Guiné > Região do Óio > Porto Gole > 1º Companhia de Caçadores Indígenas (1964/66) > O Abna Na Onça e o Jorge Rosales
Guiné > Região do Óio > Porto Gole > 1º Companhia de Caçadores Indígenas (1964/66) > Jorge Rosales e o 1º srgt Arlindo Verdugo Alface, junto ao monumento comemorativo da chegada do explorador português Diogo Gomes em 1456.
Fotos (e legendas): © Jorge Rosales (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Dois "homens grandes" que conheci em Porto Gole
por Jorge Rosales (*)
[Ilha das Cabras, Bijagós, julho de 1966... O "comandante" Jorge Rosales, régulo da Magnífica Tabanca da Linha, já no final da sua comissão, depois de ter passado 18 meses em Porto Gole, 1964/66... Alferes miliciano, pertenceu à 1ª Companhia de Caçadores Indígena, com sede em Farim. (Havia mais duas, uma Bedanda, a 4ª, CCAÇ, e outra em Nova Lamego, a 3ª CCAÇ).
Ficou lá pouco tempo, em Farim, talvez uma semana. A companhia estava dispersa. Foi destacado para Porto Gole, com duas secções (da CCAÇ 556, do Enxalé) e outra secção, sua, de africanos. Tinha um guarda-costas bijagó. Ficou lá 18 meses. Passou os últimos tempos, em Bolama, no CIM - Centro de Instrução Militar, a dar recruta a soldados africanos. É membro da nossa Tabanca Grande desde 9/6/2009 (*)]
Depois de dez dias entre Bissau e Farim, vejo-me a caminho de Porto Gole, Geba acima, a favor da maré; ia num barco da casa “Gouveia”, que levava géneros para Porto Gole e, talvez, Xime e Enxalé (**) …
No barco, sentia-me ansioso, apreensivo: Mafra, Cica 2, viagem no “Alfredo da Silva”, com passagem pelo Mindelo e Praia, pertenciam ao passado.
Tentava adivinhar qual a reacção do pelotão veterano de Porto Gole, à chegada do Alferes “maçarico”. Era, para mim, um salto no escuro...
No barco, sentia-me ansioso, apreensivo: Mafra, Cica 2, viagem no “Alfredo da Silva”, com passagem pelo Mindelo e Praia, pertenciam ao passado.
Tentava adivinhar qual a reacção do pelotão veterano de Porto Gole, à chegada do Alferes “maçarico”. Era, para mim, um salto no escuro...
À minha espera, como maior graduado, estava o 1º Sargento [Arlindo Verdugo] Alface. Foi ele que me orientou, com os seus conselhos e “palpites”.
Tinha a sabedoria de transmitir, com subtileza, a sua experiência, coisa que não vem nos livros… adquire-se. (***)
Para o Abna Na Onça, capitão de segunda linha, o Alface era o confidente, o amigo leal; fez questão de tornar o Alface seu irmão de sangue.
Assisti à cerimónia de troca de sangue destes dois homens, com os braços unidos.
Num fim de tarde, na sua tabanca, o Abna chamou-me para me mostrar, com orgulho, a sua assinatura: “ Abna na Onça Alface”.
Foi, para mim, um privilégio conviver com estes dois “Homens Grandes“: um, balanta de Porto Gole, o outro, alentejano do Cano [, concelho de Sousel, distrito de Portalegre].
O Abna morreu em combate, em Bissá, em [14 de[ Abril de 1967, como relata o Abel Rei no seu livro, “Entre o Paraíso e o Inferno“. O Alface, também já não está entre nós, vítima de atropelamento na zona de Lisboa.
A “Tabanca Grande“ fez-me voltar à Guiné, às suas recordações… e a mais forte, de todas elas, deu motivo a este relato.
