domingo, 24 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18133: O meu Natal no mato (44): Naquele Natal de 1972, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam... (José Claudino da Silva, ex-1º cabo cond auto, 3ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)


"Tive um Natal feliz apesar da tristeza no meu coração"


“17H00 A nossa ceia de Natal terá todo o sabor de um Natal em nossas casas. Aqui não faltaram as rabanadas, o creme, bolinhos, vinhos da Metrópole, nozes, pinhões, uvas passas etc. Além do bacalhau com batatas." (....)

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > A ceia de Natal de 1972 do 1º cabo cond auto José Claudino da Silva, "Dino" e dos seus amigos Luís, Zé Leal, Zé Alves, Carvalho, Moreira, Esteves. 


Fotos (e legendas): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do livro em pré-publicação, no nosso blogue, do nosso grã-tabanqueiro José Claudino da Silva (*), selecionámos o capítulo (nº 34) em que ele descreve, detalhadamente,  à sua namorada (e futura esposa), como foi o seu Natal de 1972, passado no mato, em Fulacunda.

[O autor, José Claudino da Silva, 'Dino', não corrigiu  intencional-mente as transcrições das cartas e aerogramas que  escreveu, nomeadamente à sua namorada (e sua futura esposa). Esses excertos vêm a negrito e a itálico, neste como nos restantes capítulos.

O 'Dino' nasceu  em Penafiel, em 1950, foi criado pela avó materna, e  reside hoje em Amarante. Está reformado como bate-chapas. Tem o 12º ano de escolaridade. Foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção). Tem página no Facebook. É membro nº 756 da nossa Tabanca Grande .] .(**)


34º Capítulo > A CEIA DE NATAL DE 1972

Vou tentar transmitir a todos os meus leitores uma das cartas mais incríveis que tenho em meu poder e que foi escrita por mim, hora a hora, nos dias 24 e 25 de Dezembro de 1972.

A carta tem 17 páginas. Seria fastidioso narrar tudo o que está lá escrito, por essa razão irei avançar alguns dos parágrafos:

“17H00 - A nossa ceia de Natal terá todo o sabor de um Natal em nossas casas. Aqui não faltaram as rabanadas, o creme, bolinhos, vinhos da Metrópole, nozes, pinhões, uvas passas etc. Além do bacalhau com batatas. A única coisa que não há é hortaliça mas como já estamos habituados remedeia-se. Temos também o bolo-rei enviado por ti. Veio fazer tamanha balbúrdia que ninguém se entende parece que anda tudo maluco, tive que mostrar o bolo a cada um dos outros e mesmo assim custa-lhes acreditar em tão grande sorte de receber o bolo-rei na véspera de Natal. Obrigado amor deste-me a Maior alegria desde que cheguei aqui.
 

18H00 - Pouco trabalhei. Já está tudo preparado para se cozinhar, passou-se uma coisa que merece um comentário, trata-se da hipocrisia que reina nesta companhia a que infelizmente pertenço. A ceia de Natal para os soldados oferecida pelo comandante, foi batatas cozidas com bacalhau e grão-de-bico o mesmo prato de ontem. Nem um cálice de vinho do Porto ou outra coisa qualquer ofereceu, que fizesse lembrar este dia.
 

19H00 - Esta hora foi agitada. Vou resumir o que se passou. A luz eléctrica falhou, continuamos a cozinhar à luz das velas. Arranjamos um petromax a álcool que se incendiou e explodiu ferindo ligeiramente dois colegas, o apertado abrigo que estamos a usar como cozinha, começou a arder mas apagamo-lo rapidamente. A luz voltou (Tinha acabado o Gasóleo no gerador) e com a luz voltou a boa disposição.

Começamos a cozinhar às 19H45.

Aqui vão os nomes de todos que vamos jantar juntos. Dino, Luís, Zé Leal, Zé Alves, Carvalho, Moreira, Esteves. (Estes tiveram sempre nome. Ainda voltarei a referi-los).

Na mesa os aperitivos eram. Pinhões, nozes, uvas passas, bocadinhos de presunto e salpicão. As bebidas para os aperitivos. Whisky, Rum, Coca-Cola e Martini.

Eram 21H20 quando o bacalhau e as batatas vieram para a mesa. Antes de começarmos a comer o básico do meu capitão veio aqui dar-nos um bom Natal, logo seguido dos 4 alferes, que nem um cigarro ofereceram à malta. Em seguida e quando já estávamos a comer vieram os furriéis e sargentos também desejar-nos boas festas. Beberam e comeram o que lhes apeteceu e em seguida ofereceram uma cerveja a cada um de nós. Já tinham feito o mesmo a todos os camaradas (162) que embora pareça pouco, tem ares de muito porque a intenção é que conta.

Continuamos a refeição com uma disposição que só comprovarás quando vires as fotos que fomos tirando. A mesa foi ficando desarrumada e nós cada vez mais eufóricos. Havia 12 garrafas de vinho, 8 das quais da Metrópole, é evidente que todos estávamos animados. Às 22H00 já tinham passado por aqui mais de 20 colegas a desejar as boas festas. Foram recebidos com alegria e todos de uma coisa ou outra beberam e comeram.

