quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Guiné 61/74 - P17715: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXV Parte: Cap XIV - Sangue, suor e lágrimas até ao fim... Op Suspiro, a última realizada pelos "Lassas", a 5 de novembro de 1966.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763, os "Lassas" (1965/67) > Cambança do rio Ganjola, no decurso da Op Petardo, em 10 de junho de 1966.


Foto (e legenda): © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 763, os "Lassas" (1965/67) >  Mapa com as zonas de intervenção dos "Lassas". Durante a comissão, estima-se que a CCAÇ 763 tenha percorrido aproximadamente 16 mil quilómetros a pé, 6 mil  de viatura e mil  de LDM. Teve 10 baixas (mortais), sendo 7 em combate e 3 por doença. Sofreu 53 feridos. Dos relatórios constam ter sido feitos 45 prisioneiros e causado 40 feridos e 107 mortos ao então IN.


Infografia: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]








Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], mais conhecido por Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67. Do mesmo autor já aqui publicámos, em 2008, em dez postes, o seu fascinante livro "Pami N Dondo, a guerrilheira", ed. de autor, Estoril, 2005, 112 pp.

Mário Fitas foi cofundador e é "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô. [Foto em baixo, à direita, Tabanca da Linha, Oitavos, Guincho, Cascais, março de 2016]




Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > XXV Parte > Cap XIV (pp. 87-93)

por Mário Vicente

Sinopse:

(i) faz a instrução militar em Tavira (CISMI) e Elvas (BC 8),

(ii) tira o curso de "ranger" em Lamego;

(iii) é mobilizado para a Guiné;

(iv) unidade mobilizadora: RI 1, Amadora, Oeiras. Companhia: CCÇ 763 ("Nobres na Paz e na
Guerra");

(v) parte para Bissau no T/T Timor, em 11 de fevereiro de 1965, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa.;

(vi) chegada a Bissau a 17:
(vii) partida para Cufar, no sul, na região de Tombali, em 2 de março de 1965;

(viii) experiência, inédita, com cães de guerra;

(ix) início da atividade, o primeiro prisioneiro;

(x) primeira grande operação: 15 de maio de 1965: conquista de Cufar Nalu (Op Razia):

(xi) a malta da CCAÇ 763 passa a ser conhecida por "Lassas", alcunha pejorativa dada pelo IN;

(xii) aos quatro meses a CCAÇ 763 é louvada pelo brigadeiro, comandante militar, pelo "ronco" da Op Saturno;

(xiii) chega a Cufar o "periquito" fur mil Reis, que é devidamente praxado;

(xiv) as primeiras minas, as operações Satan, Trovão e Vindima; recordações do avô materno;

(xv) "Vagabundo" passa a ser conhecido por "Mamadu"; primeira baixa mortal dos Lassas, o sold at inf Marinho: um T6 é atingido por fogo IN, na op Retormo, em setembro de 1965;

(xvi) a lavadeira Miriam, fula, uma das mulheres do srgt de milícias, quer fazer "conversa giro" com o "Vagabundo" e ter um filho dele;

(xvii) depois de umas férias (... em Bissau), Mamadu regressa a Cufar e á atividade operacional: tem em Catió, um inesperado encontro com o carismático capelão Monteiro Gama...

(xviii) Op Tesoura: dezembro de 1965, tomada de assalto a tabanca de Cadique, cujas moranças são depois destruídas com granadas incendiárias.

(xix) Cecília Supico Pinto e outras senhoras do MNF visitam Cufar no início do ano de 1966 e Mamadu é internado no HM 241 (Bissau).

(xx) um mês depois, regresso a Cufar, regresso à guerra. Põe o correio em dia. Lê e relê a carta de Maria de Deus [MiMê], uma paixão escaldante dos tempos de "ranger" em Lamego e por quem estava quase para desertar, antes da data de embarque para a Guiné; a jovem morrerá prematuarmente, em França, aos 24 anos.

(xxi) revolta e dor pela morte do seu camarada e amigo, o fur mil Humberto Gonçalves Vaz (Op Teste, na região de Cabolol];

(xii) o cap Costa Campos deixa a companhia; a comissão está a chegar ao fim: a Op Suspiro é a última operação realizada, a 5/11/1966.




Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - XXV Parte: Cap XIV:  Regresso à Guerra [3] [pp. 87-93]



Com o meu amigo Humberto já não podemos falar desta merda e do nosso velho Portugal. Agora sim, em parte estou em sintonia com ele, pois apesar de quatrocentos anos de colonização, não fize­mos aqui senão porcaria e os que não o querem ver, continuam sendo piores que os cegos. Este caso já não é de guerra é, de facto, como tu dizias, político.

Não é falta de moral, nem medo. Estou-me cagando para morrer aqui ou noutro lado qualquer! É falta de ética? Sim, é bem possível, só que agora, talvez ainda pudéssemos acompanhar o comboio e fazer algo bonito. Mas, infelizmente, não estou a ver nada. Tenho o pressentimento de que, quando alguém entender e quiser fazer alguma coisa, estaremos todos com as calças na mão e aí vai ser já muito pior para todos.

Só em pleno século vinte, começámos aqui administra­tivamente a fazer qualquer coisa. Que poderemos querer agora? Qual a cultura? Qual a história nossa aqui presente?

Recordo perfeitamente também a controvérsia quanto à utilização do termo “Velho do Restelo”. Humberto discordante, tinha uma perspectiva que roçava o incompreensível? Para quem?

Falava ele sobre o “Velho”, na assembleia que se formava na messe de sargentos. Sargentos? Porque não furriéis milicianos? Questões económicas? Interessante, a interpretação do Velho do Restelo por Humberto, dizia ele:
-Oh gentes! Deixai o “Velho” sossegado, leiam os Lusíadas, e não ponham em Camões intenções as quais ele nunca teve.

Será Camões contraditório? “C´um saber só de experiência feito,” “tais palavras tirou do esperto peito”. Esta voz veneranda é digna de ser ouvida com atenção. As palavras aos que partem, são precedidas da Mãe.
- Qual é a estrofe, Mamadu? Se não estou em erro é a 90 ou por aí, do Canto IV. E das palavras da esposa. Veja-se a visão de conjunto dos frágeis que ficam: Mães, esposas, filhos, velhos e meninos. Portanto por detrás do “Velho”, está o povo anónimo. As suas palavras são puras análises da condição humana. Segundo ele as bases da viagem do Gama são: a glória de mandar, a vã cobiça a vaidade que se apelida de fama. Impulsos que não passam de fraudulento gosto. Que se é próprio da condição humana ser insatisfeito? Dura inquietação da alma e da vida, veja-se os exemplos dados de Prometeu e Ícaro. Tenhamos em atenção que o Canto!?

-Lopêz! Vai ao meu abrigo e traz-me os Lusíadas, não vá eu confundir isto tudo!

Enquanto o impedido da messe se deslocava ao abrigo de Humberto, que se situava a norte do aquartelamento, virado para Cufar Nalu, Bernardino gerente de messe, voltava a trazer mais umas bazucas e whiskys para o pessoal. Mas entretanto o furriel Humberto ia continuando:
-O Canto IV contem 104 estrofes, pelo que a análise deve ser feita até ao final.


E mesmo com a chegada do livro, o furriel continuava a sua análise:

-Temos então que a análise que se possa fazer, sabendo o “Velho” que o homem estranho animal, que não ouve a voz do bom senso e da lógica lucidamente, ele sabe que as suas não serão ouvidas, procura então inverter os campos, veja-se… Lopez, dá cá o livro!

Folheando…
-Precisamente 100 e seguintes. Oh, gente, temos aqui então a opinião política do “Velho”, e aqui eu vejo Camões e não o “Velho”, pois estão confirmadas as duas correntes existentes no tempo, a expansão para o Norte de África em detrimento do Oriente. Não será que Camões põe na boca do “Velho” a sua própria opção? Com ela ou sem ela, aqui estamos nós, nas mesmas condições, embora com armamento diferente.
- É impossível falar com Camões! Não há duvidas que acima de tudo, mesmo considerando a corrente da época, é que ele era um grande humanista.

Sorrindo para a malta, saiu-se com esta:
-O que o Velho do Restelo critica em tom sério e austero, Gil Vicente fá-lo satiricamente! É ou não verdade?