Jorge Rosales (***)
2. Comentário de Cherno Baldé:
(...) O apelido do cap Abna "Na Onça" sugere-me uma grafia errada por simpatia, como diriam os entendidos na matéria. Existe o apelido balanta muito próximo, "Na Onta", que, provavelmente, alguém transformou em "Onça", para não variar.
De uma forma geral, o português metropolitano, na altura, não era bom em captar e grafar os nomes indígenas, existem variadíssimos exemplos disso, como o caso de um familiar meu cujo apelido "Baldé" foi transformado em "Valdez" para não complicar. Se ele, de facto, tivesse o tal apelido, "Na Onça", hoje apareceriam muitos com o mesmo apelido, o que não me parece ser o caso" (...).
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2. Comentário de Cherno Baldé:
(...) O apelido do cap Abna "Na Onça" sugere-me uma grafia errada por simpatia, como diriam os entendidos na matéria. Existe o apelido balanta muito próximo, "Na Onta", que, provavelmente, alguém transformou em "Onça", para não variar.
De uma forma geral, o português metropolitano, na altura, não era bom em captar e grafar os nomes indígenas, existem variadíssimos exemplos disso, como o caso de um familiar meu cujo apelido "Baldé" foi transformado em "Valdez" para não complicar. Se ele, de facto, tivesse o tal apelido, "Na Onça", hoje apareceriam muitos com o mesmo apelido, o que não me parece ser o caso" (...).
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 9 junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4488: Tabanca Grande (151): Jorge Rosales, ex-Alf Mil, Porto Gole, 1964/66, grande amigo do Cap 2ª linha Abna Na Onça
(...) Era muito amigo do mítico Capitão de 2ª linha, o Abna Na Onça, chefe espiritual, poderoso, da comunidade balanta da região, a quem o PAIGC havia cometido o erro fatal de “matar duas mulheres e roubar centenas de cabeças de gado”. O seu prestígio, a sua influência e e o seu carisma eram tão grandes que ele sabia tudo o que se passava numa vasta região que ia de Mansoa a Bambadinca (nomeadamente, importantes informações militares, como a passagem de homens e armas do PAIGC).
Jovem (teria hoje 72/73 anos se fosse vivo), era um homem imponente, nos seus 120 kg. Schultz tinha-lhe oferecido um relógio de ouro e uma G3 como reconhecimento pelos seus brilhantes serviços … Mais tarde, será morto, em Bissá, em 14/4/67, com seis dos seus polícias administrativos, todos eles residentes em Porto Gole… Nesse dia o destacamento é abandonado pelas NT: “ um dia trágico para quem estava no inferno de Bissá", como escreveu o Abel Rei no seu diário ("Entre o paraíso e o inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné, 1967/68, editado em 2002, pp. 68/70) (...)
(...) Enquanto [o Jorge Rosales] lá esteve, em Porto Gole, havia um certo respeito mútuo, de parte a parte. A influência de Cabral era evidente, fazendo a distinção entre o povo (português) e o regime (colonialista). Podiam deslocar-se num raio de 10 km…. Mas a ligação com Mansoa já se perdera. O troço já não era seguro. Em Mansoa estavam os respeitados Águias Negras (BART 645, que dominavam o triângulo do Óio: Olossato, Bissorâ e Mansabá) .
Do lado do Geba, eram os fuzileiros que impunham a lei e o respeito. Lançavam uma bóia e fundeavam a LDG em frente a Porto Gole. Vinha quase tudo por rio: os frescos, a bianda, os cunhetes de munições… (excepto o correio, que era lançado do ar, de DO 27, e às vezes ir cair no tarrafo; em contrapartida, o correio expedido ia de LDG... Singuralidades de Porto Gole que não tinha uma simples pista de terra batida, para as aeronaves). Tem vários amigos fuzos, desse tempo, incluindo o comandante Castanho Pais.
