transportava um pequeno porco e logo ali fez negócio e o animal seria para fazer um petisco no dia do nosso aniversário.
Levado o bicho para o Xime, o Parrinha construiu uma pequena pocilga e com os restos da cozinha lá ia alimentando o nosso bácoro, que foi comprado a meias.
Mas, para nosso descontentamento, os "turras" resolveram estragar-nos a nossa planeada festa de aniversário e numa noite qualquer atacaram o quartel do Xime. Felizmente para o 3.º pelotão estávamos no Udunduma.
O que aconteceu é que a improvisada pocilga foi pelos ares e o nosso pitéu passados alguns dias deixou de o ser em consequência do incidente.
De vez em quando o Parrinha pedia-me dinheiro emprestado e logo se prontificava a pagar, assim que recebia o seu modesto vencimento.
No destacamento do Biombo [,, quando fomos para Quinhamel], onde a actividade era mínima, andava quase sempre desenfiado, até chegava a dormir nas tabancas e eu fazia que não sabia de nada.
Já na Metrópole, e passados alguns anos após o nosso regresso da Guiné, numa passagem por Cabeça Gorda, fui à procura do Parrinha, e qual não é a minha surpresa quando me dizem que ele estava no Algarve, até me disseram em pormenor onde ele morava.
Assim que tive oportunidade lá fui a Olhão, ao Bairro dos Pescadores, onde encontrei este antigo militar. Conversa puxa conversa, em determinado momento ele me diz:
- Quando fomos para a Guiné, ia com a ideia de lhe dar um tiro.
- Porquê? - indaguei com alguma admiração.
- É que, quando estávamos em Torres Novas, você deu-me um pontapé no traseiro.
Recordei-me que, durante a instrução, lhe dei um pequeno toque, sem qualquer intenção de o magoar, tipo sacudir o pó dos fundilhos das calças, como que a lhe dizer "vamos lá, você é capaz de fazer este exercício".. Ficou melindrado.
Fiquei então a perceber o porquê da sua proximidade na nossa passagem pela Guiné... Conversámos por mais algum tempo e saí da sua casa com vários quilos de peixe de primeira qualidade e com a convicção que o ódio (se é que existiu) se transformou em amizade.
Infelizmente já não voltei a falar com este rapaz que foi a minha sombra na Guiné. O coração do João Parrinha resolveu pregar-lhe uma partida e deixou de bater precocemente, ele já não pertence ao número dos vivos.
Adeus, João Parrinha, até à eternidade!... E para o pessoal da Tabanca Grande um enorme abraço.
José Nascimento
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15490: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (6): A Bandeira
3 comentários:
Zé, fizeste bem em lembrar este nosso camarada, teu soldado, o João Parrinha... Quantos Parrinhas, humildes, sem saber ler nem escrever, sem terem tido a oportunidade de ir à escola, como tu e eu tivemos, quantos deles não já morreram, anónimos ?!... Não se lembra deles, como bravos combatentes da Guiné, onde quer que tenham estado, ddo Xime a Buruntuma, de Beli a São Domingos, de Caboxanque a Farim... Morrem anónimos, como anónimos viveram...
Fico sensibilizado por esta história do teu soldado que te queria matar e que depois se tornou teu leal amigo e camarada... LG
Camaradas, temos que começar a dar mais visibilidade às terras de naturalidade dos nossos camaradas que estiveram no TO da Guiné... Bolas, eles têm uma identidade, um nome, um BI, uma certidão de nascimento, uma terra onde foram paridos, pai, mãe, irmãos, amigos, vizinhos...
João Parrinha era natural da Cabeça Gorda, freguesia da Cabeça Gorda, concelho de Beja... Alguém conhece, já passou por lá ? Ver aqui:
http://www.mapav.com/beja/beja/cabeca_gorda/
amigo LUIS também sou da cabeça-gorda so que vim para lisboa com um ano poucos familiares la ficaram foi na altura da imigração para o barreiro e amadora e concelho de sintra por isso não conheço a família parrinha mas era meu conterrâneo um abraço antonio faneco
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