segunda-feira, 23 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18553: Notas de leitura (1060): “Integração Nacional na Guiné-Bissau desde a Independência”, por Christoph Kohl, no Caderno de Estudos Africanos do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, n.º 20, Janeiro de 2011 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Não se pode deixar ter em atenção a argumentação expendida por este antropólogo social alemão: o nível da integração nacional é relativamente forte, apesar da diversidade étnica. Ao longo de décadas, constituíram-se cimentos para o sentimento nacional: o crioulo como língua veicular, as mandjuandades, a rejeição à fragmentação étnica, a expulsão dos invasores no conflito militar de 1998-1999, as festas carnavalescas. No entanto, apesar deste sentimento nacional, os guineenses sentem-se desafetados do Estado, vítimas dos políticos e há um termo crioulo que surge sempre quando se fala (e muitas vezes se fala) de pobreza, infelicidade e miséria: koitadesa.

Um abraço do
Mário


A integração nacional na Guiné-Bissau

Beja Santos

No Caderno de Estudos Africanos do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, n.º 20, referente a Janeiro de 2011 e organizado pelo investigador Gerhard Seibert sob o título “Identidades, Percursos e Clivagens nos PALOP”, tem particular interesse para aqueles que estudam a Guiné o artigo de Christoph Kohl denominado “Integração Nacional na Guiné-Bissau desde a Independência”. Christoph Kohl é antropólogo social.

O que o autor dá como apurado é que na Guiné-Bissau o nível de integração nacional é relativamente forte, apesar da diversidade étnica. Este caso de integridade nacional baseia-se na ideologia e política do antigo movimento independentista e na prática do jovem Estado pós-colonial onde se advogou um modelo de unidade nacional da diversidade étnica. Mas também nesta pesquisa se apurou que os guineenses vitimizam a sua nação quando a confrontam com o Estado. Uma invasão estrangeira durante o conflito militar de 1998-1999 reforçou ainda mais a integração nacional. Nesse mesmo conflito apurou-se uma ingerência da diplomacia francesa que se colocou ao serviço de Nino Vieira, no fim do consulado deste as instalações diplomáticas francesas foram assaltadas e destruídas, houve mesmo que vir ao auxílio das tropas francesas presentes.

Após descrever os pontos mais relevantes da luta armada e do papel do PAIGC, o autor refere-se à era de Luís Cabral a que se sucede o consulado de Nino Vieira que a despeito do multipartidarismo em que já decorreram as eleições de 1994 manteve o autoritarismo político e fomentou lutas pelo poder na esfera político-militar. A despeito dos rótulos de “frágil”, “colapsado”, “fraco”, etc, existe uma forte consciência nacional em que o crioulo é um verdadeiro cimento.

Muitos estados africanos têm sido qualificados nos anos mais recentes por fracos, não-Estados, frágeis, mas apesar destas nomenclaturas, as respetivas nações têm sobrevivido. É importante separar analiticamente os conceitos de Estado e de nação. Mesmo se um Estado é apresentado como inteiramente disfuncional, ou seja, o seu funcionamento não corresponde ao clássico modelo europeu baseado na terminologia de Max Weber, o Estado continua a existir se é caracterizado por uma pronunciada identidade nacional, mesmo que haja uma fraca identificação da nação com o Estado – é o que se pode verificar em muitos países que vêm no Índice dos Estados Falhados.

Os ideólogos europeus estavam convencidos que havia uma incontestável congruência nas entidades políticas e nacionais. Acreditava-se que uma homogeneidade cultural e étnica constituía a nação-Estado. No estudo sobre a Guiné-Bissau, é patente haver posições da nação contra o Estado. Para se perceber esta tensão, é preciso ir mais atrás, às fundações da Nação. Em contraste com líderes como Touré, Nkrumah ou Machel, Cabral não supunha ser necessário erradicar as identidades étnicas para afirmar a nova identidade nacional. Cabral estava convencido que fora ultrapassada a era dos grupos étnicos, dizia abertamente que todos poderiam avançar juntos em unidade.

A nação-Estado pós-colonial foi constituída por um partido, o PAIGC. A transformação da sociedade pós-independente pautou-se por um severo controlo político, uma expansão da burocracia, um novo regime em que foram excluídos os apoiantes dos portugueses e eliminados os dissidentes. As instituições eram controladas pelo Estado, o tribalismo passou a ser silenciado, era assunto tabu. Muitos dos elementos da elite dirigente do PAIGC estavam influenciados pela ideia europeia do Estado-nação. A esta recetividade agregou-se o anti-imperialismo marxista, apresentava-se como uma atrativa ideologia que prometia a liberdade face à denominação colonial. Entretanto, os sentimentos nacionais foram crescendo à volta do crioulo, das mandjuandades e as diversões carnavalescas, é esta a tese do autor.

