sexta-feira, 2 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18372: Recortes de imprensa (92) : artigo de opinião de Sílvia Torres: A Guerra em 'copo meio cheio', "Diário de Coimbra", 23 de fevereiro de 2018



1. Mais um artigo de opinião da nossa grã-tabanqueira Sílvia Torres (*), publicado no Diário de Coimbra a 23 de fevereiro de 2018. Foi-nos remetida cópia,  diretamente, por mensagem da autora, de 26/2/2018.  

O "Diário de Coimbra", "órgão regionalista das Beiras", foi fundado em 24 de Maio de 1930 por Adriano Viegas da Cunha Lucas (1883-1950). Afirma-se como um jornal republicano,  independente, de orientação liberal, defensor da democracia pluralista,

A guerra em "copo meio cheio"

por Sílvia Torres
O Fernandes nunca viu o mar, ao vivo e a cores, mas imagina-o enquanto pesca, silenciosamente, à beira-rio. O Rodrigues toma banho às vezes. Poucas. O Simões nunca entrou numa escola e o Veiga só sabe escrever o seu primeiro nome. Foi o irmão mais novo que o ensinou, ao serão, quando ele era já um pastor experiente, apesar da juventude que vivia. O Marques nunca saiu da aldeia onde nasceu mas sonha conhecer Lisboa. Um dia, talvez. O Falcão não sabe usar talheres e não vê neles qualquer utilidade. O Oliveira trabalha de sol a sol, sete dias por semana, desde menino. O Pinto, nas suas orações diárias, pede a Deus um carro, enquanto poupa trocos para a carta de condução. O mealheiro é um tacho velho, furado e ferrugento, escondido num monte de agulhas. Está mais vazio do que cheio.
No século passado, histórias idênticas encaixavam perfeitamente noutros sobrenomes: Ribeiro, Sousa, Martins, Lopes, Sena… Alguns, durante o Serviço Militar Obrigatório e no decorrer da Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, tiveram a "sorte" de ser destacados para Angola ou Moçambique. A milhares de quilómetros de casa, num Portugal pouco português, ficaram estupefactos com o mundo novo que lhes era dado a conhecer: tão grande, tão diferente, tão quente, tão despido, tão livre, tão africano…

Para os Fernandes, os Rodrigues, os Simões e muitos outros, a tropa e a consequente ida para o império lusitano longínquo, não foi apenas sinónimo de perda mas também de ganho, a vários níveis. A Guerra Colonial/Guerra do Ultramar, afinal, também teve um lado positivo para alguns dos soldados que nela foram forçados a participar, no auge da juventude.

"Lá longe, onde o sol castiga mais", o Fernandes viu e sentiu o mar e até aprendeu a nadar. O Rodrigues inseriu o banho na rotina diária. O Simões e o Veiga foram à escola e conseguiram ainda escrever, orgulhosamente e com a ajuda de camaradas, aerogramas para a família. O Marques descobriu que o mundo é enorme e o Falcão, a custo, aprendeu a comer com talheres. Regressados à metrópole, o Oliveira, mudou de profissão e o Pinto, já com a carta de condução que a tropa lhe deu, passou a amealhar para o carro. Apesar dos horrores da guerra, ambos viveram no ultramar momentos felizes e de descoberta. Para alguns (muitos) jovens combatentes, que foram e voltaram sem grandes mazelas, a vida mudou para melhor porque o olhar alcançou outros mundos.

A guerra foi uma lição e um impulso para um futuro mais promissor e cheio de oportunidades. Jovens combatentes regressaram a Portugal (metrópole) com mais conhecimentos, mais competências e novas ideias. Assim, a Guerra Colonial/Guerra do Ultramar pode também ser vista na perspetiva do "copo meio cheio". Afinal, até na guerra há um lado positivo. E nesta, como noutras, o conflito foi também um "catalisador de desenvolvimento", que teve depois impacto na sociedade portuguesa. (**).

Sílvia Torres

[Fixação de texto, negritos e sublinhado a amarelo: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
____________

Notas do editor:

18 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

As largas dezenas de milhares de mortos (combatentes e civis) de um lado e do outro da guerra colonial / guerra do ultramar, portugueses, angolanos, guineenses, cabo-verdianios, moçambicanos e outros, nunca poderiam fazer a análise de custo / benfício, tão cara aos nossos economistas da folha do Excel, do deve e haver, ou dos estratetgas das análises SWAT (pontos fortes e fracos, ameaças e oportunidades)...

Se o raio do Salazar tem feito a análise SWAT em 1961 tínhamos poupado muita desgraças... Voltava para Santa Comna Dão para cultivar as alfaces e os tomates...E as queridas provímcias ultramarinas poderiam ter conhecido outras histórias ou outra história...

