sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15799: Notas de leitura (811): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
A incursão biográfica de Daniel dos Santos tem alguns pontos altos: na senda da pesquisa de Julião Soares Sousa, desmonta algum do fabulário, do intencionalmente mal contado e confronta a história de um PAIGC que é mais recente do que o imaginário propôs; dá-nos uma apreciação da identidade cabo-verdiana e disseca a animosidade estrutural entre guineenses e cabo-verdianos, fá-lo com coragem e com argumentos em cima da mesa.
O que há de manifestamente incongruente foi esta atitude de pensamento de que era possível separar o processo político em Amílcar Cabral da sua obra, o PAIGC e a luta da libertação que culminou na independência, ponto de arranque no processo de descolonização.

Um abraço do
Mário


Uma nova investigação sobre Amílcar Cabral (3)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014, é um livro declaradamente controverso. O autor é um professor universitário cabo-verdiano e questiona os fundamentos da civilização e da cultura da sua terra de um modo que se entende claramente que demarca esse resultado civilizacional e cultural do que se passou na Guiné, uma colónia que só efetivamente o foi depois da Conferência de Berlim, uma campanha de ocupação com resultados precários, com inúmeras rebeliões e com as etnias guineenses de pé atrás com o cabo-verdiano, o agente do colonizador, tratando-os por vezes brutalmente. Uma investigação com uma estrutura discutível, como se pudesse haver uma cronologia indivisa entre Cabral e o PAIGC, daí a quantidade de remissões, o andar para a frente e saltar factos. Daniel dos Santos não morre de amores pelo PAIGC, dirá abertamente que em 5 de Julho de 1975, quando Cabo Verde ascendeu à independência “o despotismo português viu-se substituído por um outro, suportado pelos filhos da terra. Cabo Verde de hoje nada tem a ver com o sonhado por Amílcar Cabral, que, por ser um político idealista e normativista, lhe desenhou um modelo de vida e de sociedade que chocava manifestamente com o pluralismo cultural dos ilhéus”.

Líder revolucionário que atingiu o auge da popularidade na cena internacional no início na década de 1970, Cabral enquanto dirigente supremo da guerrilha vai encontrar pela frente, a partir de 1968, um sério contendor: António de Spínola. Este traz uma fórmula desenvolvimentista, “por uma Guiné melhor”, bem-disposto a um esforço sobre-humano para conquistar populações, irá desenvolver ações psicológicas como os Congressos do Povo, obterá financiamentos para construir escolas, hospitais, aeródromos, pontes, mesquitas, entre outras infraestruturas sociais e culturais. Isto sem descurar a atividade militar, privilegiando grandes operações ofensivas com as tropas especiais. Spínola tenta aliciar unidades do PAIGC propondo-lhes a sua integração nas Forças Armadas guineenses. Tudo acabará dramaticamente. A Operação Mar Verde, destinada a invadir Conacri com o objetivo de eliminar Sékou Touré, decapitar a cúpula do PAIGC e libertar os prisioneiros de guerra portugueses só atingiu o último objetivo mas foi um dos mais sérios revezes para a diplomacia portuguesa.

Cabral reagiu à altura do dinamismo de Spínola. Moralizado pelas conquistas políticas, militares e diplomáticas, tece um plano político de grande envergadura para isolar Portugal – a realização de eleições gerais para a constituição da Assembleia Nacional Popular. Explorou os resultados, mesmo sabendo que o ato eleitoral correspondia a uma parte minguada da população guineense, obteve mais apoio internacional, antes de ser assassinado gizou um plano para o texto constitucional bem como os termos da declaração da independência.

