quinta-feira, 26 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18565: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 43 ("A minha úlcera") e 44 ("Biafadas ou balantas ?")









Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > 1973 > Mães biafadas, esbeltas, de olhar desafiador...

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*)

(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;

(ii) trabalahou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;

(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade;  foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);

(iv) tem página no Facebook; é avô e está a animar o projeto "Bosque dos Avós", na Serra do Marão, em Amarante;

(ix) é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.

Sinopse:


(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;

(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;

(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);

(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;

(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;

(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM parea Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;

(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;

(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";

(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";

(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...

(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerogram as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.

(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;

(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.

(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);

(xv) começa a colaborar no jornal da unidade (dirirido pelo alf mil Jor Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;

(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. capº 34º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;

(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;

(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.

(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas.


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 43 e 44



[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]


43º Capítulo  > A ÚLCERA

“Não é úlcera que tenho no estômago. Segundo o médico é uma gastrite e diz ele que não é tão perigoso, basta beber leite e tomar um medicamento que me deu. Fiquei confuso porque no livro que me deram, O Médico em Casa, indica que os sintomas são de uma úlcera. Tenho de fazer dieta. Já tinha deixado há dias de beber bebidas alcoólicas e como a dieta aqui é difícil de fazer o que me safa é que bebo muito leite condensado.

O médico que costuma vir de 15 em 15 dias e ir para outro lado, vai estar aqui exactamente 15 dias, acho que desta vez trouxe xarope e comprimidos, de maneira que tanto eu como os meus colegas que estamos doentes talvez melhoremos um pouco.

Uma coisa que aqui faz falta é vitaminas pois é difícil comer vegetais dado que não há hortaliça, no entanto também temos agora um xarope de vitaminas, é muito possível que em breve comecemos a andar todos porreiros”.


Este pequeno parágrafo que reli fez-me vir à memória que apenas em 1995 deixei de sofrer do estômago e tudo graças a um excelente gastrenterologista que, ao ver-me tomar um antiácido durante uma reparação que efectuei no seu carro, fez questão que eu realizasse vários exames, onde me foi diagnosticado o H. Pilori. Após algum tempo de tratamento, melhorei consideravelmente, até hoje.

Quero dizer-lhes que só no meu regresso definitivo é que dei baixa ao hospital militar. Já depois do 25 de Abril de 1974, e durante três semanas sem que lá estive, continuaram apenas a dar-me antiácidos. Fugi de lá, dando-me apto para todo o serviço militar. Nem repararam que já o tinha cumprido. Foi nessa altura que me perderam. Descansem. O Abreu encontrou-me em 1975

Foram mais de vinte anos que, por negligência e estupidez da classe médica, tanto militar como depois da civil, eu e muitos outros que viemos da Guiné com algumas doenças passámos um mau bocado. O laboratório que fabrica o Phosphalugel deve estar bem contente comigo. Gastei centenas de caixas dessa porcaria.


44º Capítulo  > BIAFADAS OU BALANTAS?

E de repente…

“Meu bem quero escrever uma série de coisas sobre este povo da Guiné, mas só o conseguirei fazer se alguém gostar do que escrevo de maneira que pergunto-te se gostarás de saber os usos e costumes dos negros que aqui vivem? A minha intenção é a de mais tarde quando eu quiser, por aquilo que escrevo, posso explicar aos amigos como é esta gente e como vivem. Manda-me dizer se não te aborrecerá ler alguma coisa disso. Eu podia escrever e guardar aqui os manuscritos mas tentei e não tenho o mesmo entusiasmo, por isso depois de escrever o 1º artigo se me encorajares a fazer mais talvez faça um diário da minha vida na Guiné para mostrar aos nossos filhos o que foi a minha comissão. Diz-me então o que pensas.

Em algumas conversas ouvi comentar que no local onde estou, Fulacunda, a Maioria da população são Biafadas mas também dizem que são Balantas. Vou informar-me melhor.

Amanhã há mais uma operação no mato pelos meus camaradas. Agora estamos sempre em sobressalto”.


Será que fiz mesmo isso? Se o fiz, e por aquilo que escrevi e que reli até agora, onde demonstro poucos conhecimentos, de certeza que meti os pés pelas mãos.

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Nota do editor:

8 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Dino, e será que era importante distinguir os biafadas e os balantas ? A administração e a tropa é que nos impunham esses estereótipos sobre a população guineense... E nós interiorizámos esses clichés estúpidos (e, no fundo, racistas): todo o balanta era "ladrão", por exemplo...

Cá na nossa terra, os beirões, os transmontanos e os algarvios têm, algum sinal da testa para a gente os distinguir (no fundo, discriminar) ? Não têm, felizmente, e a gente há muito que se casa uns com os outros...