Seriam subversivas, estas culturais conversas? Esperamos que nin­guém tenha a ousadia de nos considerar antipatriotas, pois nunca virámos a cara às nossas responsabilidades, e medo também jul­go que não o tenhamos. Aliás, valentes e loucos são todos os "Las­sas" .

Vejo-o perfeitamente, na tabanca de Impungueda, fa­zendo segurança a um comboio de barcos mercantes, para abas­tecimento a Bedanda. Eu, sentado de encontro a um cajueiro, tronco velho carcomido, mantendo a G3 assente sobre as pernas esticadas, no solo de terra vermelha. Ao lado, junto a uma palho­ta, duas crianças nuas, encostadas ao barro da parede, olham para os militares. No chão, vê-se um pau rachado em cuja ponta fendida, se encontra incrustada uma cunha de ferro, amarrada por fita de liana. Humberto de pé, à minha frente, olhando o arcaico objecto, nele pegou. Mirou-o bem, pegou-lhe pelo cabo e com movimento rápido, cravou o simulado machado, no enor­me poilão que há frente se encontrava. Aproximou-se, empurrou o capacete um pouco para trás, dobrou-se sobre os joelhos fican­do de cócoras na minha frente, sorriu e disse:
-Já viste, Mamadu!? Olha o resultado de quatrocentos anos, da nossa obra para estes desgraçados!

E apontando as crianças proferiu:
-Se não fosse a escola dos militares de Cufar, eles nem o nome de Portugal conheceriam. Olha para o instrumento de trabalho que nós damos a estes desgraçados! Vês? Mas ... há a contradição! Os pais, amigos, e irmãos deles têm armas melhores que as nossas. Como se pode comparar situações e métodos tão antagónicos?

Olhei para os miúdos, e verifiquei que Humberto estava certo. Só agora aqueles pobres diabos, podiam aprender a língua da nacionalidade imposta, há quatrocentos anos.

Assim eram muitas vezes as conversas entre estes dois furriéis.

Na semana seguinte, voltamos novamente para os lados do norte, Cabolol, e o que existe á sua volta, já se toma obses­são. Mas as coisas, vamo-nos apercebendo, não melhoram e continua tudo sem dar aquela volta necessária que se espera. A sul vamos controlando, e as populações mantêm-se relativa­mente fiéis mas, a partir de Boche-Mende, para norte, é tabu. 

Entramos então na operação Saguim, para verificar o que se passa por Cachaque. Evitamos seguir pela estrada até à ponte do rio Caianquebam, onde tínhamos sido emboscados a outra semana. Utilizamos outra forma de progressão e, pelas três da manhã, alcançamos o atalho para Cachaque, cambando o rio. Podemos agora verificar e confirmar que as coisas estão muito diferentes do que anteriormente era, pois a C.CAÇ chegou a fazer isto com dois grupos de combate. E mais, até a fazer nomadização. Agora vamos três companhias do exército e, mesmo assim, temos pro­blemas. Nós fazemos muito estrago, é verdade, mas também levamos muita pancada. Carlos tinha razão quando falava na inutilidade do Cachil.

Mas, voltemos então à Op Saguim. Após a cambança do rio, a CCAÇ e a outra companhia dispõem-se em linha e iniciam a batida no sentido norte sul. A tabanca foi cercada e a população foi reunida. Constituída por mulheres e crianças essencialmente, havendo alguns homens válidos, rece­bemos a informação que o IN não se encontrava naquela zona, mas sim mais a norte, na região de Boche-Bissã, e que, por ve­zes, transitavam por ali grupos de elementos armados, mas vin­dos de Cansalá. Desta vez regressámos sem contacto com o IN.

A oito de Março, um ano depois de aportar a Cufar, Car­los abandona os Lassas nas mãos do Bolinhas. Valha-nos São Paulo.

Quem parte não leva saudades, quem fica, tem pena de não partir. A experiência de Carlos é vista pelos cegos dos gabi­netes.

Com esta partida de Carlos, renasce uma esperança na CCAÇ 763, é possível que olhem para a nossa obra e que, em vez dos louvores e condecorações, nos coloquem num local onde se descanse um pouco, pois a continuar neste ritmo, em breve vão começar a aparecer situações graves.

