1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2016:
Queridos amigos,
Não se pode deixar ter em atenção a argumentação expendida por este antropólogo social alemão: o nível da integração nacional é relativamente forte, apesar da diversidade étnica. Ao longo de décadas, constituíram-se cimentos para o sentimento nacional: o crioulo como língua veicular, as mandjuandades, a rejeição à fragmentação étnica, a expulsão dos invasores no conflito militar de 1998-1999, as festas carnavalescas. No entanto, apesar deste sentimento nacional, os guineenses sentem-se desafetados do Estado, vítimas dos políticos e há um termo crioulo que surge sempre quando se fala (e muitas vezes se fala) de pobreza, infelicidade e miséria: koitadesa.
Um abraço do
Mário
A integração nacional na Guiné-Bissau
Beja Santos
No Caderno de Estudos Africanos do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, n.º 20, referente a Janeiro de 2011 e organizado pelo investigador Gerhard Seibert sob o título “Identidades, Percursos e Clivagens nos PALOP”, tem particular interesse para aqueles que estudam a Guiné o artigo de Christoph Kohl denominado “Integração Nacional na Guiné-Bissau desde a Independência”. Christoph Kohl é antropólogo social.
O que o autor dá como apurado é que na Guiné-Bissau o nível de integração nacional é relativamente forte, apesar da diversidade étnica. Este caso de integridade nacional baseia-se na ideologia e política do antigo movimento independentista e na prática do jovem Estado pós-colonial onde se advogou um modelo de unidade nacional da diversidade étnica. Mas também nesta pesquisa se apurou que os guineenses vitimizam a sua nação quando a confrontam com o Estado. Uma invasão estrangeira durante o conflito militar de 1998-1999 reforçou ainda mais a integração nacional. Nesse mesmo conflito apurou-se uma ingerência da diplomacia francesa que se colocou ao serviço de Nino Vieira, no fim do consulado deste as instalações diplomáticas francesas foram assaltadas e destruídas, houve mesmo que vir ao auxílio das tropas francesas presentes.
Após descrever os pontos mais relevantes da luta armada e do papel do PAIGC, o autor refere-se à era de Luís Cabral a que se sucede o consulado de Nino Vieira que a despeito do multipartidarismo em que já decorreram as eleições de 1994 manteve o autoritarismo político e fomentou lutas pelo poder na esfera político-militar. A despeito dos rótulos de “frágil”, “colapsado”, “fraco”, etc, existe uma forte consciência nacional em que o crioulo é um verdadeiro cimento.
Muitos estados africanos têm sido qualificados nos anos mais recentes por fracos, não-Estados, frágeis, mas apesar destas nomenclaturas, as respetivas nações têm sobrevivido. É importante separar analiticamente os conceitos de Estado e de nação. Mesmo se um Estado é apresentado como inteiramente disfuncional, ou seja, o seu funcionamento não corresponde ao clássico modelo europeu baseado na terminologia de Max Weber, o Estado continua a existir se é caracterizado por uma pronunciada identidade nacional, mesmo que haja uma fraca identificação da nação com o Estado – é o que se pode verificar em muitos países que vêm no Índice dos Estados Falhados.
Os ideólogos europeus estavam convencidos que havia uma incontestável congruência nas entidades políticas e nacionais. Acreditava-se que uma homogeneidade cultural e étnica constituía a nação-Estado. No estudo sobre a Guiné-Bissau, é patente haver posições da nação contra o Estado. Para se perceber esta tensão, é preciso ir mais atrás, às fundações da Nação. Em contraste com líderes como Touré, Nkrumah ou Machel, Cabral não supunha ser necessário erradicar as identidades étnicas para afirmar a nova identidade nacional. Cabral estava convencido que fora ultrapassada a era dos grupos étnicos, dizia abertamente que todos poderiam avançar juntos em unidade.
A nação-Estado pós-colonial foi constituída por um partido, o PAIGC. A transformação da sociedade pós-independente pautou-se por um severo controlo político, uma expansão da burocracia, um novo regime em que foram excluídos os apoiantes dos portugueses e eliminados os dissidentes. As instituições eram controladas pelo Estado, o tribalismo passou a ser silenciado, era assunto tabu. Muitos dos elementos da elite dirigente do PAIGC estavam influenciados pela ideia europeia do Estado-nação. A esta recetividade agregou-se o anti-imperialismo marxista, apresentava-se como uma atrativa ideologia que prometia a liberdade face à denominação colonial. Entretanto, os sentimentos nacionais foram crescendo à volta do crioulo, das mandjuandades e as diversões carnavalescas, é esta a tese do autor.
Guineenses em manifestação, arvorando sempre a bandeira do país
O crioulo é linguagem veicular interétnica por excelência. Recorde-se que durante a luta armada a Rádio Libertação privilegiava o crioulo. Passo a passo, o crioulo transformou-se de uma frente linguística do meio condutor do projeto da nação-Estado.