 Guineenses em manifestação, arvorando sempre a bandeira do país

O crioulo é linguagem veicular interétnica por excelência. Recorde-se que durante a luta armada a Rádio Libertação privilegiava o crioulo. Passo a passo, o crioulo transformou-se de uma frente linguística do meio condutor do projeto da nação-Estado.

Mandjuandades são instituições de assistência mútua, são espaços de sociabilidade; há mandjuandades cristãs, muçulmanas e multiétnicas.

Depois da independência, era a Juventude Africana Amílcar Cabral quem coordenava as festas do Carnaval, a partir de 1984 será a Direção-Geral da Cultura a liderar o acontecimento. O Carnaval veio a criar uma identidade comum.

O autor questiona as ameaças postas pela fragmentação étnica. O exemplo mais evidente é Kumba Ialá e a tentativa de balantização do regime. O antigo Presidente da República foi frequentemente acusado de manipular e explorar vínculos étnicos para ganhar apoios e votos. Nas eleições presidenciais de 2005, puseram frente a frente Nino Vieira e Malam Bacai Sanhá, Nino insinuou os perigos de uma absoluta islamização de poder caso Malam Bacai Sanhá ganhasse. Nino apresentava o rival como um Mandinga quando este era de etnia Beafada. Isto fazia parte de uma estratégia deliberada para desacreditar Sanhá aos olhos dos Fulas. Porém a convivência pacífica nos grupos étnicos não foi profundamente afetada.

Passando para o conceito de vitimização da nação, recorde-se que os guineenses continuam a sentir-se comprometidos com a sua nação apesar de se sentirem desafetados do Estado. Os guineenses dão de si próprios um retrato de comunidade solidária de vítimas. O termo crioulo koitadesa deriva dos termos portugueses pobreza, infelicidade e miséria. Os guineenses têm uma longa experiência de autoritarismo e uma mentalidade de dependência, o que faz com o cidadão veja a classe política como aquela que procura o auto-favorecimento onde os políticos são indiferentes aos interesses nacionais. Algo se modificou com o conflito político-militar de 1998-1999. Este conflito é o exemplo mais eloquente de que uma população heterogénea pode cerrar fileiras face à chegada de tropas estrangeiras, a população guineense acabou por os encarar como inimigos da Nação. Outro aspeto curioso deste conflito é que as fações lideradas por Nino Vieira e Ansumane Mané reclamavam representar em nome da nação. A fação de Nino insistia na legitimidade constitucional e nos compromissos de assistência militar mútua com o Senegal e a Guiné-Conacri. A Junta Militar reclamava estar a combater pelo bem-estar da nação e acusava Nino Vieira de corrupção e má governação isto a par das reivindicações para melhores condições para a tropa e para os veteranos combatentes. A maior parte da população apoiou a Junta Militar enquanto as tropas estrangeiras eram consideradas como invasoras e uma ameaça para a nação guineense.

A França procurou aproveitar-se para ganhar influência política e económica, havia já um longo historial da presença francesa na região, no Casamansa, rios Nuno e Cacine no século XIX. O Senegal e a Guiné Conacri tinham pretensões quanto à Guiné-Bissau, tudo acabou por favorecer o sentimento nacional guineense.

Por último, recorda o autor, convém não esquecer que a nação guineense se construiu depois da função do Estado independente. Em suma, a Guiné-Bissau viu primeiro construída a nação e continua problemática a construção do Estado.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18542: Notas de leitura (1059): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (31) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Interessantes pontos de vista na analise do investigador Christoph kohl.

1- Metodos de integracao etnica utilizados por Sekou Touré vs Amilcar Cabral, respectivamente na Guiné-Conakri e Guiné-Bissau;

2- A unidade nacional forte na ausencia de estado "forte" tendo como elementos aglutinadores: Uma lingua nacional (Crioulo), as mandjuandades (associaçoes informais de base popular) e as diversoes carnavalescas.

3- Os partidos politicos num contexto de grupos heterogeneous e as tentativas de manipulacao na base tribal, entre outros.

Os dois lideres (S. Touré e A. Cabral) tiveram de facto resultados bem diferentes na tentativa da construcao de uma unidade nacional nos seus respectivos paises. E, em comum, tiveram o facto de enfrentarem dificuldades, principalmente, na mobilizacao do mesmo grupo étnico, os Fulas de la e de ca. No fim, Cabral teve melhores resultados porque o proprio era mais ou menos um elemneto neutro e o seu metodo nao hostilizava nem favorecia, directamente, nenhum grupo em particular.

Sobre os elementos aglutinadores da unidade nacional, deve-se acrescentar os casamentos mistos, elemento que, na minha opiniao, podera contribuir para eliminar as diferencas etnicas e consolidar a coesao nacional ja iniciada com a(as) luta(as) de libertacao nacional
(Guerra colonial e a Guerra civil de 1998/99).