O mesmo se passa hoje, cada vez mais, na Guiné Bissau, com os casamentos interétnicos, como nos lembrou há dias o nosso grande amigo Cherno Baldé, fula, casado com uma nalu...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Biafadas | s. m. pl.
masc. e fem. pl. de biafada

Bi·a·fa·das
substantivo masculino plural
Uma das tribos principais da Guiné.

Palavras relacionadas: biafada.

bi·a·fa·da
substantivo feminino
Língua do grupo felupo, falada pelos biafadas.


"Biafadas", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/Biafadas [consultado em 26-04-2018].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

balanta | adj. 2 g. | s. 2 g. | s. m.

ba·lan·ta
(balanta bulanda)
adjectivo de dois géneros
1. Relativo ou pertencente aos balantas, povo indígena da Guiné-Bissau.

substantivo de dois géneros
2. Indivíduo pertencente aos balantas.

substantivo masculino
3. Língua falada pelos balantas.


"balanta", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/balanta [consultado em 26-04-2018].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Confesso que é das coisas mais idiotas que a gente pode ler na história das nossas unidades, a chamada caracterização da população por setor ou subsetor
Aquilo está cheio de erros, estereótipos e preconceitos,,,

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Bela foto, Dino... São belas mães biafadas, esbeltas e com olhar desafiador... O puto da esquerda não gostou de ti, escondeu-se...

Muito provavelmente estas mulheres teríam parentes no "mato", isto é, na guerrilha ou em tabancas controladas pelo PAIGC, na região de Quínara... Nós estávamos reduzidos aqui a meia dúzia de povoações: Buba, Empada, Fulacunda, Tite...

Aconteceram aqui coisas "estranhas", no início da guerra, que ainda estão por contar... O povo biafada foi muito martirizado, ao longo da história do território...

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Luis,

Tu dizes "Aconteceram aqui coisas estranhas, no inicio da Guerra..."; eu digo mais: Aconteceram coisas estranhas em Quinara que ainda estao por contar.

Fulacunda (significa aldeia dos fulas), Buba-Tumbo (significa Buba antiga) devem ter sido localidades fundadas por Fulas (provavelmente Fula-Forros criadores de gado) que vieram do Forrea a procura de paz e tranquilidade em finais do sec.XIX, numa altura em que toda a regiao (nas margens do Corubal), incluindo Forrea e a propria Quinara, estava numa sangrenta disputa entre diferentes contendores. Os Biafadas que, depois de perderem as suas terras a favor dos Mandingas primeiro e dos Fulas, em seguida, na margem direita do Corubal tinham passado para a margem esquerda na esperança que dai ja nao passavam posto que tinham o oceano a vista. Os Fula-Forros e seus antigos captivos, em Guerra permanente pela posse do poder e dos territorios conquistados aos Mandingas e aos Beafadas. Os Futa-Fulas do poderoso Estado teocratico do Futa-Djalon em inteligentes manobras de intrigas e alianças para a conquista dos ultimos redutos e zonas de influencia do antigo imperio de Kaabu. Os Portugueses em Bolama e suas pretensoes sobre o territorio de Guinala nas margens do Rio Grande. Os Ingleses sediados em Serra-Leoa e também com pretensoes territoriais na regiao, etc, etc.

Consta que os Portugueses, em finais dO sec. XIX e principios do seguinte, começaram por tentar ajudar os Fula-Forros que precisavam de terras para trabalhar e criar os seus animais, mas rapidamente se aperceberam que, para os seus proprios interesses coloniais, era melhor proteger os Beafadas contra os grupos Fulas que representavam, num future proximo, maior ameaça em funçao do seu numero em crescendo, da sua força belica e ambiçoes politico-territoriais.

Por ironia do destino, seriam os mesmos Beafadas os primeiros a se revoltar contra a dominaçao colonial e aderir em massa ao PAIGC, donde despontariam importantes Comandantes da guerrilha, como Quemo Mané, Arafam Mané (N'djamba), Mamadu Indjai, N'tchambu Mané entre outros. Assim o feitiço virava contra o proprio feiticeiro.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Já aprendi mais pormenores sobre a Guiné sem estar lá, do que em treze anos que lá vivi.

Viver numa terra sem dialogar no idioma dos naturais, só através de interpretes é que entendemos o que nos rodeia.

E não é fácil conseguir bons interpretes.

O que Spínola tinha aprendido naquele tempo, se soubesse o que nós aqui já ouvimos e lemos!

Até talvez o próprio Amílcar teria aprendido coisas que nunca lhe passaram pela cabeça!

Anónimo disse...

CARO CAMARADA DINO

Sobre a úlcera gástrica provocada pela bactéria h.pylori,só em 1994 é que foi reconhecida causa- efeito,por isso ao falares em negligência ou incompetência médica é despropositado da tua parte.
Também alguns dos medicamentos para o tratamento não existiam anteriormente,nomeadamente o omeprazol ou o lanzoprazol-

Um alfa bravo

C.Martins