Mandjuandades são instituições de assistência mútua, são espaços de sociabilidade; há mandjuandades cristãs, muçulmanas e multiétnicas.
Depois da independência, era a Juventude Africana Amílcar Cabral quem coordenava as festas do Carnaval, a partir de 1984 será a Direção-Geral da Cultura a liderar o acontecimento. O Carnaval veio a criar uma identidade comum.
O autor questiona as ameaças postas pela fragmentação étnica. O exemplo mais evidente é Kumba Ialá e a tentativa de balantização do regime. O antigo Presidente da República foi frequentemente acusado de manipular e explorar vínculos étnicos para ganhar apoios e votos. Nas eleições presidenciais de 2005, puseram frente a frente Nino Vieira e Malam Bacai Sanhá, Nino insinuou os perigos de uma absoluta islamização de poder caso Malam Bacai Sanhá ganhasse. Nino apresentava o rival como um Mandinga quando este era de etnia Beafada. Isto fazia parte de uma estratégia deliberada para desacreditar Sanhá aos olhos dos Fulas. Porém a convivência pacífica nos grupos étnicos não foi profundamente afetada.
Passando para o conceito de vitimização da nação, recorde-se que os guineenses continuam a sentir-se comprometidos com a sua nação apesar de se sentirem desafetados do Estado. Os guineenses dão de si próprios um retrato de comunidade solidária de vítimas. O termo crioulo koitadesa deriva dos termos portugueses pobreza, infelicidade e miséria. Os guineenses têm uma longa experiência de autoritarismo e uma mentalidade de dependência, o que faz com o cidadão veja a classe política como aquela que procura o auto-favorecimento onde os políticos são indiferentes aos interesses nacionais. Algo se modificou com o conflito político-militar de 1998-1999. Este conflito é o exemplo mais eloquente de que uma população heterogénea pode cerrar fileiras face à chegada de tropas estrangeiras, a população guineense acabou por os encarar como inimigos da Nação. Outro aspeto curioso deste conflito é que as fações lideradas por Nino Vieira e Ansumane Mané reclamavam representar em nome da nação. A fação de Nino insistia na legitimidade constitucional e nos compromissos de assistência militar mútua com o Senegal e a Guiné-Conacri. A Junta Militar reclamava estar a combater pelo bem-estar da nação e acusava Nino Vieira de corrupção e má governação isto a par das reivindicações para melhores condições para a tropa e para os veteranos combatentes. A maior parte da população apoiou a Junta Militar enquanto as tropas estrangeiras eram consideradas como invasoras e uma ameaça para a nação guineense.
A França procurou aproveitar-se para ganhar influência política e económica, havia já um longo historial da presença francesa na região, no Casamansa, rios Nuno e Cacine no século XIX. O Senegal e a Guiné Conacri tinham pretensões quanto à Guiné-Bissau, tudo acabou por favorecer o sentimento nacional guineense.
Por último, recorda o autor, convém não esquecer que a nação guineense se construiu depois da função do Estado independente. Em suma, a Guiné-Bissau viu primeiro construída a nação e continua problemática a construção do Estado.
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Nota do editor
Último poste da série de 20 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18542: Notas de leitura (1059): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (31) (Mário Beja Santos)
4 comentários:
Caros amigos,
Interessantes pontos de vista na analise do investigador Christoph kohl.
1- Metodos de integracao etnica utilizados por Sekou Touré vs Amilcar Cabral, respectivamente na Guiné-Conakri e Guiné-Bissau;
2- A unidade nacional forte na ausencia de estado "forte" tendo como elementos aglutinadores: Uma lingua nacional (Crioulo), as mandjuandades (associaçoes informais de base popular) e as diversoes carnavalescas.
3- Os partidos politicos num contexto de grupos heterogeneous e as tentativas de manipulacao na base tribal, entre outros.
Os dois lideres (S. Touré e A. Cabral) tiveram de facto resultados bem diferentes na tentativa da construcao de uma unidade nacional nos seus respectivos paises. E, em comum, tiveram o facto de enfrentarem dificuldades, principalmente, na mobilizacao do mesmo grupo étnico, os Fulas de la e de ca. No fim, Cabral teve melhores resultados porque o proprio era mais ou menos um elemneto neutro e o seu metodo nao hostilizava nem favorecia, directamente, nenhum grupo em particular.
Sobre os elementos aglutinadores da unidade nacional, deve-se acrescentar os casamentos mistos, elemento que, na minha opiniao, podera contribuir para eliminar as diferencas etnicas e consolidar a coesao nacional ja iniciada com a(as) luta(as) de libertacao nacional
(Guerra colonial e a Guerra civil de 1998/99).