Vã esperança a destes homens a quem, depois de lhe comerem a carne, irão tirar-lhe a pele e tentarão com os seus ossos refinar açúcar. Meus amigos, há três hipóteses apenas: ou morrem na estrada de Cabolol, tanto faz, ou ficam apanhados da mona e são evacuados para tratamento no Júlio de Matos, ou en­tão resistentes, antes quebrar que torcer aguentarão o pacote até entrarem directamente daqui para o Niassa.

Vontade e sorte, azar ou pouca sorte, o destino já nos está traçado.

Mamadu concentra a mente em duas forças: Ou o padre velhote orou e pediu a Deus por si e estará safo, ou então o homem grande "palhinha" de Miriam, não deixa o diabo fazer entrar bala no seu corpo. Outras alternativas não vê.

Voltamos a Darsalame, executando a Op Safanão.

Desta vez ainda entrámos nas bordinhas da mata. Não espera­vam a nossa manobra. Enquanto estavam entretidos connosco, os periquitos apareceram-lhe nas costas, e tiveram que dar às de Vila Diogo. Eis aqui a sorte, azar, ironia do destino. Os periquitos que tinham andado todo o dia na mata sem contacto e sem dar um tiro, só a sua aproximação fez o IN debandar. Quando se reuniam a nós, um tiro isolado apanha um pobre soldado em pleno coração. Mamadu, já um pouco longe do militar guerrilheiro, voltou a sentir os olhos húmidos por aquele pobre jovem.

Cuidado rapaz, ainda há muito pela frente e, se começas a ficar sentimental, é uma merda. Acorda! Isto está para durar.

Abril [de 1966]. Continuamos a obra a sul, e a manutenção da população em fidelidade. Mas há que voltar para norte. A CCAÇ começa a estar muito cansada, e as baixas vão minando o moral, influenciando e reflectindo-se no desempenho das missões, mal conseguimos arranjar dois grupos de combate, pois o resto está no estaleiro, mas vamos com a milícia efectuar a operação Toi a Camaiupa e Cachaque. Sem problemas, conseguimos falar nova­mente com o pessoal nativo de Cachaque. O chefe de tabanca informa que tinham sido levados para Cansalá por um grupo IN, chefiado por um indivíduo de nome Brandão. Mais tarde teriam fugido e regressado a Cachaque. Seria? Mamadu tomou-se incrédulo. Já não acredita em ninguém.

No regresso, no cruzamento de Cachaque com a estrada de Cabolol, monta-se uma emboscada. Nada de novo e nem viva alma. Levantamento da emboscada e voltamos a Cufar. As viaturas vão buscar o pessoal à entrada da mata de Cufar Nalu na estrada para Catió. O furriel retoma o seu velho hábito de se sentar no tejadilho do unimog, por cima do condutor. A visuali­zação da paisagem de capim seco leva-o para longas terras, para a sua planície, para confirmar o contraste. É Abril. A planície não deve mostrar a sua terra, mas sim a pujança da beleza parida no seu ventre. O furriel deixa-se levar no enlevo do seu pensa­mento, e vê os caminhos bordejantes de douradas grisandras dançando na brisa primaveril. Os montes e vales, telas verde­jantes com maravilhosas pinceladas dos arroxeados chupa-méis, alternando com a margaça e margaridas de áureo olho e alvas pétalas, mostram a beleza da Planície. Na cidade, a pequenada começará pacientemente com uma agulha, enfiando as marga­ridas em linha grossa, fazendo os seus colares e grinaldas com que se enfeitam e à boneca de trapos, que será posta em simulado altar, pedindo depois aos transeuntes e vizinhos, um tostãozinho para a “Maia”. Assim irão tentando mais qualquer coisa, para mediar o magro mealheiro. As ruas encher-se-ão de cheiroso rosmaninho, para dar passagem à procissão do Senhor dos Passos que rememorando a Via-sacra a caminho do Gólgota, percorrerá todos os Passos da cidade. A semana da Paixão termi­nará com o enterro do Senhor. É Páscoa, é Ressurreição, devia ser renovação, mas a civilização, depois de perder a Fé em Deus e no próprio homem, volta-se para a mistificação das formas e cria símbolos, embalagens ocas que, obsessivamente vai cuidando, tentando esconder o vazio em que existe.