Sílvia, falando por mim, é evidente que eu nunca poderia ser a mesma pessoa, antes e depois da Guiné... Como é impossível repetir a experiência, ou rebobinar a história, eu também não sou capaz de me definir como se a guerra da Guiné nunca tivesse existido...

Um Bravo Eco (BEijo) para si. As filhas dos nossos camaradas nossas filhas são... LG

José Marcelino Martins disse...

As Escolas Regimentais, criadas no Exército há mais de um século, que obrigavam os soldados a frequenta-las, veio a ajudar a desenvolver "novas competências" nos soldados iletrados.
Foi com muito gosto que ensinei, desta feita a africanos da minha companhia, a ler, escrever e contar.

Antº Rosinha disse...

Houve em Angola milhares (milhares/ano) de Silvas, Rodrigues, Rosas e Rosinhas, Maneis e Jaquins, que sofreram a claustrofobia dos quarteis, nos cús de Judas, mas não ouviram tiros, apenas nas carreiras de tiro ou à caça.

Isto falando de praças, porque furriéis e alferes milicianos sempre beneficiavam mais de alguns desenfianços às capitais, e o pessoal do quadro chegava a repetir umas comissões.

Claro que alguns, também sem o saber porque eram de outra tempera, viveram nos Cús de Judas como Lobo Antunes.

«Uma coisa é uma coisa, e a Guiné foi outra», mas a história tem que se escrever, e não ficar manca.

Porque não foi possível trocar os nossos IN, todos juntos, do Minho a Timor, por um único Mandela?

Alberto Branquinho disse...

Gostei.
O artigo é muito esclarecedor para certas mentalidades estreito-portuguesas e para quem nunca tinha pensado na guerra colonial, quanto mais nestas "coisas".
Não há dúvidas sobre o aspecto fundamental, que é a tese-base deste artigo: a guerra colonial, nas suas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné) "abriu as cabeças" a muitos rapazes que foram obrigados a fazê-la (... ou a guarnecer espaços africanos sem terem feito guerra de qualquer espécie). Foi a deslocação para as cidades do interior de Portugal, viagens, a deslocação para Lisboa para embarque, viagem marítima (horrivel! para os soldados - a autora saberá? -), ou seja: outros mundos.

MAS:
Há pequenos pormenores no texto (ou ausentes do texto) que convém que sejam "denunciados" (sem ofensa):
1 - 2º. parágrafo - última linha
Nem sempre o tal "Portugal pouco português" (gostei!) era "tão grande" (ex: Guiné) ou "tão despido" (a menos que a autora se refira ao vestuário local...).
2 - Último parágrafo - "catalizador do desenvolvimento"
Não foi propriamente através do "know-how" adquirido em África (embora tenha havido algum: condutores, maqueiros, radiotelegrafistas...). Foi, principalmente, o facto de ter obrigado muita juventude a questionar-se sobre o modo de viver, os "valores" que os "entalavam" (ou "enlatavam") nessa sociedade portuguesa de então. E... cresceu a emigração.
3 - A autora já se questionou sobre a postura/atitude das raparigas/mulheres da mesma idade frente às vivências e questionamentos desses rapazes? No exemplo daquela rapariga que escrevia ao namorado: "Tu ainda sais para batidas e emboscadas e eu aqui é só de casa para o trabalho, do trabalho para casa e missa aos Domingos"...? (O divórcio começou a ser inventado...). E, p.f., não me venha falar nas madrinhas de guerra!!

A finalizar: É bom ver gente nova a pensar estas coisas que afectaram a juventude portuguesa durante TREZE anos, porque quase ninguém fala ou escreve sobre isso. E pior: menospreza!

Um beijo do
Alberto Branquinho

Alberto Branquinho disse...

Gostei.
O artigo é muito esclarecedor para certas mentalidades estreito-portuguesas e para quem nunca tinha pensado na guerra colonial, quanto mais nestas "coisas".
Não há dúvidas sobre o aspecto fundamental, que é a tese-base deste artigo: a guerra colonial, nas suas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné) "abriu as cabeças" a muitos rapazes que foram obrigados a fazê-la (... ou a guarnecer espaços africanos sem terem feito guerra de qualquer espécie). Foi a deslocação para as cidades do interior de Portugal, viagens, a deslocação para Lisboa para embarque, viagem marítima (horrivel! para os soldados - a autora saberá? -), ou seja: outros mundos.

