quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18146: Os nossos seres, saberes e lazeres (246): À sombra de um vulcão adormecido (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 26 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Ponto final nos festejos do cinquentenário da arribação a S. Miguel. É bom ter como guia um jovem na casa dos 20 anos, desciam-se memórias, o jovem sorri com aquelas memórias que parecem histórias de encantar, o viandante fala de uma miséria que já não existe, a vida açoriana transfigurou-se na mobilidade e nas comunicações, na educação e na saúde, o que fica daquela passado é o perfil arquitetónico, uma crença religiosa sem paralelo, o gosto pelos jardins, uma hospitalidade sem rival, uma gastronomia de bivalves, queijos, pimentas, cozidos, estrugidos, queijadas e outras preciosidades conventuais.
Açorianidade é inquietação: emigração ou viagem, uma permanente saudade antes de partir, casas com rocha vulcânica, a humidade obsidiante, o roçagar da onda oceânica, uma maneira peculiar de permanecer e comunicar.

Um abraço do
Mário


À sombra de um vulcão adormecido (1)

Beja Santos


Aqui se põe termo final às festividades do cinquentenário do meu descobrimento de S. Miguel. Chegado em Outubro de 1967, regressei em Lisboa em Março de 1968, seguiu-se o Regimento de Infantaria n.º 1, na Amadora, dali sai com o labéu de “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar português, passei 26 meses na Guiné, no regresso voltei a Ponta Delgada, e com dulcificantes intermitências fui consolidando amizades e um afeto quase sobrenatural à região. Que melhor coroa de glória para o encerramento das festas que permanecer uma semana a fio no paraíso do Vale das Furnas? Foi o que aconteceu, segue-se o relato, uma verdadeira história de encantar.


A uma certa distância deste vale chegaram os primeiros povoadores à Povoação Velha, desbastaram mata e sentiam-se atraídos por um estranhíssimo fenómeno natural. Urbano de Mendonça Dias, numa edição de autor de 1936, exatamente com o título "História do Vale das Furnas", procura descrever a curiosidade e o temor dos primitivos povoadores: “Mas – uma língua de fogo – que por vezes aparecia estendida no espaço saído por detrás dos montes que lhes ficavam ao poente, do seu provisório acampamento, enchia-se, na verdade, de terror, se bem que ansiassem, ainda que com perigo, conhecer aquele fenómeno tão extraordinário que ocupava semelhante faixo de luz no céu”. Meteram ombros à obra, enveredaram pelo mato densíssimo com o padre capelão na vanguarda e avançaram para uma profunda cova que, pensaram, teria sido o assento de um altíssimo monte, e ali avistaram nuns sítios esbranquiçados e estéreis um vapor espesso, avermelhado, que parecia uma língua de fogo.


Subiram a cova, desceram ao vale, sempre riscando do caminho e descobriram uma bacia de vulcões – três sulfatares – e puseram-lhe nomes: Lagoa Escura, Lagoa Barrenta e Lagoa Grande. Estavam encontradas as furnas ou caldeiras e começava o escrutínio daquelas águas de sabor tão diferente que com o tempo foram metidas em três grupos: águas do sanguinhal, águas férreas, águas das quenturas e das grotinhas. Segundo Urbano de Mendonça Dias, sempre invocando a sapiência incontornável de Gaspar Frutuoso, foi assim que se descobriu e reconheceu este extenso vale, produto de várias erupções vulcânicas, fertilíssimo, verdejante, com as duas furnas formidáveis a vomitarem fogo e lama e água fervente.


Alguém lhe chamou “Rascunho do paraíso termal”, o que para o caso interessa é que os da Povoação Velha usaram o Vale das Furnas para pastoreio e propriedades. Ali por 1614, chegaram ermitas, foi sol de pouca dura porque a erupção vulcânica de 1630 queimou e assolou o Vale das Furnas. Aqui estiveram os Jesuítas, o local chamava-se Alegria, o viandante interroga-se se há alguma conexão entre este lugar e a igreja que tem hoje o nome de Nossa Senhora da Alegria. O que para o caso interessa é que o lugar ganhou fama edénica, que jamais perdeu, um cônsul norte-americano aqui fez casa e botou-lhe um tanque de água férrea, espaço que hoje pertence à Sociedade Terra Nostra, comprado aos herdeiros do Marquês da Praia e Monforte, em 1936, daí as linhas puríssimas Arte Deco do hotel. Para que a digressão e estadia ganhe alguma consistência, convém lembrar que o viandante saído do aeroporto foi regalar-se com bicuda grilhada no Borda d’Água, na Lagoa e foi rever uma paisagem esquecida, há decénios, a Caloura, aqui houve convento, recolhimento, aqui se pesca e se estadia numa atmosfera idílica.




Visitada a praia e o convento, alguém chama a atenção ao viandante que é do miradouro do Pisão que se desfruta a vista em anfiteatro da Caloura, vamos lá de seguida, tem-se muita sorte porque o céu não está forrado, nem minimamente plúmbeo, capta-se uma imagem do que é hoje um velho porto e um respeitadíssimo ermitério, da primitiva cristandade açoriana.


Pergunta alguém ao viandante: “Conhece o Santuário de Nossa Senhora da Paz?”. E a resposta veio humilde e sincera: “De certeza que não é do meu tempo, há cinquenta anos não estava cá”. Sobe-se ao Santuário, tem escadaria imponente, a primeira lembrança que vem à mente é a Senhora do Sameiro, mas aqui o desfrute impõe-se por que a Senhora da Paz tem plateia oceânica e um silêncio absoluto, derredor.



Não há estação do ano que não seja um cabaz de surpresas florais. Em pleno Outubro as bermas e os recantos aparecem marcados pela beladona ou bordões de S. José que aqui tem outro nome popular: “Meninos para a escola"; talvez porque a flor irrompa com o início do ano escolar, não se encontra outra explicação. E aqui se fica especado, a contemplar a formosura da paisagem, antes de partir para o Vale das Furnas, o acordado local de veraneio fora da época.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18112: Os nossos seres, saberes e lazeres (245): São Torpes, entre Sines e Porto Covo (2) (Mário Beja Santos)

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