Diz sim! Diz, Maria de Deus que eu sou um romântico, coração mole, travestido de homem duro. Podes dizê-lo, contigo eu sou obrigado a reconhece-lo, mas que mais ninguém o saiba, principalmente Tânia. Pronto, não vou pensar mais nisso! Ou vou? Eterno indeciso!...

Pensa na sua aldeia, e percorre-a através da poesia de Manel Piorna.


Recordo-te!...
Nas desalinhadas calçadas
De pedra britada.
No Rossio terreiro
Ginásio da pequenada.


Contorno-te!...
Em cada Esquina
Pilar da tua memória.
Em cada largo
A pedra marco da história.

Descubro-te!...
Em cada casa
Orgulhosa de alva brancura.
Aldeia planície
Do coração saudosa procura.

Revejo-te!...
Aninhada, ao redor da Igreja
Em penitente oração.
Vila Fernando agora...
Voltando a Conceição.

Ouço-te!...
No anunciar da Natureza
Os diversos destinos.
Repicando em festa ou dobros saudade
Os teus sinos.


Suplico-te!...
Jardim de grisandras e chupa-méis
Horizonte sem serra.
Planície! Dá-me abrigo no teu ventre...
Amada terra!


-Então meu furriel, não desce?
- O quê?
- Já chegámos?!.

Mamadu não tinha dado pelo caminho nem pela entrada no aquartelamento.

A vida não pára e os Lassas também não. Maio, Junho, o chefe de grupo armado IN Ala Na Mone e Varna Na Buta, constantes do ficheiro fotográfico, são aprisionados por um grupo de combate, numa rusga em Cantone e em Mato Farroba são aprisionados Sande Na Manan de Catunco e Sulé Na Brama de Cabedu. As operações continuam: Signo, Sonda, Sarilho, nesta operação a população de Cachaque a seu pedido, foi recolhida e levada para Catió. 

Na Op Petardo vamos para Ganjola, mas já não somos uma Companhia de Caçadores, somos um Grupo a quem outros têm de emprestar pessoal. Lá está a 1484 a ceder os seus Grupos de Combate, tempos duros, amigo Benito! Obrigado a ti e aos teus homens pelo companheirismo.

Chegamos à triste situação de só conseguirmos arregi­mentar quarenta e oito Lassas em condições operacionais. É uma tristeza!. .. Paolo chega a ir a Bissau e tomar posição, como já foi descrito. Se não fossem outras causas, o mostrar que tinha os tomates no sítio certo, podia-lhe custar uma porrada em grande. Carlos, apesar de estar fora, ainda era útil.

Na operação Petardo, foi-nos dada a oportunidade de ver um homem chorar e desistir de viver. É simplesmente horrível quando a pessoa já não acredita nos outros e em si própria. Os rios de maré são autênticas ratoeiras, para os cambar, é neces­sário esperar pelo momento certo, e saber fazer a cambança, ou seja, a passagem para a outra margem. Tem saber, não há dúvida, e só a experiência nos ensina e dá o saber. Como as margens são só lodo, a abordagem tem de ser feita de forma a haver uma distribuição do peso do corpo, por uma base o maior possível, e nunca devem vários homens passar pelo mesmo sítio; de forma, que a melhor maneira de o fazer, na generalidade é passar de gatas. Esse gatinhar terá que ser arrastante, de forma a não nos enterrarmos muito na lama, porque como nas areias mo­vediças, quanto mais força fazemos, mais nos enterramos. Foi pois o que aconteceu ao pobre soldado periquito, durante a ope­ração referida. 

Após cumpridos os objectivos, começámos o re­gresso e havia que atravessar um dos milhares de pequenos rios que enchem esta terra. Os Lassas já macacos velhinhos como o caralho e a malta da 1484, já experientes também, foram pas­sando de gatas, pondo ramos de tarrafo, para melhorar a sustentação. A ânsia do regresso, por vezes é perigosa, e já tivéramos experiências dolorosas por causa disso. Mamadu, com a sua secção em último escalão, aguardou mantendo a segurança. Praticamente tudo passado, foi a vez de Tambinha, com os seus homens do outro lado, tomar posições de segurança, para os Vagabundos de Mamadu passarem, o que foi simples e rápi­do. Só que havia um problema: um periquito, da 1499 enterrado até à cin­tura, debatia-se num descontrolo total. E para fazer parar o ho­mem? Estar quieto, não se mexer, para haver possibilidade de arrancá-lo daquela si­tuação? Era impossível! Para não lhe darem dois socos e pô-lo a dormir, como se faz aos náufragos que se estão a afogar, o fur­riel teve de gritar:
-Pára porra! Que merda é esta? Temos aqui crianças?!
-Vão-se embora! Eu morro aqui! - tespondeu o periquito.