Do outro lado, a nascente estava a CCAÇ 556, no Enxalé… Também conhece dois furrieís do Enxalé, de quem se tornou amigo. Também passou por Fá. E no final da comissão, esteve em Bolama, por onde passavam os periquitos… Conviveu com algumas companhias que, de Bolama, partiam para operações no continente (...).
(**) Vd. poste original: 17 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5122: Estórias avulsas (15): Homens Grandes, Jorge Rosales (ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ - Porto Gole -, 1964/66)
(...) Era muito amigo do mítico Capitão de 2ª linha, o Abna Na Onça, chefe espiritual, poderoso, da comunidade balanta da região, a quem o PAIGC havia cometido o erro fatal de “matar duas mulheres e roubar centenas de cabeças de gado”. O seu prestígio, a sua influência e e o seu carisma eram tão grandes que ele sabia tudo o que se passava numa vasta região que ia de Mansoa a Bambadinca (nomeadamente, importantes informações militares, como a passagem de homens e armas do PAIGC).
Jovem (teria hoje 72/73 anos se fosse vivo), era um homem imponente, nos seus 120 kg. Schultz tinha-lhe oferecido um relógio de ouro e uma G3 como reconhecimento pelos seus brilhantes serviços … Mais tarde, será morto, em Bissá, em 14/4/67, com seis dos seus polícias administrativos, todos eles residentes em Porto Gole… Nesse dia o destacamento é abandonado pelas NT: “ um dia trágico para quem estava no inferno de Bissá", como escreveu o Abel Rei no seu diário ("Entre o paraíso e o inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné, 1967/68, editado em 2002, pp. 68/70) (...)
(...) Enquanto [o Jorge Rosales] lá esteve, em Porto Gole, havia um certo respeito mútuo, de parte a parte. A influência de Cabral era evidente, fazendo a distinção entre o povo (português) e o regime (colonialista). Podiam deslocar-se num raio de 10 km…. Mas a ligação com Mansoa já se perdera. O troço já não era seguro. Em Mansoa estavam os respeitados Águias Negras (BART 645, que dominavam o triângulo do Óio: Olossato, Bissorâ e Mansabá) .
Do lado do Geba, eram os fuzileiros que impunham a lei e o respeito. Lançavam uma bóia e fundeavam a LDG em frente a Porto Gole. Vinha quase tudo por rio: os frescos, a bianda, os cunhetes de munições… (excepto o correio, que era lançado do ar, de DO 27, e às vezes ir cair no tarrafo; em contrapartida, o correio expedido ia de LDG... Singuralidades de Porto Gole que não tinha uma simples pista de terra batida, para as aeronaves). Tem vários amigos fuzos, desse tempo, incluindo o comandante Castanho Pais.
Do outro lado, a nascente estava a CCAÇ 556, no Enxalé… Também conhece dois furrieís do Enxalé, de quem se tornou amigo. Também passou por Fá. E no final da comissão, esteve em Bolama, por onde passavam os periquitos… Conviveu com algumas companhias que, de Bolama, partiam para operações no continente (...).
(**) Vd. poste original: 17 de outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5122: Estórias avulsas (15): Homens Grandes, Jorge Rosales (ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ - Porto Gole -, 1964/66)
(***) Último poste da série > 27 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17704: (De)Caras (95): Abna Na Onça, cap 2ª linha, comandante de uma companhia de polícia administrativa, regedor do posto do Enxalé, prémio "Governador da Guiné" (1966), morto em combate em Bissá, em 14/4/1967, agraciado a título póstumo com a Cruz de Guerra de 1ª Classe (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Enxalé e Ilha das Galinhas, 1966/68)
6 comentários:
No portal da Liga dos Combatentes > Mortos no Ultramar, o nome que aparece é Abna DA ONÇA, cap exercito, morto em combate, em 14/4/1967... É de facto revelador da nossa dificuldade em lidar com os nomes gentílicos...
http://www.ligacombatentes.org.pt/mortos_no_ultramar
Jorge Rosales
28 ago 2017 10:44
Obrigado Luís, pela tua lembrança. Só te digo que foram "grandes" homens, com quem aprendi muito.
