segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18102: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 15 (A picada) e 16 (O analfabetismo)...Terei escrito meio milhão de palavras em cartas e aerogramas durante a comissão...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Chegada de uma LDP com reabastecimentos.

[ Foto do álbum de Jorge Pinto [ex-alf mil da 3.ª CART/BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74), professor de história reformado; natural de Alcobaça, vive na Grande Lisboa e é também membro da nossa Tabanca Grande e da Tabanca da Linha]

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva:


Nascido em Penafiel, em 1950, criado pela avó materna, reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros,  publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande .


Sinopse:

(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da Via Norte à Rua Escura.

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau,

(vi) fica mais uns tempos em Bissau para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vii) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos', os 'Capicuas", da CART 2772;

(viii) Faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos.

2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 15 (A picada) e 16 (O analfabetismo)


[O autor faz questão de não corrigir as transcrições das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, que o criou. ]


Capº 14 > A PICADA

Pela imeira vez percorri os 4 km, do aquartelamento até ao rio, para recolher os abastecimentos que chegavam através de um barco, aparentemente civil. O que, quando não havia problemas, acontecia de 15 em 15 dias. E a “Picada” tinha de ser picada.

Chamávamos “Picadas” a todas as vias de terra batida que percorríamos nas províncias ultramarinas. Tal devia-se ao cuidado a ter pela provável colocação de “Minas” antipessoais ou anticarro, pelos “terroristas”.

Todas as armas que levem ao extermínio da vida humana são abomináveis, mas a “Mina” é de todas a mais execrável, levando à morte milhares de pessoas e deixando milhões de estropiados, entre eles, contam-se milhares de crianças que na sua ignorância as activam infantilmente. Infelizmente, nestes últimos 45 anos, creio que nunca deixaram de ser produzidas. Talvez a mina seja a arma que mais justamente empresta à guerra de guerrilha o nome de terrorismo. É letal, é imprevisível, é cobarde, é psicologicamente um terror.

“Sabes meu amor para ir ao rio, temos de picar a picada. Isto não é para rir. A picada é um carreiro de terra”.

Iria então ser um ritual quinzenal, ter um pequeno grupo de soldados a caminhar à nossa frente com uns bastões, muito finos nas pontas, picando cada centímetro de terra, para que a maioria dos soldados, as viaturas e a mesmo a população civil, pudesse transitar em segurança porque, por vezes, eram estes os mais atingidos; até mesmo aqueles que eram coniventes com o PAIGC.

Não posso deixar de mencionar neste capítulo que não eram só os inimigos que colocavam “Minas”; nós próprios também o fazíamos. Em todas as companhias existia a especialidade de Minas e Armadilhas.

Hoje existem vários modelos de detectores de minas terrestres, sendo mais fácil detectá-las, mas essas armas continuam a matar e a estropiar; continuam a ser aterradoras. Uma vez mais, podemos dizer que a mente humana continua, perfidamente, a mostrar os tristes caminhos por onde caminhamos. Caminhos que estão, de facto, cheios de armadilhas.


16º Capítulo > O ANALFABETISMO


Fiquei a saber muito depressa que no seio da minha companhia havia muitos analfabetos. Surpreendi-me por haver também muitos casados e com filhos. Apesar de se terem passado tantos anos, recordo, com uma enorme dor, muitas das cartas que li para alguns, e das respostas que eles me mandavam dar.

Não tinham nome, eram apenas números por isso, não sei quem eram. Os números já não existem, agora têm nome. Pela mesma razão, não sei quem são. Apenas sei que pertencem às minhas recordações.

Tive de amar muitas mulheres que nunca conheci, embora o fosse, somente nas palavras que lhes escrevia. Confesso que saber a intimidade dos meus colegas chegou a ser muito mau para mim.

Em algumas cartas, ou aerogramas, bastava-me copiar as palavras que escrevia à minha namorada... Que raio!, era tão parecido o que me mandavam dizer às deles. Reparem! Hoje estamos no dia 10 de setembro de 2017 - domingo. O furacão IRMA chegou à Flórida.

O dia 10 de setembro de 1972 foi também ele, a um domingo. O jornal Diário de Lisboa tinha na primeira página “Inflação assola a Europa” (Aonde é que já li isto?). Nesse dia, há 45 anos atrás, escrevi cinco aerogramas, com cinco endereços diferentes, que começavam assim…

“Meu eterno amor:

Aqui em Fulacunda longe de ti e das tuas carícias passei mais um Domingo só. Só com a minha dor e o meu desespero e como este outros Domingos já se passaram e muito mais tenho de passar e eu tal como a Maioria dos meus colegas temos de resistir a esta tragédia quando ainda há pouco tínhamos uma vida tão alegre.”


Claro que escrevia frases de todos os géneros. Muitas de cariz sexual. Pedidos dos maridos para as esposas se portarem bem. Muitas juras de amor que, na Maioria das vezes, se foram perdendo com o decorrer dos dias. Li cartas de mães extremamente pungentes, lembro-me de algumas.

“Meu rico filhinho que Deus te guarde e te proteja. Rezo todos os dias por ti, mas mesmo assim, sinto que não voltarei a ver-te.”

Que poderia eu responder a cartas assim? Não seria suficiente o meu próprio sofrimento?

O melhor é voltar a este tema mais para diante. Não estou a sentir-me com coragem para prosseguir. Algumas mães tinham razão. Não voltaram a ver o seu filho.

Em média, escrevia num aerograma, entre 70 a 80 linhas. Fiz isso, praticamente, todos os dias, o que, num cálculo aproximado, teria escrito mais de 500.000 palavras, naqueles funestos dois anos. Ainda hoje me surpreendo: não foi fácil.

Interrogo-me se teria escrito 1% de frases ditadas pelos meus camaradas que fossem alegres. Nas minhas, pude e posso provar, pouca alegria transmitia. É que, ao contrário do que muitos dos ex-combatentes apregoam, as histórias dramáticas, nas circunstâncias em que foram vividas, muito dificilmente se transformariam em histórias cómicas.

Eu ia mudando e, comigo, todos os meus camaradas alteravam comportamentos. Prossigamos mais para diante. Ainda só reli o aerograma no nº 100 (Aerograma ou apenas aéro. Sobrescrito usado durante a Guerra Colonial).

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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18066: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 13 (Não quero morrer( e 14 (As praxes dos 'Capicuas', CART 2772)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Dino, grosso modo, meio milhão de palavras de cartas e aerogramas, escritas durante a comissão, corresponderia hoje a um texto, em word, de 2700 páginas, em formato A4... É obra, tiro-te o quico!

É verdadem fizeste uma boa ação de camaradagem, ajudando os camaradas que não sabiam ler nem escrever... Estamos a falar de uma geração que entrou para a escola primária por volta de 1957/58... Há 60 anos atrás!... E que foram os últimos soldados do império... Não sabiam, alguns, escrever uma linha à sua namorada ou mulher, muito menos ler o grande poeta da Pátria, o Luís Vaz de Camões...

Boas festas, Dino!... A tropa roubou-te três Natais, foi isso ?...

Antonio Rosinha disse...

Os portugueses da nossa geração que eram analfabetos, em geral eram-no por hereditariedade.
Eram analfabetos de pai e mãe, pois que os velhotes para lerem as cartas que os filhos lhe mandavam escritas por terceiros, também tinham que ir ao presidente da junta ou ao padre para estes lhas lerem.