As lágrimas caíam-lhe em catadupa, e foram as únicas palavras que lhe saíram da boca. Homem completamente no fundo, acei­tando piamente a morte.

Mamadu informa pelo rádio para na frente aguentarem um pouco. Manda cortar ramos de tarrafo, que são estendidos até junto do esgotado militar, e diz a Orlando para se esticar sobre a cama ramificada dos pedaços de tarrafo. Orlando, deitado, pede a mão ao camarada, mas sente nela uma mão vazia e sem vigor nenhum. Mamadu manda retirar a arma ao soldado e as cartu­cheiras já semienterradas. À outra malta, pede mais ramos de tarrafo, que Orlando agora vai enfiando junto às pernas do soldado, que parece ser já decepado tronco, rebentando por baixo. Trabalho pronto, vamos ao mais difícil: tentar acalmar o homem. O fur­riel, agora com voz calma e incutindo-lhe confiança, manda-o inclinar o corpo para a frente, e não fazer força nenhuma. Tem de ser rápido, pois o soldado parece estar a entrar em estado de cho­que. Pede a Orlando, que lhe agarre o camuflado com unhas e dentes. Entretanto, já uma corda humana ligada aos pés de Or­lando, estava preparada para entrar em acção.
-Atenção malta, vamos puxar o Orlando devagar até ele estar firme, e sentir que o homem está a mexer, O.K.!?
-Orlan­do, quando sentires que és capaz de o sacar, grita para dar o puxão final!
-Certo, meu furriel.
-Vá pessoal, devagar, o homem é nosso caralho! Ou ele ou nós todos juntos.

Mamadu vai entusiasmando e morali­zando os seus homens. De repente o corpo de
Orlando começa a esticar, e dá um berro:
-Força!

São momentos de sufoco. O pessoal puxa e Orlando aguenta. Não se nota nada, o camuflado do infeliz começa a rasgar e a malta começa a gritar:
-Vai! ... vai!

E foi mesmo, o corpo do homem começa a subir e o de Orlando a deslizar. Está ganho, os Vagabundos sentem-se orgulhosos, e o pobre rapaz chora, tentando pôr-se de pé. As unhas de Orlando estão rasgadas e começam a sangrar. Eis aqui com a maior sim­plicidade, a trilogia do Sangue, Suor e Lágrimas.

Mereceis melhor sorte, e regressar a casa sãos e salvos, meus valentes Vagabundos. Tenho um imenso orgulho, em ter homens com esta fibra assim. Um dia compreendereis, que a minha dureza foi e é apenas armadura para defesa de todos nós. Relembrando o seu tempo de escuteiro, Mamadu verifica a utilidade presente, dos apreendimentos de antanho. Em Cufar festejaremos com uma bazuca de 6,6 dl. 


Pela segunda vez temos novamente a porra da época das chuvas e voltam os problemas das viaturas nas picadas e nos reabastecimentos. De manhã fica-se atolado em lama, à tarde tem de se pôr um lenço na cara por causa do pó.

Mais uma emboscada na estrada maldita, mais um morto, mais uns feridos! Não interessa, estamos cá para isso, só pensamos que seja breve e sem muito sofrimento, quando nos calhar a nós. Pensamento colectivo.

A 22 de Junho [de 1966], os Lassas saem a fim de tomar parte na operação Salsifré. A Companhia, a 2 GComb reforçada com um GComb da 1484 e pessoal da Compª. Milª. 13, sai de Bedanda pelas 22H00. Progredindo pelo itinerário previamente determinado, com a 4ª.CC em 1º. Escalão, atingido o objectivo cerca das 9h00 do dia seguinte. A CCAÇ emboscou-se no itinerário Salancaur - Mejo, à direita da 4ª. CCAÇ.


