quinta-feira, 17 de março de 2016

Guiné 63/74 - P15870: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (8): Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) com data de 4 de Março de 2016:


Quem não se lembra do antigo ditado que diz: "em tempo de guerra não se limpam armas"

Esta é uma afirmação perfeitamente falsa, pelo menos no conceito de um coronel de quem não sei o nome, mas que tinha a alcunha do "Onze".

Estava eu no destacamento do Biombo, do qual guardo boas recordações, quando fui visitado por este oficial, que chegou acompanhado por vários militares armados e também por um major que mal colocou os pés no chão, a primeira coisa que fez, foi mandar formar os meus soldados, neles incluídos uma secção de milícias, tendo de seguida começado a inspeccionar as armas que lhes estavam distribuídas.

Ao encontrar a Mauser de um dos milícias, suja de pólvora, quis saber o porquê, ao que o mesmo respondeu:
- Soldado branco foi à caça.

Foi o suficiente para este coronel olhar para o lado e pretender saber o que se tinha passado. O meu militar, para quem o milícia apontou, lá tentou desculpar-se que tinha encontrado umas munições abandonadas, mas não foi o suficiente juntamente com as minhas justificações, para nos ser levantado um auto, do qual resultou uma punição de 8 dias de detenção para o soldado e de 10 de detenção para mim.

Temos de voltar ao serviço militar, porque esta "punição" nunca chegou a ser cumprida.

Alguns meses antes já havia sido visitado pelo coronel "Onze", no terceiro dia em que cheguei ao Biombo. No total das duas vezes que esteve no destacamento, não permaneceu mais do que vinte minutos, apenas pretendeu saber se estávamos bem fardados e bem barbeados. Em seu entender o barracão a que chamavam destacamento ou quartel, onde nem sequer entrou, tendo entrado apenas na nossa mini cantina, não se encontrava em perfeito estado de limpeza, porque havia algumas folhagens no chão.

Não me perguntou pelo meu estado de saúde, pois eu tinha a cara com um enorme inchaço e também estava com alguma febre devido a um problema dentário, problema este que só se resolveria completamente após o meu regresso à Metrópole e infelizmente com a raiz do dente ao sol.

Não pretendeu saber como é que nos alimentávamos e em que condições os alimentos eram confeccionados, a cozinha era um telheiro apoiado em 4 pilares e pouco mais, e a nossa mesa do "refeitório" era feita de umas quantas tábuas mal pregadas.

E o posto médico? Simplesmente não existia e havia apenas um armário de madeira, que felizmente estava razoavelmente apetrechado com medicamentos, porque a CArt 2520 tinha uma excelente equipa de enfermeiros comandada pelo Furriel Enfermeiro Augusto Costa e da qual fazia parte o Cabo Silva que nos acompanhou durante os seis meses em que permanecemos naquele destacamento. Mesmo assim, quantas vezes fomos pedir medicamentos a uma Missão Anglicana que existia lá perto de nós. Também cooperávamos com esta Missão.

A água, se é que era potável, íamos buscá-la em bidões de gasolina vazios, a um poço existente a mais de quinhentos metros das nossas instalações, de qualquer modo não estava envenenada porque esta seria a primeira habitação de dezenas de rãs que por lá moravam.

E como é que nos defenderíamos se porventura o inimigo quisesse organizar connosco uma "excursão" a partir do Biombo até um sítio qualquer do Senegal ou da Guiné Conacri? Ou, o mais certo seria não haver interesse por parte do PAIGC em nos molestar, porque a zona do Biombo/Ondame era "colónia" de férias dos seus militantes?

Para a iluminação existiam um ou dois "petromax". Eu próprio adquiri um candeeiro a petróleo daqueles que as carroças usavam antigamente, para ter luz nos meus "aposentos".

Gostava de poder dizer ao "meu" coronel que não gastámos 3 munições abandonadas numa prateleira. Gastámos sim, mas foram mais de 3 mil e já não faziam parte da dotação da Companhia, foram trazidas por prevenção quando deixámos o Xime.

A nossa permanência no Biombo foi quase um caso de sobrevivência, os mantimentos não eram nem em quantidade nem em qualidade suficientes para alimentar diariamente quase um pelotão de militares e muitas vezes tivemos que nos socorrer da caça para nos alimentarmos.Também comprávamos por imposição aos nativos das tabancas, cabritos ou galinhas ao preço que nós próprios estabelecíamos, mas nunca roubámos. Algumas vezes também comprávamos uma ou duas pernas de vaca quando havia "choro", cerimónia fúnebre em que os nativos matam os seus animais para as celebrações.