Quanto a competiçao (luta) politica iniciada com a abertura politica dos anos 90 e as tentativas de manipulaçao tribal por parte de Kumba yala, para ganhar apoio/votos, queria esclarecer que a estrategia de Kumba nao era assim tao tribalista como se pintou e, para ser bem sucedida, e ele sabia disso, nao podia apoiar-se somente na sua tribo que constituia mais ou menos 25% da populacao. Antes de tudo, a sua estrategia consistia em mobilizar, tambem, os Fulas, que ele sabia estarem marginalizados pelo aparelho politico desde a independencia. Portanto o raciocinio era nos seguintes termos: Quem pudesse reunir as duas maiores etnias da Guiné teria as maiores probabilidades de dominar na arena politica onde o numero de votantes determinava o acesso ao poder.
Foi isso que o kumba Yala fez, com mais ou menos sucesso, num contexto de luta politica com um adversario aguerrido e bem implantado nas camadas populares, com especial destaque no interior do pais. O rotulo de tribalista que lhe deram, de uma certa forma, foi resultado desta Guerra com um partido que tem pretensoes de ser o dono e patrono "disto tudo", a quem todos devem favores e a unica atitude que aceitam é a da submissao e obediencia sem limites, como nos tempos do Partido-estado.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
O grande problema de África.
Herdaram países feitos pelas potências coloniais(limitação de fronteiras)que quase nunca correspondem à realidade no terreno.
É Praticamente impossível alterar essa situação,e se querem construir estados-nações só lhes resta a alternativa de assimilação inter-étnica.
Infelizmente vai levar muitos anos ou mesmo séculos.
A corrupção das elites politicas também não ajuda nada.
C.Martins
É verdade Cherno, o quase sacristão católico encostou-se aos Fulas e até anunciou que se converteu e vestia-se tal qual e ficava-lhe bem.
Mas já o Nino também se vestia à maneira, pelo menos para a fotografia com os chefes Fulas.
Também Spínola reconheceu a importância e a mais valia dos Fulas.
Só Luís Cabral não viu, não sei se Amílcar teria comportamento diferente daquele que teve o irmão, com os fuzilamentos, penso que não...ou já não sei?
Tantos caboverdeanos que conheci em Luanda, perspicazes, inteligentes, diplomatas, "neutros" e Luís Cabral desiludiu.
BS apresenta-nos este alemão que tem uma afirmação que eu (moi)repito até chatear:
«...O Senegal e a Guiné Conacri tinham pretensões quanto à Guiné-Bissau...».
Eu canso-me de dizer, (mas não sou alemão)que o mesmo sentimento tinham os vizinhos de Angola, Moçambique, Timor e Goa e São João Batista de Ajudá.
Não fossem os 13 anos de "Guerra do Ultramar" e só havia dois PALOP, Caboverde e São Tomé.
Cumprimentos
Em 1965-66, dois anos após lá ter nomadizado o José Ferreira e a sua malta, Buruntuma era uma tabanca de "risca ao meio", mista de Fulas e Mandingas, com mais de 4 000 habitantes; vivi intensamente no seu seio, no desempenho da formação e treino de milícias e da "acção psicossocial".
O PAIGC abrira a luta na Frente Leste com terrorismo puro - queimou todas as tabancas fronteiriças, matou, roubou e expulsou as suas populações fulas em conjugação com a "gendarmarie" de Sekou Touré, que determinou o recuo de cerca cerca de 15 km das populações, para criar uma zona de guerra de "terra de ninguém". As populações eram fulas, fizeram-lhe "desobediência civil" e foram ferozmente perseguidas. Nesse contexto, tivemos dois "contactos"com tropas do exército regular da Rep da Guiné (causámos-lhe 2 mortos confirmados) e vários outros estiveram eminentes.
A elevada densidade populacional de Buruntuma decorreu nesse contexto, o QG de Bissau ordenou a sua deslocalização para a região de Cabuca, a população opôs-se a mais esse "terrorismo", com o nosso apoio activo junto dos chefes de tabanca das duas etnias, inclusive a hipótese da sabotagem das viaturas...
A este propósito, cumpre-me invocar a memória do camarada açoriano Manuel Simas, que nos deixou há um ano...
Na sua puridade africana, aquela gente tinha um arreigado sentimento de nação, com o qual lidamos, sem sem afectação: o óbvio fazia-as anti-PAIGC: porque fazia a guerra e porque consideravam A. Cabral aliado de S. Touré, que tanto as discriminava negativamente. Para elas, os a mando de Cabral e Touré eram o diabo e os a mando do Salazar eram uns anjos...
Enquanto tem funcionado exemplarmente como Nação, a Guiné-Bissau tem falhado como Estado...
A História ensina que as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos...
Ab.
Manuel Luís Lomba
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