No outro dia, arranquei do Couço, com a familia e fui até ao Cano, onde almoçei. A minha mulher, perguntou, o porquê do Cano...
_....olha, é para recordar o Alface !
Forte abraço,
Jorge Rosales
Luís
Já agora vou fazer uma correcção.
O CANO é uma freguesia do concelho de Sousel, distrito de Portalegre.
Jorge Rosales
Jorge, está feita a correção. Obrigado pelo reparo, Confudi com outra povoação, Cano, Cercal do Alentejo, Santiago do Cacém.
Agora não te sei dizer como se diz corretamente: "natural do Cano" ou natural de Cano" ?
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cano_(Sousel)
Se calhar os naturais de lá não gostam de dizer que nasceram no Cano, ou são do Cano... *e como os de Pombal, que são de Pombal, ansceram em Pombal. E os de Cuba, também gostam de frisar: não vens a Cuba, mas à Cuba...
Gosto muito de respeitar as idiossincrasias de cada um...
Sei que tens casa no Couço, concelho de Coruche, já às portas do Além... Tejo. Goza bem esses ares e essas "pomadas"... As vindimas estão à porta, aqui para os mesmos... Hoje está a chover (aguaceiros...) e a trovejar, o que é bom para as videiras, que estão a sofrer de stress hídrico... Estão espetaculares as uvas, este ano, oxalá não caia granizo...
Comandante Rosales, amigo e camarada, gostei muito de ler o teu texto. Em poucas linhas, com muita subtiliza, delicadeza e sabedoria fizeste um belo retrato desses teus amigos e camaradas de todos nós.Eu sei que tens estórias interessantes, não as guardes só para alguns, contas a todos. Como tu também eu fui para a Guiné, em rendição individual, no Alfredo da Silva e passei pelo Mindelo e pela Praia . Fui para Buba comandar um pelotão que estava a fazer o luto do alferes que tinha morrido à menos de um mês. Tive tal como tu uma grande ajuda, no meu caso do furriel Zamith Passos, com quem falo ainda muitas vezes por telefone.
Um grande abraço.
Francisco Baptista.
Pergunto-me: o que será feito da família deste homem, que foi nosso camarada, combateu ao nosso lado, o Abna Na Onça, primeiro alferes, depois tenente, depois capitão, mesmo de 2ª linha ?
O Schulz deu-lhe o prémio "Governador Geral da Guiné" em 1966, o bravo balanta deu umas belas (?) passeatas por Lisboa e arredores, à conta do erário público, morreu em combate, "pela Pátria", em Bissá com mais 6 dos seus homens da polícia administrativa, deram-lhe a título póstumo a cruz de guerra de 1ª classe... E depois ? ... O que é feito daquela mulher e daquele filho que aparece na foto do Zé Viegas ? O que aconteceu à família daqueles homens que, afinal, apostaram no "cavalo errado" ? Ao Abna Na Onça, ao Mamadu Bonco Sanhá, ao Baticã Ferreira e tantos outros bravos e bons guineenses, tão bravos e bons como os melhores dirigentes e combatentes do PAIGC ?
Vamos ser cínicos e falar nestes termos ? Lançaram os dados e perderam no jogo da história ? A África do colonialismo e pós-colonialismo está cheia destas histórias. A História está cheia destas pequenas histórias de gente que perdeu, perdeu tudo, a vida...
Mas o mesmo podemos dizer da nossa geração que fez uma guerra, estúpida, morosa e inútil... Todos temos, portugueses e guineenses, que combateram, num lado e no outro, a mesma sensação de frustração, desalento, luto, revolta... O balanço começa a ser feito e é muito negativo...
Por mim, caro Fernando Pessoa, não valeu a pena... Admito que tenha a alma pequena. Ou nem sequer tenha alma...
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