Sempre se procedeu à limpeza de armas, mas não era regra, normalmente era de acordo com a convicção de cada um e até me recordo de um soldado ter disparado acidentalmente um tiro enquanto cuidava da sua G3, foi por pouco que não houve graves consequências, o que contradiz o ditado: "Em tempo de guerra não se limpam armas".

Foi muito ingrato quase no fim da comissão e depois de tantos sacrifícios, de tanto sofrimento, de tanta luta e de tantos perigos passados, ter recebido como recompensa uma punição registada na caderneta militar. Felizmente esta detenção não chegou a se concretizar e acabou por ser ultrapassada. Tenho a perfeita consciência de que fui uma peça importante para a CArt 2520, principalmente para o 3.º Pelotão. Cheguei a ser durante muito tempo o único graduado deste grupo de combate e também o seu comandante, com a certeza de que conduzi os meus homens nas matas do Xime, tão bem quanto o saudoso Alferes Joaquim da Costa Marques e com absoluta confiança dos combatentes deste Pelotão.

O tempo já apagou a ira e a raiva que ficaram dentro de mim, mas quando me recordo deste episódio ainda sinto alguma revolta e essa jamais me abandonará.

Para que não haja dúvidas aqui vai a respectiva transcrição da caderneta militar.

"...e na verificação do estado de limpeza e conservação do material e munições do destacamento de que é comandante, dando lugar a que embora na sua ausência, uma praça metropolitana utilizasse munições que se encontravam abandonadas numa prateleira da cantina e, com uma espingarda Mauser distribuída a um milícia fosse à caça dos pássaros".

Para todos os amigos da Tabanca Grande, aqui vai também um grande abraço.
José Nascimento
____________

Nota do editor

Último poste da série de 13 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15742: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento) (7): O Soldado João Parrinha, natural de Cabeça Gorda, Beja

3 comentários:

José Botelho Colaço disse...

Na vida militar havia muitos oficiais onze.
Eu tive a sorte de ter um capitão comandante que era como se fosse um pai mas um pai amigo dos seus filhos, ainda hoje se nota nos almoços anuais de convívio a consideração que temos pelo nosso capitão porque para todos nós ele continua a ser o nosso capitão (hoje coronel reformado)..
Contar uma pequena passagem nós no Cachil Ilha do Como tinha-mos um pelotão de morteiros adido à companhia como reforço, uma noite talvês devido ao tinto ou Wuisk aparece o alferes com um soldado e uma participação, ele ouviu atentamente o que o alferes argumentou e a seguir chamou à parte um por um e recordo uma das frases que ele disse ao alferes foi, ó nosso alferes não acha que para sofrer já basta o que os homens sofrem aqui, com licença e rasgou a participação e depois do dialogo com ambos sairam o alferes e o soldado lado a lado cientes que o inimigo estava no outro lado da mata e esse é que era preciso combater.

Um abraço Colaço.

Anónimo disse...

Caro camarada José Nascimento,
O Coronel Santos Costa, o Onze que referes, comandava o AGRBIS quando cheguei a Bissau, no fim de Janeiro de 1971. Dele se conta muitas histórias e nesta nossa Tabanca já tive a oportunidade de fazer referência a esse Oficial.
Durante dois meses a CCaτ 3327 sofreu os horrorres do seu comando. Tal como dissestes, as punições apenas serviram para sujar as cadernetas e desejarmos ir para o mato.
Cumprimentos.
José Câmara

Romualdo disse...

Ao Camarada José Julio!
É bom de vez em quando despejar estes pedacinhos de fel para fora das nossas almas, e aliviar um pouco daquele martírio porque lá passamos. Pois todos nós conhecemos o "Onze", era um homem amargurado com a vida, Parece que a esposa não se portou bem, e descarregava a magoa nos seus subalternos. Infelizmente, havia alguns "Onzes" no nosso exercito, Mas Não tanto no teatro de guerra, ai nem sequer ostentavam os galões, porque queriam passar despercebidos, Foram tempos difíceis, mas nós conseguimos!, e hoje confesso que seria uma pena, se não tivesse vivido essa parte da minha vida.
Um abraço Viva a 2520!