Depois o autor detalha as operações militares do PAIGC em 1973 e os seus resultados, que foram suficientemente marcantes para que Spínola decidisse pôr termo à sua comissão. Agora o autor leva-nos atrás, vai analisar a grande utopia de Cabral, a unidade Guiné-Cabo Verde. É verdade que é uma história comum, durante séculos a Guiné esteve na dependência de Cabo Verde, mas sempre resistindo e não escondendo a sua hostilidade ao branco e ao mestiço oriundo das ilhas. E recorda que no massacre de Bolor, ocorrido em 1879, muitas das vítimas foram cabo-verdianos, foi um desastre que acabou por se saldar na criação da província da Guiné. Daniel dos Santos arrola os elementos fundamentais da presença dos cabo-verdianos na Guiné, lembra-nos que alguns dos donos mais ilustres foram André Álvares de Almada e Honório Pereira Barreto que nasceu na Guiné mas sempre se considerou cabo-verdiano. Pois bem, a controversa unidade urdida por Cabral tinha sérios opositores dos dois lados, mesmo depois da independência nunca foi posta em prática a não ser em domínios pontuais e morreu completamente com o golpe de Nino de 14 de Novembro de 1980. Daniel dos Santos também faz o historial do contencioso entre guineenses e cabo-verdianos e conta-nos o que aconteceu em Dakar e em Conacri no início dos anos 1960, quando surgiram os movimentos independentistas, em Novembro de 1964, quando o MLG entrou no ocaso, muitos dos seus dirigentes e militantes filiaram-se no PAIGC. E o autor observa ainda: “A criação do PAIGC ocorreu no momento em que achavam ainda por cicatrizar as feridas entre guineenses e cabo-verdianos, abertas pela intervenção dos últimos, ao lado dos portugueses, nas chamadas guerras de pacificação. Quando Amílcar Cabral lançou o PAIGC, estavam, certamente, na mente da elite guineense, em particular, e na das massas, em geral, muitas recordações e episódios de ferozes combates que opuseram os indígenas aos cabo-verdianos. O sentimento anticabo-verdiano. Nem as ideias de Amílcar Cabral serviram para o disfarçar. Ninguém o podia negar. A hegemonia cabo-verdiana na Guiné tinha estorvado qualquer projeto unitário entre os dois países. A maioria cabo-verdiana do PAIGC constituía uma maioria sociológica, muito embora, em termos numéricos, fosse uma minoria. A suposição de domínio manifestava-se, ora porque detinha, no contexto social em que se achava integrada, a titularidade do poder, ora porque monopolizava a própria vida do partido".

E o autor recorda que o setor intelectual do PAIGC era maioritariamente de origem cabo-verdiana. Muito mais tarde, quando o assassinato de Cabral era já uma reminiscência, muitos dirigentes tiveram a coragem de admitir que havia desconfianças mútuas. Afinal a ideia da unidade Guiné e Cabo Verde foi o grande trunfo da organização e o verme que no longo prazo levou à rutura os guerrilheiros vitoriosos.
Daniel dos Santos, em capítulo autónomo, traça as grandes linhas da diplomacia do PAIGC e as razões do seu sucesso.

E assim chegamos ao epílogo em que o autor recapitula a complexidade do pensamento de Cabral, a sua evolução e o resultado trágico do seu legado: “A sua herança política foi destruída e delapidada, não pelos seus inimigos mas pelos seus próprios companheiros e camaradas de luta sobre cujos ombros recaíram as responsabilidades de a conservar ad eternum”.

O dado mais extraordinário desta narrativa biográfica, vale a pena insistir, é de que o autor ensaiou demarcar o homem e a obra e não fez outra coisa ao longo de mais de 500 páginas em as misturar. Porque a verdade tinha que vir ao de cima, como o azeite: aquela guerrilha foi urdida por um pensador de génio, um homem que perseguiu vários ideais mas que, em 1960 mudou a sua história para a confundir com a história do PAIGC. E conseguiu-o.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15779: Notas de leitura (810): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...



(Amílcar Cabral), "um pensador de génio",disse MBSantos.
Não sabia, continuo a aprender imenso com este blogue.
Pena o pensamento genial de Amílcar Cabral
não ter dado resultado nenhum...

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Comenta BS que este autor "desmonta algum do fabulário, do intencionalmente mal contado e confronta a história de um PAIGC"

De facto, estive a ler outras coisas na internet, e tal como este autor, caboverdeano, ao que me pareceu, já vão começando a aparecer caboverdeanos a perder os receios de contar as mentiras que tiveram de engolir à 40 anos.

Os caboverdeanos antigos ainda continuam mais calados, não sei explicar porquê, do que muitos guineenses antigos que ouvi na Guiné, sobre Amílcar Cabral.

Já há quem diga que as idéias de Amílcar era uma falácia (fui ao dicionário para ver esta palavra, falácia)