CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
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- Os Designers do desenrascanço
Há tempos, em conversa com um senhor Tenente-Coronel, Secretário da Direcção do Núcleo da Figueira da Foz da Liga dos Combatentes, falava-lhe das muitas carências por que passaram os combatentes na Guiné, onde ele não esteve. A certa altura a conversa derivou para as acomodações, conforto, mobiliário, etc., das Unidades no mato, assunto, entre outros, pelos quais mostrou curiosidade. Falei-lhe de como, coisas tão simples como sentarmo-nos numa cadeira à mesa para comer, escrever ou abrir um jornal, depois de uma chegada do mato onde se passou a noite, tantas vezes em condições de extrema adversidade, de como, dizia, coisas tão simples podiam dar a sensação de um grande bem-estar, de uma gratificante recompensa pela noite mal passada, pelo patrulhamento esgotante, enfim. Compreendo que quem nunca passou por um cenário de guerra, tendo de viver em condições precárias com carências de toda a ordem, tenha dificuldade em compreender isto, tal como o significado de um simples banho ou o de levar à boca uma garrafa de cerveja gelada. Mas respeito muito quem, não tendo passado por isso, se mostra interessado em saber como era e dá mostras de ter aumentado a admiração pelas nossas tropas naqueles cenários. Falei-lhe, ainda, de como em vários domínios essenciais, a sobrevivência muitas vezes dependia da capacidade de “desenrascanço” de uns quantos. Até o conforto era melhorado por “carpinteiros” geniais que, improvisando, faziam sair do nada, mesas, cadeiras, estantes, arcas e armários. Porque nem todas as Unidades tinham esses bens básicos distribuídos.
Mas quase todas as Unidades tinham nas suas “esplanadas”, à frente das messes e das camaratas, belíssimas cadeiras feitas de aduelas de pipas e barris..., saídas da imaginação e das mãos de designers de alto gabarito. Que não deixaram marca nas suas obras e de quem hoje ninguém se lembra. O Sr. Tenente-Coronel ficou muito surpreendido: “Com aduelas de barris? Gostava de ver. Por acaso não tem alguma fotografia que me possa mostrar?” Prometi-lhe mostrar ou fazer uns desenhos para ele ver melhor. São esses apontamentos desenhados, uma pequena amostra tirada de algumas fotografias, que aqui deixo como lembrança e gratidão a todos os nossos “designers/carpinteiros” da Guiné do tempo da guerra.
Imagem 1 – Cadeira da “esplanada” da messe de oficiais de Nhala. Nela cheguei a fotografar a “Cilinha”, Cecília Supico Pinto, Presidente do Movimento Nacional Feminino.
Imagem 2 – Cadeira desenhada a partir de uma fotografia de um Tabanqueiro recente no nosso Blogue, que esteve em Aldeia Formosa e em Buba.
Imagens 3 e 4 – Cadeiras da “esplanada” da messe de oficiais de Buba.
____________Nota do editor
Último poste da série de 8 de março de 2016 Guiné 63/74 - P15833: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (41): Estação de Tomar, 28 de Julho de 1983 e Uma White cansada da guerra
4 comentários:
Os tanoeiros portugueses só deixaram de fabricar milhões de barris de 100 litros, para África, para viajarem nos porões da CNN, da CCN e da Sogeral a partir mais ou menos em 1969/70.
O vinho passou a ir a granel como se fosse em petroleiros.
E lá em África, engarrafado, dizia-se que mais economicamente, ecologicamente e mais saudavelmente.
Os bebedores ficaram com saudades do sanguinhal o melhor de Portugal em barris de madeira.
Na Guiné também se consome bastante vinho, se houver, apesar de muita gente ser mussulmana.
Aqui há gato!
Olá Camaradas
Estas cadeiras são mais uma prova do desenrascanço da "malta".
Estavam por toda a parte e com as mais variadas utilizações: vasos de flores, bancos e balcões de bar e até abat-jours de salas...
Era uma solução ecológica, como hoje se diz. Reciclagem avant la lêttre.
Quão de avançados estávamos naquele tempo!...
Embora revelem uma grande vontade "resistir" à adversidade e ao desconforto, o que é sempre positivo em qualquer situação, revelam também o "embaratecimento da guerra" onde era necessário gastar "poucaxinho".
A estas podíamos juntar os candeeiros e abat-jours feitos com garrafas ou balaios ou cascas de abóbora daquelas que as guineenses usavam para fazer vasilhas para uso doméstico.
E os panos fulas pendurados nas paredes? E os invólucros dos obuses transformados em candeeiros de mesa de cabeceira (com cinzeiro acoplado) ou jarras com arranjos de flores secas.
Era giro começarmos a apresentar o "Artesanato do Nosso Desenrascanço" (digo eu...)
Um Ab.
António J. P. Costa
Do que se foi lembrar o singular camarigo Murta!
Só tu amigo Murta, com a tua disponibilidade e predisposição para a análise, em malha fina, da nossa estadia forçada nos matos de África.E havia ainda as mesinhas de cabeceira com caixas de munições... e havia umas caixas de granadas a fazer de assadeiras onde se metiam as batatas e a carne.
Quanto às cadeiras elas eram bem cómodas e serviam a alguns para curar as bebedeiras, até altas horas da madrugada.
Um abraço
Carvalho de Mampatá
Companheiro Murta tenho uma foto em Bambadinca em janeiro de 1973 aquando estava na Ccaç 12 com 3 camaradas sentados em "cadeirões" idênticos que até eram muito confortáveis. Desconheço o autor da obra. Não os vi em mais lado algum dos vários aquartelamentos em que estive durante os 25 meses que passei na guiné.
Um abraço, João Silva
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