quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19285: Notas de leitura (1130): "Sótão, Rés-do-Chão e Outras Vidas", por Alberto Branquinho; Edições Partenon, 2018 (Carlos Vinhal)


Capa do livro

Depois de "Por Século e Meio", Edições Partenon, 2017, Aberto Branquinho lançou recentemente um livro de contos a que deu o título de "Sótão, Rés-do-Chão e Outras Vidas", Edições Partenon, 2018.

Estamos perante uma prosa que retrata a sociedade actual, nos seus caminhos tortuosos, o quotidiano da classe média, vítima dos tempos incertos e o descartar de pessoas que se julgavam insubstituíveis.

Podemos encontrar ainda pequenos contos, histórias de famílias e até, no dizer do autor, um resumo para telenovela, "História Breve de Uma Família", os Lidões e a sua dedicada empregada Ludovina.

Habituados como estamos ao estilo de Alberto Braquinho, lembro as suas séries: "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo" e "Contraponto", encontramos neste livro flashes do quotidiano e do imaginário.

Como exemplo aqui ficam, a "Parábola dos Dedos da Mão" e "Le (Petit) Déjeuner sur L´Herbe":

Estavam os dedos das mãos em conversa animada, quando o indicador da mão direita, a propósito de coisa nenhuma, se empinou todo, apontou o polegar da mão esquerda e, depois, fazendo um esforço, torcendo-se todo, apontou, também, o polegar da sua própria mão, disse:
- Se não fossem esses dois, nós tínhamos uma vida muito mais sossegada. Por causa deles é que nós trabalhamos tanto.
- Ora essa! - foi a reacção imediata do polegar direito.
- Pois! Vocês, os polegares, sem nós não servem para nada. Nada. Ficavam sem ocupação. E, sozinhos, também não fazem coisa nenhuma. Mas, só porque estão aí, obrigam os outros a trabalhar, a fazer esforços.
- Sem nós, o que é que vocês faziam? - insistiu o polegar direito.
- Pouco, mas era mais do que o suficiente. Era um descanso. Eu por mim, limitava-me a apontar. Aqui o meu vizinho do lado direito fazia aquelas coisas que, embora não sejam bonitas, aliviam muito; o outro a seguir, segurava os anéis e o pequeno coçava os ouvidos. Mais nada. Era um descanso de vida.
- Então e nós, os polegares não servimos para nada?
- Para nada! Nada! Só sabem fazer oposição e a obrigarem os outros a trabalhar. É demais!


(Pág. 55)

********************

À noite, depois do jantar, o homem saiu de casa levando o cão pela trela. Era um pretexto para caminhar um pouco.

O cão cheirou, no tronco da árvore, as urinas de cães que o precederam. Deu três ou quatro voltas ao tronco, depois outras três ou quatro em sentido contrário. Encostou o corpo do lado esquerdo, alçou a pata posterior (para não se atingir com o disparo urinário...) e despejou três ou quatro esguichos. O homem olhou satisfeito: - Hoje já não vai fazer em casa.

A seguir, o cão andou, desandou, cirandou, cheirou arbustos do jardim, passou para a rua, voltou ao jardim, sacudiu as patas traseiras, esfregando a relva. Mais adiante cheirou outro tronco de árvore, hesitou em abordá-lo se pela esquerda ou pela direita, encostou-se, alçou a pata, mas não conseguiu mais que um esguicho e... meio.

Voltou à ciranda, agora com mais vivacidade, obrigando o dono a mudar a trela de mão diversas vezes, quando andava à volta das árvores. Chegou-se outro cão. Cumprimentaram-se cheirando cada um, simultaneamente, a zona do traseiro do outro. Os donos disseram, também, "boa noite" (mas a uns metros de distância) e cada um seguiu o azimute traçado pelos cães.

O passeio continuou, avançando, recuando, na rua, voltando à relva do jardim publico e, novamente, para a rua. A dada altura o cão acelerou o andamento a caminho da relva, esparramou-se sobre as patas traseiras, expulsando uma barra redonda de excremento. Avançou um pouco na mesma postura e saíram mais duas ou três. E, logo a seguir, outra. Chegou-se um pouco à frente e esfregou fortemente as patas traseiras na relva, O dono olhava, embevecido. Talvez pensasse: - Mais um bocadinho e voltamos para casa.