Já passava das 22H30 quando começamos a comer as rabanadas, bolachas, mais nozes e o teu bolo-rei. Nesta ocasião já tinham sido bebidas 10 garrafas de vinho, uma de whisky e uma de Rum. Eu tinha uma garrafa de Porto fui busca-la, o Leal tinha outra também a pôs na mesa, assim como o Esteves. O Alves trouxe mais uma de Rum e o Carvalho uma de whisky.

Tivemos de sair do abrigo e vir para a caserna porque os meus camaradas continuaram a chegar para nos cumprimentar e o Natal de 7 passou a ser de 150. Para cada um. Cabo ou soldado. Furriel ou sargento, houve um copo, uma rabanada, ou uma simples bolacha.

Estás a ver querida? Um capitão e vários alferes cheios de dinheiro, não alegraram em nada os corações dos meus camaradas e nós, 2 cabos e 5 soldados, fizemos com que se canta-se, dança-se e sobretudo que se esquece-se por momentos os nossos familiares, na festa da família.

O teu bolo foi cortado às 22H55. Cortei uma fatia Maior para mim e saiu-me o brinde. Foi essa tartaruga que te mandei. As garrafas continuavam na mesa e o Leal em vez de vinho deitou azeite no copo que bebeu duma golada, foi mais um momento de humor.

Perto da meia-noite o Luís foi à cantina buscar café e o burro do Leal virou o dele pelas calças abaixo. Estávamos todos à civil contrariando as ordens do capitão que ao menos nessa noite, não nos colocou de vigia.

Estou na cama. São 00H30 do dia 25 de Dezembro de 1972.


Vou tentar continuar a escrever para vós, com algumas lágrimas nos olhos. Se alguém que me está a ler participou nesta estúpida guerra, decerto compreenderá as minhas lágrimas. Nos outros leitores também acredito que haja alguma sensibilidade.

Às 10H50 veio um avião Nord-Atlas que lançou três pára-quedas com caixotes que trouxeram fruta, ovos, peixe e frango, possivelmente é para se comer parte disso hoje. Aguardemos.

Até aqui o dia tem decorrido bem. Eram 11H45, estive a distribuir para o refeitório 14 garrafas de vinho do Porto e bolachas, por ordem do capitão, por isso estou a ver que o capitão afinal, decidiu dar hoje alguma coisa à malta. Até te digo! Hoje todos almoçamos no refeitório não é como nos outros dias que oficiais, sargentos e praças comiam em locais separados. Ainda bem. Haja fraternidade ao menos uma vez no ano.




13H00 - Olha meu bem! O capitão é um filho da puta, desculpa o termo mas é assim mesmo que devo dizer. Ainda não fomos comer mas já vi que há uma diferença muito grande. Os oficiais e sargentos têm toalhas e guardanapos nas mesas deles e nós não podemos ter, para nós, tem de ser a mesma coisa de todos os dias. Se eu não fosse obrigado a ir não punha lá os pés.

Hipócritas de merda que mesmo num sítio destes só têm peneiras de que são grandes.

Fui ao refeitório. A comida parecia estar boa mas meteu-me tamanha repugnância estarem os oficiais, furriéis e sargentos dum lado e nós do outro que eu, mais três amigos nem a provamos. Um colega tirou fotos com a minha máquina. Depois enviar-tas-ei para que vejas os senhores fulanos dum lado e o Zé soldado do outro. O engraçado é que no discurso que o capitão fez, afirmou que assim unidos é que estávamos bem. Ele merecia era ir comer com os porcos para perder as peneiras.

É assim, os superiores pouco ligam a nós também sermos seres humanos.

Vim para o meu abrigo, fiz uma omeleta com presunto e comi o resto do teu bolo-rei.

15H30 - Estou a jogar futebol pela formação contra o 1º pelotão.

16H00 - Agora ainda não posso escrever continuo a jogar.

17H00 - Ainda não acabou.

17H15 - Terminou o desafio. Perdemos 3 a 0. Não se pode ganhar sempre, os outros mereceram.

O capitão autorizou que hoje se andasse à civil da parte de tarde. Como estou, e, nem sei porquê, a ficar com espírito de contradição, não me vesti assim.

Fulacunda parecia em festa com os meus camaradas todos bonecos mas eu preferi ser militar.”


Não fui jantar o peixe frito com arroz. Os meus colegas faziam a festa na caserna ao som de viola e harmónica. Fiquei solitariamente no meu quarto até os meus amigos Alves, Leal e outros aparecerem com champanhe. “É bom ter assim amigos” - escrevi eu. Uns com os outros esquecíamos melhor as tristezas.

Terminei o meu relato da véspera e dia de Natal de 1972 exactamente às 22H07 com a certeza que, de facto, os homens não são iguais e isso iria mudar a minha vida futura. Naquele Natal, aprendi que os homens não são iguais, apenas porque uma toalha e um guardanapo os separam.

Ultima página:

“TIVE UM NATAL FELIZ APESAR DA TRISTEZA NO MEU CORAÇÃO.”

No dia 26, completei sete meses na Guiné.

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