Havia informações sobre uma coluna de fornecimentos para o PAIGC.
Cerca das 14h00 o inimigo fez três tiros de reconhecimento da mata em frente procurando localizar a nossa posição, não se tendo respondido. Pelas 16H00 o PCV ordenou que fosse levantada a emboscada. Com a 4ª. C.C. novamente em 1º. Escalão iniciou-se a retirada pelo itinerário previsto. O objectivo foi percorrido sem ter sido detectado qualquer coluna nem localizado algum acampamento IN. Cerca das 19h00 e quando o último GComb dos Lassas, com os Vagabundos na retaguarda se encontrava a cambar um pequeno rio, o IN abriu fogo sob as NT com armas ligeiras e uma MP. Mamadu com seu pessoal atascado na lama do rio, a merda do rádio banana sem funcionar, tentava responder de qualquer maneira. Apenas o GComb da 1484 e os outros Lassas, recuaram para ajudar à cauda da coluna, porque os meninos da 4ª. CCaç nem pararam, pois o que queriam era chegar a Bedanda. Resolvido este incidente, a Companhia reagrupou continuando a progressão em direcção a Bedanda, onde chegou cerca das 22h30, sem ter tido mais contacto com o IN.

Dia 24 os Lassas regressaram a Cufar da Op Salsifré.

Vagabundo, encontrou em Bedanda o conterrâneo sargento Ventura, também lutando naquelas paragens.

Nesta altura Baté já tinha deixado Empada e regressado a Lisboa. De certeza, os dedos calejados de tanto tocar os botões do seu “Rómio, Alfa, Delta, Índia, Óscar,” tentando desenras­car os seus companheiros.
-Poucos quilómetros nos separavam, meu amigo. Empa­da fica um nadinha a Norte! Mas, também havemos de beber um copo na nossa aldeia.

Quantos filhos teus, minha aldeia, passarão por aqui? Quantos patrícios e amigos, passarão nesta maldita terra sofrendo o mesmo ou mais ainda do que eu estou passando? Que tenham sorte! E se acreditarem, que a nossa Padro­eira se lembre deles, pois parece ser a única tábua de salvação, e, já agora, de mim também, embora eu não seja boa rês e merecedor desse dom. Não sei se, por questões militares, confio no Santo Mártir Oficial Romano, ou será que sem eu saber Tânia lhe estará orando por mim? Tudo é possível... Acreditar é difícil! Mas não é Deus grande? Não revolve a Fé montanhas? Por mim só me alegra.

Nada de distracções pois, mesmo com trovoadas tropicais, com tornados, na lama da bolanha e do tarrafo, na estrada e na mata não se pode parar, e há que realizar as operações Pinoca, Piri-piri, Patacão, Penacho I, Penacho II, Pirilampo, Pileca, Paciência, Subsídio, e a Suspiro.

Soma e segue. Na Op Penacho há mais um morto e catorze feridos. Fica a Op Suspiro, como a última operação da CCAÇ 763 em terras da Guiné, e tem de ser para os lados de onde o perigo é maior, Cabolol. É claro, embora não seja propriamente à zona quente, querem que levemos daqui uma boa recordação, pelo que nos mandam para Boche Mende, a 5 de Novembro de 1966. Seguem-se patru­lhamentos e seguranças diversas.

(Continua)

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Nota do editor:

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares, há 3 referências a este comandante Brandão

(i) Chefe de bigrupo Brandão (Guileke, 1968)

(ii) Relatório sobre a situação militar na região de Xitole-Bafatá, assinado por Brandão Mané. Em anexo um comunicado do Comando Regional Xitole-Bafatá sobre o ataque à Base Central do Sector de Xime. Data: Quinta, 22 de Dezembro de 1966

Quem seria este Brandão ? Da família Brandão, de Catió ?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O relatório de 4 páginas, manuscrito, é assinado por Brandão Mané. Era um indivíduo com literacia acima da média dos dirigentes e combatentes do PAIGC. Superior ao 'Nino'... Quem seria este Brandão ? Seria natural de Bambadinca ? Ou de Catió ?


http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=07200.170.012