E, assim foi.

Na manhã seguinte as crianças que costumam brincar no jardim, irão pisar, tropeçar nas barras largadas na relva (e outras mais), talvez caírem sobre elas, fazendo com que elas passem a confundir-se com a própria relva do jardim, adubando-a.

("Na natureza nada se perde...")

(Pág. 79)

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SOBRE O LIVRO:
Título - Sótão, Rés-do-Chão e Outras Vidas
Edição - Edições Partenon
Autor - Alberto Branquinho
Capa - Ângela Espinha
Número de páginas - 145
1.ª edição - Lisboa, Outubro de 2018
ISBN - 978-989-8845-25-2
Depósito legal - 445732/18
Preço - 10,00€
© Alberto Branquinho
Publicação - Sítio do Livro

SOBRE O AUTOR:
Alberto Branquinho é natural da região agora denominada “Douro Superior”.
Esteve na guerra colonial, na Guiné. 
Tem publicações sobre esse tema em blogues e em livros.
Terminado o serviço militar, regressou a Coimbra em plena crise académica de 1969.
Vive em Lisboa desde 1970.
Depois de várias andanças e cambanças, a ver mais mundos, acabou sendo advogado em relações e contratos internacionais.
Publicou romance, livros de contos e poesia.

OBRAS PUBLICADAS:
PROSA:
- Cambança - Guiné: morte e vida em maré baixa
- Contos com Encontros
- Parições & Aparições - panfletos & divertimentos
- Cambança Final - Guiné/guerra colonial
- Filhos d'outrem ou d'algures
- Por Século e Meio

POESIA:
- Sobre Vivências
- Quasoutono?!
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19274: Notas de leitura (1129): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (5) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Parabéns, Alberto, por mais este livro... que tem um título original e sugestivo: há muita gente, a grande maioria, que tem vidas ao nível cave e do rés-do-chão... O que não dizer menos dignas e menos bonitas do que aquelas dos que vivem no 7º andar... Mas mobilidade social, neste país, ainda é muito limitada: quantos não sonham subir da cave...para o sótão?!... Não é muito, mas já são mais degraus...

Um bom tema para as nossas leituras e reflexões natalícias... Boa continuação das festas!... Luís

Hélder Valério disse...

Gosto!

O "conto" sempre foi uma "espécie literária" que obteve a minha empenhada apreciação.
Foi assim desde que li os "Novos Contos da Montanha", mas não só.
Na Guiné deliciei-me com um livrinho da série "livro azul", intitulado "O elefante e outros contos" de um autor polaco chamado Mrozek com o qual fiz alguma leituras colectivas na 5ª REP. Algumas histórias são de ir às lágrimas (de riso), outras de grande reflexão.

Portanto, sendo um "livro de contos", que aprecio, e sendo do Branquinho, de que também gosto, desde os tempos de "não venho falar de mim nem do meu umbigo", que me marcou pela ironia/aviso intrínseco, fiquei com imensa curiosidade e "apetite" para o conhecer. Ao livro, claro!

Hélder Sousa

Alberto Branquinho disse...

Luís

Obrigado por teres comentado. Mas:

- Os contos incluídos no livro não falam de "mobilidade social", concretizada sequer na subida para espaços habitacionais mais acima ou mais abaixo. "Alguém" voltou ao r/chão apesar de ter melhorado a sua condição e "outrem" acabou por sentir estar a "descer" ao sótão ao ser dispensado contra a sua vontade. Tudo o resto são coisas várias de ódios e desamores, vidas comuns, tricas familiares e outras, incluindo uma sanita falante.

- Odeio "rodriguinhos natalícios". Prefiro o tema do "Dia de Natal" do António Gedeão. É mais verdade.

Helder

Obrigado.
Se ainda não espreitaste bem, também escrevo do meu umbigo, mas nunca digo que é o meu; fica camuflado.

Abraços a ambos.
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QUEM DESEJAR o livro e outros (mas só os últimos cinco da lista):
- Sítio do Livro - Av. de Berna, 31 - 2º.Dto. LISBOA OU
- pena@sitiodolivro.pt

Alberto Branquinho