MAS:
Há pequenos pormenores no texto (ou ausentes do texto) que convém que sejam "denunciados" (sem ofensa):
1 - 2º. parágrafo - última linha
Nem sempre o tal "Portugal pouco português" (gostei!) era "tão grande" (ex: Guiné) ou "tão despido" (a menos que a autora se refira ao vestuário local...).
2 - Último parágrafo - "catalizador do desenvolvimento"
Não foi propriamente através do "know-how" adquirido em África (embora tenha havido algum: condutores, maqueiros, radiotelegrafistas...). Foi, principalmente, o facto de ter obrigado muita juventude a questionar-se sobre o modo de viver, os "valores" que os "entalavam" (ou "enlatavam") nessa sociedade portuguesa de então. E... cresceu a emigração.
3 - A autora já se questionou sobre a postura/atitude das raparigas/mulheres da mesma idade frente às vivências e questionamentos desses rapazes? No exemplo daquela rapariga que escrevia ao namorado: "Tu ainda sais para batidas e emboscadas e eu aqui é só de casa para o trabalho, do trabalho para casa e missa aos Domingos"...? (O divórcio começou a ser inventado...). E, p.f., não me venha falar nas madrinhas de guerra!!

A finalizar: É bom ver gente nova a pensar estas coisas que afectaram a juventude portuguesa durante TREZE anos, porque quase ninguém fala ou escreve sobre isso. E pior: menospreza!

Um beijo do
Alberto Branquinho

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A Sílvia, que é doutoranda e já escreveu um livro sobre a "nossa" guerra e a comunicação social, vai-se sentir privilegiada por ter aqui interlocutores de luxo: o Alberto Branquinho, com um currículo operacional que muitos GI no Vietname não tiveram, e que é além disso um escritor de primeira água, dotado de um humor que corroi como o ácido sulfúrico: o José Martins, que esteve no cu de Judas de Canjadude com os seus "gatos pretos" da CCAÇ 5; o António Rosinha, que estava lá, em 1961, quando "tudo começou" (, claro que começou antes, muito antes...), e que é um dos derradeiros representantes de uma espécie definitivamente em extinção; e, enfim, eu próprio, fundador e editor deste blogue, ando há décadas a tentar "exorcizar os fantasmas da guerra colonial" (esta paga direitos de autor...).

É meritório o esforço da Sílvia, olhando para a "nossa" guerra, como a gente olhava para uma garrafa de uísque meia cheia... Nunca dizíamos que estava meia vazia... Passada a curiosidade das efemérides (os 50 anos da guerra colonial / guerra colonial, em 2011), o tema voltou a ser esquecido... Agora só talvez em 2061, quando já todos estivermos na "vala comum do esquecimento"... A Sílvia, embora um jovem idosa nessa altura, com 79 anos, terá um pensamento de ternura por estes homens, camaradas do seu pai, que da lei da morte já há muito se terão libertado...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... A Silvia fica desde já mandatada para representar a Tabanca Grande, em 2061, nas comemorações dos 100 anos da guerra colonial / guerra do ultramar (, será que ainda se chamará assim ?)... Temos a certeza que não nos irá deixar mal...E é bom saber, antes de morrermos, que vamos ficar em boas mãos... Não os ossos, ou as cinzas, mas as memórias, os testemunhos, as vivências...



J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Gostei do artigo da Silvia Torres. Historicamente há que ver as guerras com algum distanciamento para as entender.
Um beijo do,
JS

Manuel Luís Lomba disse...

Não sinto qualquer orgulho como participante na Guerra da Guiné, mas tenho muito orgulho em ter servido o Exército da minha pátria, em ter sido camarada do seu fundador - o jovem revolucionário D. Afonso Henriques. Mas tenho vaidade em ter preparado e levado a exame da 4.ª Classe uma dúzia de adultos da minha aldeia, em me ter voluntariado para as aulas regimentais no RC 7 e ter ensinado soldados do meu pelotão a ler e a escrever (a contar quase não era preciso!...), em ter ensinado a ler, a escrever e a contar os jovens m/f fulas e mandingas em Buruntuma, no quadro do meu desempenho de comandante de milícias. E foi-me particularmente gratificante o empenho e aproveitamento escolar das (poucas) raparigas, que me tomaram como agente da sua promoção e ousavam superar a ancestral condição discriminatória da sua cultura.
Ab
Manuel Luís Lomba

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

Manuel Lomba, também não tenho orgulho como participante na Guerra da Guiné. Ninguém, normal, terá orgulho em ter participado numa guerra. E elas foram muitas e como Portugueses, podemos dar graças de nos termos safado de algumas.
Um abraço,
JS

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Enquanto não vem o xarem e os choquinhos de coentrada para mesa,em dia de inverno e trovoada como na Guiné (já tinha saudades...), acrescento aos comentários do Lomba e dp Sacoto: o distanciamento só nos faz bem, e o blogar também. Bom spetoteapetite

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Enquanto não vem o xarem e os choquinhos de coentrada para mesa,em dia de inverno e trovoada como na Guiné (já tinha saudades...), acrescento aos comentários do Lomba e do Sacoto: o distanciamento só nos faz bem, e o blogar também. Bom apetite. Estou na BTL - Bolsa de Turismo de Lisboa, e vou a procura dos stands lusófonos. Está um bom dia para estas coisas, os lotes pagam 2,5 euros.

