sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18151: Memórias de Gabú (José Saúde) (68): 43 anos depois: lembrando os dolos em tempo de guerra. Três contos e novecentos que caíram numa emboscada. (José Saúde)

O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


Memórias de Gabu


43 anos depois: lembrando os dolos em tempo de guerra

Três contos e novecentos que caíram numa emboscada

Depois de um silêncio que por motivos óbvios a que fui literalmente sujeito, pois vi-me obrigado a enveredar por outros trilhos por mim já conhecidos e que continuam a preencher-me a alma de prazeres indescritíveis, lançamento da minha última obra – AVC Recuperação do Guerreiro da Liberdade, Chiado Editora, e Aldenovense Foot-Bal Club ao Aldenovense Atlético Clube 1923 a 2016 - eis-me de regresso ao nosso blogue continuando a descrever espaventosos acontecimentos sob a minha comissão na Guiné.

É certo que estas pequeniníssimas histórias avulsas que vou deixando no nosso blogue, fazem parte de um todo numa guerrilha por nós vivida e que ainda recordamos. Recordações férteis em crenças onde entrelaçamos amizades e, por outro lado, rancores cruéis perante cenários que a nossa mente esconde. Dualidades que, afinal, se constituem como cunhos de uma guerra na qual fomos atores forçados.

Das muitas explanações que tenho trazido à estampa, debruço-me hoje sobre o não pagamento de uma importância que me era devida, mas que terá caído numa emboscada na agreste picada, sendo que o conteúdo do meu estridente grito de alerta passou a um espólio jamais por mim imaginado. Vamos ao relatório da cilada. 

O processo foi longo. Reclamei mas não fui ouvido. Andei pelos diversos corredores onde se movimentavam respeitosos senhores que cumpriam literalmente o missão do dever e da honra, alguns com galões dourados, outros com divisas, dirige-me a secretarias, empurraram-me para outras estâncias militares, andei de gabinete em gabinete, mas aquele assunto, diziam-me, não era ali e a verdade é que até ao presente não vi o rasto do dinheiro a que tinha efetivamente direito. Resumindo: três contos e novecentos que caíram pura e simplesmente no fornilho de uma armadilha.

Mas vamos diretos ao assunto: parti para a Guiné no dia 2 de agosto de 1973 e no final do mês recebi em solo guineense 2400$00, sendo que o que parecia normal, ou seja, os 3900$00, importância que ficava na metrópole, deveria ser entregue à minha saudosa mãe por vale de correio. Todavia, tal pagamento não foi consumado o que originou a minha natural reclamação.

Informado da falha, procurei de imediato colmatar a lacuna junto da secretaria em Gabu. Expressava o 1º sargento, homem que lidava com os dinheiros e que conhecia os meandros financeiros, que o problema não era dele. Concordei, obviamente. Dele não era certamente, mas não inviabilizou a sua disponibilidade na resolução do enigma. Um enigma que se arrastou pelos meses de comissão.

Neste contexto, o tempo foi-se consumindo e as minhas reclamações lá foram caindo num saco sem fundo. Admiti, ainda, que a história tivesse um final feliz. Mas, assim não foi.

Após o 25 de Abril, e aquando do nosso regresso à Metrópole, 9 de setembro, informaram-me para me dirigir ao quartel de Artilharia de Campolide, em Lisboa, e reclamar, pessoalmente, o débito em falta. Começou, então, uma outra guerra, não as dos tiros, mas de papelada já extraviada com o agoniar do tempo. Um tempo que já se proclamava de liberdade.

Fui algumas vezes a Lisboa, outras quando já trabalhava na capital, todavia a informação, sempre escassa, lá se foi diluindo em abstratos e difusos desfechos.

Cansado pela procura do meu justo direito, resolvi colocar um ponto final na reclamação e conclui que os truques hábeis da guerra falavam mais alto, abdicando, de uma vez por todas, em voltar à carga por um direito que me fora sonegado.

Admiti, ainda, que o vale emitido via CTT se tivesse extraviado, uma viabilidade provável e que entendi como admissível. Tanto mais que falamos de um tempo em que não era usual as transferências bancárias. Aliás, poucos ou nenhum dos camaradas atirados para as frentes de combate usufruíram dessa atual benesse.

Recordo que em termos contabilísticos a falha não existia, isto é, tudo estava nos conformes, logo, a minha reclamação era escusada.

Hoje, com os muitos anos passados, presentemente 43, o cómico acontecimento esmiúça-se entre um profícuo sorriso nos lábios e uma mente onde o perdão substancialmente criou raízes.

Jornadeando pelos trilhos da guerrilha de uma Guiné que continuo a recordar com um sentimento nostálgico, não obstante a distância temporal já constatada, assim como as múltiplas armadilhas conhecidas no terreno, o tempo da peleja deixou-nos imensas recordações e de diversas índoles que lembramos com saudade.

Coisas do tempo da guerra.

Um Bom Ano de 2018 para todos os camaradas!...

Abraço,  
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

7 DE ABRIL DE 2017 > Guiné 61/74 - P17220: Memórias de Gabú (José Saúde) (67): As minhas memórias de Gabu: A morte de um camarada (José Saúde)

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