Quanto a competiçao (luta) politica iniciada com a abertura politica dos anos 90 e as tentativas de manipulaçao tribal por parte de Kumba yala, para ganhar apoio/votos, queria esclarecer que a estrategia de Kumba nao era assim tao tribalista como se pintou e, para ser bem sucedida, e ele sabia disso, nao podia apoiar-se somente na sua tribo que constituia mais ou menos 25% da populacao. Antes de tudo, a sua estrategia consistia em mobilizar, tambem, os Fulas, que ele sabia estarem marginalizados pelo aparelho politico desde a independencia. Portanto o raciocinio era nos seguintes termos: Quem pudesse reunir as duas maiores etnias da Guiné teria as maiores probabilidades de dominar na arena politica onde o numero de votantes determinava o acesso ao poder.

Foi isso que o kumba Yala fez, com mais ou menos sucesso, num contexto de luta politica com um adversario aguerrido e bem implantado nas camadas populares, com especial destaque no interior do pais. O rotulo de tribalista que lhe deram, de uma certa forma, foi resultado desta Guerra com um partido que tem pretensoes de ser o dono e patrono "disto tudo", a quem todos devem favores e a unica atitude que aceitam é a da submissao e obediencia sem limites, como nos tempos do Partido-estado.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

O grande problema de África.

Herdaram países feitos pelas potências coloniais(limitação de fronteiras)que quase nunca correspondem à realidade no terreno.
É Praticamente impossível alterar essa situação,e se querem construir estados-nações só lhes resta a alternativa de assimilação inter-étnica.
Infelizmente vai levar muitos anos ou mesmo séculos.
A corrupção das elites politicas também não ajuda nada.

C.Martins

Antº Rosinha disse...

É verdade Cherno, o quase sacristão católico encostou-se aos Fulas e até anunciou que se converteu e vestia-se tal qual e ficava-lhe bem.

Mas já o Nino também se vestia à maneira, pelo menos para a fotografia com os chefes Fulas.

Também Spínola reconheceu a importância e a mais valia dos Fulas.

Só Luís Cabral não viu, não sei se Amílcar teria comportamento diferente daquele que teve o irmão, com os fuzilamentos, penso que não...ou já não sei?

Tantos caboverdeanos que conheci em Luanda, perspicazes, inteligentes, diplomatas, "neutros" e Luís Cabral desiludiu.
BS apresenta-nos este alemão que tem uma afirmação que eu (moi)repito até chatear:
«...O Senegal e a Guiné Conacri tinham pretensões quanto à Guiné-Bissau...».

Eu canso-me de dizer, (mas não sou alemão)que o mesmo sentimento tinham os vizinhos de Angola, Moçambique, Timor e Goa e São João Batista de Ajudá.

Não fossem os 13 anos de "Guerra do Ultramar" e só havia dois PALOP, Caboverde e São Tomé.

Cumprimentos

Manuel Luís Lomba disse...

Em 1965-66, dois anos após lá ter nomadizado o José Ferreira e a sua malta, Buruntuma era uma tabanca de "risca ao meio", mista de Fulas e Mandingas, com mais de 4 000 habitantes; vivi intensamente no seu seio, no desempenho da formação e treino de milícias e da "acção psicossocial".
O PAIGC abrira a luta na Frente Leste com terrorismo puro - queimou todas as tabancas fronteiriças, matou, roubou e expulsou as suas populações fulas em conjugação com a "gendarmarie" de Sekou Touré, que determinou o recuo de cerca cerca de 15 km das populações, para criar uma zona de guerra de "terra de ninguém". As populações eram fulas, fizeram-lhe "desobediência civil" e foram ferozmente perseguidas. Nesse contexto, tivemos dois "contactos"com tropas do exército regular da Rep da Guiné (causámos-lhe 2 mortos confirmados) e vários outros estiveram eminentes.
A elevada densidade populacional de Buruntuma decorreu nesse contexto, o QG de Bissau ordenou a sua deslocalização para a região de Cabuca, a população opôs-se a mais esse "terrorismo", com o nosso apoio activo junto dos chefes de tabanca das duas etnias, inclusive a hipótese da sabotagem das viaturas...
A este propósito, cumpre-me invocar a memória do camarada açoriano Manuel Simas, que nos deixou há um ano...
Na sua puridade africana, aquela gente tinha um arreigado sentimento de nação, com o qual lidamos, sem sem afectação: o óbvio fazia-as anti-PAIGC: porque fazia a guerra e porque consideravam A. Cabral aliado de S. Touré, que tanto as discriminava negativamente. Para elas, os a mando de Cabral e Touré eram o diabo e os a mando do Salazar eram uns anjos...
Enquanto tem funcionado exemplarmente como Nação, a Guiné-Bissau tem falhado como Estado...
A História ensina que as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos...
Ab.
Manuel Luís Lomba