Sílvia Torres disse...

Agradeço todos os comentários! A vossa opinião, para mim, é muito importante!

Sobre o assunto em causa, muito mais poderia ser dito (escrito) mas, num jornal, o espaço é limitado. O desenvolvimento do tema, que tem pano para mangas, fica para uma próxima oportunidade, na qual terei em conta os vossos comentários.

Para quem não sabe, escrevo um artigo de opinião sobre a Guerra Colonial/Guerra do Ultramar quinzenalmente no "Diário de Coimbra". O próximo será publicado na edição de 9 de março. Este blogue recebê-lo-á!

Sílvia Torres disse...

Muito obrigada pela partilha!

Anónimo disse...

Permitam-me discordar da quase totalidade do texto publicado no Diário de Coimbra. Nele, afirma Sílvia Torres: «A guerra foi uma lição e um impulso para um futuro mais promissor e cheio de oportunidades.» Falso. Se em vez de "a guerra", Sílvia Torres tivesse escrito "o serviço militar", eu estaria de acordo com quase tudo. Assim, não estou.

Quando eu era criança e a guerra colonial ainda não tinha começado, ouvia os adultos dizerem que era bom que os rapazes fossem para a tropa, porque «aprendiam a ser homens». Em muitos casos esta afirmação era verdadeira, tanto no bom sentido (aprendiam a ser independentes e desenrascados), como no mau (aprendiam toda a espécie de ronhas e de vícios).

Também ouvi muitas vezes dizer, ao longo do meu próprio serviço militar: «Na tropa, há filho de muita mãe e muito filho da mãe». Esta afirmação também é absolutamente verdadeira. Na tropa aparecia de tudo, desde chulos da antiga Musgueira, até pastores de cabras que nunca tinham saído da sua aldeia e das serras em volta, nem sequer para irem à vila mais próxima.

Dei uma recruta em Elvas, quando fui aspirante a oficial miliciano, entre outubro e dezembro de 1971, e conheci pessoalmente recrutas que eram exemplos vivos do que acabo de afirmar. Conheci, por exemplo, um camponês que nunca tinha tomado banho na vida, nem sequer para dar um mergulho no rio da sua aldeia! Era preciso metê-lo à força debaixo do chuveiro, ensaboá-lo e esfregá-lo todo para que tomasse banho, enquanto ele berrava como se o estivessem a esfolar vivo! Também conheci rufiões do Casal Ventoso, que chegaram a protagonizar uma cena de facada na semana de campo! Um deles foi levado de urgência para o Hospital Militar da Praça de Elvas com as tripas de fora, por causa de uma navalhada que lhe abriu a barriga!

A maioria dos recrutas que conheci em Elvas, porém, eram rapazinhos do Alentejo, puros e ingénuos como só quem vivia num monte alentejano poderia ser. Para estes, sim, a tropa fez deles homens, espertos e desembaraçados. O serviço militar tirou-os "de debaixo das saias da mãe" e "desmamou-os". Note-se que o seu "desmame" foi quase todo feito na recruta e não na guerra. Quando eles embarcaram para África a caminho da guerra, já eram homens feitos, ainda que angustiados com o que o futuro lhes pudesse reservar. Qualquer semelhança entre os militares que embarcavam no navio ou no avião e os recrutas que tinham assentado praça em Elvas era pura coincidência. Quanto ao resto (alfabetização, carta de condução, novas competências profissionais, etc.), a guerra só prejudicava. Um soldado que arriscava diariamente a vida e fazia esforços físicos sobre-humanos, não tinha condições para aprender fosse o que fosse. Só embrutecia.

Fernando de Sousa Ribeiro, antigo alferes miliciano em Angola, C.Caç. 3535 do B.Caç. 3880

Antº Rosinha disse...

Fernando Sousa Ribeiro tem bastante razão ao dizer que aquela guerra em Angola, embrutecia os jovens mancebos, e de que maneira.

Principalmente se a nível de capitão para cima, os comandos não estivessem minimamente atentos à inércia e ao isolamento, dentro de 100X100 metros de arame farpado, quando sem guerra, sem patrulhas, sem exercício físico, sem escalonamento de viagens às capitais de distrito dos jovens que quisessem ir a um cinema, aulas de condução, ir às meninas, mergulhos na praia, com alojamentos de dois/três/quatro dias nos quarteis existentes.

Fazia raiva passar junto de certos quarteis nos cús de judas,100X100 metros de arame farpado, que mais pareciam um cemitério, tal a falta de vida.

Havia alguns capitães que permitiram que os instrutores de automóveis em Luanda, Sá da Bandeira, Serpa Pinto, Luso, Salazar, Uige, Saurimo, Negage... enriquecessem.

Mas nem todos.

Estive em Noqui, no Quanza Norte e na Lunda, de farda e armado, mais onze anos por todo o lado, desfardado e desarmado, porque não gosto de caça.

Houve muito menino que foi virgem, veio virgem e nem SIDA havia no B.O. de Luanda.

Houve outros que até lá ficaram "agarrados", pelo colarinho, desistiram da viagem de regresso.



Anónimo disse...

Antº Rosinha, a minha companhia não teve inércia; teve, isso sim, acção em excesso. Teve guerra e sofreu baixas. Percorreu trilhos minados e armadilhados (de verdade!). Sofreu emboscadas. Abriu caminhos na floresta virgem à velocidade de meio quilómetro por hora. Passou a menos de cem metros de sentinelas inimigas sem ser detectada. Conquistou bases de guerrilheiros a tiro e de peito descoberto nas profundezas da selva. Foi até onde nenhuma outra tropa tinha ido antes. Se isto é ter estado sem guerra, sem patrulhas e sem exercício físico, como escreveu, vou ali e já volto.

O Antº Rosinha poderá dizer: «Eu fui de Luanda a Benguela, de Benguela a Sá da Bandeira, de Sá da Bandeira a Nova Lisboa, de Nova Lisboa a Silva Porto, de Silva Porto a Malange, de Malange a Salazar e de Salazar a Luanda sozinho, desarmado, de noite ou de dia, e nunca ninguém me fez mal.» Isto é rigorosamente verdade. Grande parte do território de Angola não tinha guerra absolutamente nenhuma. Mas esta ausência de guerra tinha um preço: nas chanas do Leste e nas florestas do Norte e de Cabinda combatia-se. Jovens portugueses e angolanos morriam e ficavam mutilados, para que os civis pudessem fazer a sua vida em Angola sem se preocuparem minimamente com a guerra, a um ponto tal que acreditavam que afinal não havia guerra nenhuma. Havia guerra, sim, e nela muitos jovens derramaram sangue, suor e lágrimas para a conter. Esta é que é a verdade verdadeira.

Fernando de Sousa Ribeiro, antigo alferes miliciano em Angola, C.Caç. 3535 do B.Caç. 3880

Antº Rosinha disse...

Fernando de Souza Ribeiro, a história assim vai ficar toda contada, e não meio contada, graças a este grande blog.

Ando aqui, porque quero explicar a quem andou na Guiné, que se a Guiné não foi abandonada militarmente,foi principalmente porque a Joia da Coroa, Angola, graças a si e àqueles que morreram, civis e militares, em Angola, tinham deixado aqueles movimentos semi-paralizados e baralhados entre si, ao ponto de no 25 de Abril só ficaram preparados para aparecer em público passados 7 meses, Novembro.

O povo não estava com eles, daí algum optimismo.

Fernando Souza Ribeiro, o 25 de Abril apanhou-me numa tenda de campanha a mais de 20 Klm de qualquer povoação comercial, no Cuando Cubango com um jeep land-rover e 8 contratados, a traçar uma directriz de uma estrada para a Junta Autónoma de Estradas, mas tinha mais de 20 colegas de Cabinda ao Cunene a fazer a mesma coisa.

Graças à tropa, aos governadores de distrito, alguns militares que atuaram qual Spínola na Guiné, puxando o povo a si, trabalhei em estradas nas chanas do leste, e até para um batalhão num estudo de picadas nos destacamentos de São Salvador do Congo bem junto da fronteira, com um tenente Albuquerque, (1967)que mais tarde foi director dos Serviços Cartográficos do Exército.

Farto-me de escrever aqui, uso e abuso apesar de o Luisgraca e outros camaradas já nem tenham paciência para as minhas repetições algo reaccionárias.

Mas quando pretender contrariar-me apareça e ponha o seu nome que os "donos disto tudo" aceitam sempre.

Só não estive em Cabinda, nem na tropa nem civil.

Cumprimentos