quarta-feira, 29 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20919: Historiografia da presença portuguesa em África (207): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
São curiosidades, este punhado de notas respigadas do Boletim Geral das Colónias, mas permitem várias leituras. Sarmento Rodrigues, o Governador que pôs a Guiné no mapa, muito fez para intensificar processos agrícolas que assegurassem autossuficiência alimentar, que garantissem trabalho. Na inauguração desta barragem de ourique, di-lo expressamente, aquelas toneladas de arroz seriam para a população, não para o Governo. E satisfaz-nos a curiosidade o artigo com dados científicos sobre o sucesso da cultura de amendoim na Guiné.
Recordo que por essas décadas de 1930, 1940 e 1950, os responsáveis do BNU na Guiné falavam abertamente na venda da mancarra com uma absoluta falta de qualidade, cheia de impurezas, o que a desqualificava no preço junto dos mercados para onde se exportava, aliavam essas informações críticas à falta de apoio no fomento agrícola, pondo os serviços agrícolas oficiais pelas ruas da amargura. São pois curiosidades mas que permitem, de qualquer modo, perceber os graus de desenvolvimento da Guiné no exato momento e que a sua economia levantava voo.

Um abraço do
Mário


A planta do amendoim, Guiné.


Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (2):
A que se deve o êxito da cultura do amendoim na Guiné Portuguesa

Beja Santos

No número de Abril de 1948 no Boletim Geral das Colónias, Armando Xavier da Fonseca, a quem já devemos uma referência a um artigo seu sobre madeiras da Guiné, debruça-se sobre o sucesso da exportação da mancarra, a Guiné superava Moçambique e Angola, e por números expressivos. Ele escreve: “Se com más sementes, sem nenhuma interferência das mais rudimentares máquinas agrícolas, sem mais do que uma monda, melhor ou pior, usando de processos violentos, mesmo que fossem usados fora de um clima de África, na preparação da terra, na sementeira, sem o principal granjeio que é a amontoa, para afofar a terra, para que as flores mais facilmente se enterrem para fortificarem, qual é o segredo que permite que o amendoim, se as chuvas de outubro não vêm, dê uma tonelada de sementes por descascar, como dão as piores culturas do Estado do Texas, na América do Norte?”.
E ele procura responder:  
“Na Guiné temos a demonstração feita do valor que tem a cultura das leguminosas, representadas principalmente pelo amendoim. O exemplo da nossa Guiné tem sempre de ser citado, como verdade que é: onde as leguminosas se cultivam abundantemente raras vezes é necessário aumentar a riqueza dos terrenos, salvo nas faltas de cálcio, fósforo e potássio. A própria experiência agrícola reconhece, desde sempre, o facto evidente de que, onde se cultivam as leguminosas em abundância, raramente se recorre a adubos químicos, principalmente aos azotados, sendo apenas precisos os de cálcio, fósforo e potássio, que na Guiné se obtêm pelas queimadas. Como não vi até agora campo de demonstração mais positivo, cito sempre o exemplo da Guiné na cultura da leguminosa que é o amendoim, que é valiosíssima porque se trata também, como se sabe, de um grande alimento, uma excelente forragem e acima de tudo isso, fertilizadora das terras em que é cultivada”. E demonstra possuir conhecimentos bastos sobre o valor do amendoim: “Desde 1886, que se sabe que esta extraordinária qualidade, até então misteriosa, que têm as leguminosas de reunir, armazenar e oferecer, em forma de alimento, forragem ou adubo, muito mais azoto do que aquele que se encontra na terra, é devido à presença, função e actividade de umas bactérias que se metem pelos estomas ou poros dos pelos das radículas, quando estas saem do germe ou semente”.

É um artigo de divulgação científica de quem domina a química alimentar e sabe da engenharia de solos, explica as funções das bactérias fixadoras do azoto, das bactérias das nodosidades das raízes das leguminosas e as suas propriedades.
E termina assim o seu trabalho:  
“Há também outro assunto que desejo focar e que é vulgaríssimo nas extensas lalas da Guiné, cultivadas com amendoim; é a facilidade com que as palhas do amendoim se transformam, mesmo nos terrenos mais ordinários de laterite grosseira. A razão já a deu a ciência: é porque os restos das leguminosas, devolvidos às terras, são rapidamente atacados por microrganismos que se multiplicam muito em resultado deste alimento adicional azotado. Muitos estudos têm sido feitos para determinar quanto azoto aproveita uma colheita a seguir a uma de leguminosas, empregando esta última como adubo verde e em que condições resulta mais perfeita e efectiva, e demonstraram que 50 a 80% do azoto é aproveitado pela primeira colheita seguinte. O efeito fertilizante dos restos dura uns dois ou três anos, mas diminui progressivamente de eficácia. A acção da cultura do amendoim tem-se desenvolvido afortunadamente nas nossas colónias, nestes últimos anos, e a Guiné não escapou a essa onda salvadora”.

Terminamos esta ronda de curiosidades extraídas do Boletim Geral das Colónias com a inauguração feita em 10 de fevereiro de 1946 da “grande barragem de Picle, situada no Posto Administrativo do Biombo, Bissau”. Atribuía-se grande importância ao empreendimento, era uma barragem cuja extensão de ourique era orçada em mais 14.000 metros. A previsão era uma produção de arroz calculada em 2.000 toneladas. Esteve presente Sarmento Rodrigues, mulher e filhos, recebeu os cumprimentos do Administrador do Concelho de Bissau, Francisco Artur Mendes e do Chefe do Posto do Biombo, João de Oliveira Seborro. O Governador percorreu cerca de um quilómetro sobre o dique, conversou com os indígenas e garantiu-lhes que o arroz produzido por esta nova extensão era para eles. Inaugurou-se um padrão, o Administrador pronunciou algumas palavras alusivas à cerimónia, estava-se ainda nas comemorações no âmbito do V Centenário do Descobrimento da Guiné. Sarmento Rodrigues encerrou os discursos declarando ser destituído de lógica o conceito tão generalizado de que os indígenas não estavam prontos a trabalhar, ele estava absolutamente seguro que eles empregariam o seu esforço desde que nele vissem a justa compensação de um objetivo que lhes facilitasse os meios de subsistência. Sarmento Rodrigues, finda a cerimónia junto do padrão, procedeu à distribuição de tabaco aos chefes indígenas assim como de vacas e mantimentos – arroz, vinho e aguardente – aos habitantes que colaboraram no ourique.




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Nota do editor

Último poste da série de 22 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20888: Historiografia da presença portuguesa em África (206): Algumas curiosidades respigadas do Boletim Geral das Colónias (1) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Valdemar Silva disse...

Boa ideia a publicação da imagem da planta do amendoim.
Muita boa gente pensa que o amendoim nasce como os feijões ou as favas.
Agora, com esta imagem, já todos ficam a saber que o amendoim nasce debaixo da terra como as batatas.
Amendoim, por cá também conhecido por alcagoita, é uma planta herbácea da família das leguminosas, apresentando como frutos umas vagens que amadurecem debaixo da terra e cujas sementes são comestíveis e na maioria transformadas em óleo alimentar.

Valdemar Queiroz

José Nascimento disse...

Quem diria. Tenho uma foto em que estou no cimo desse Padrão. Foi tirada quando estive no destacamento do Biombo.
José Nascimento

Antº Rosinha disse...

ou·ri·que
(do crioulo da Guiné-Bissau)
substantivo masculino
[Guiné-Bissau] Dique principal de uma bolanha, geralmente feito de lama e paus, que controla a entrada e saída de água nos arrozais (ex.: a manutenção do ourique implica muito trabalho).


"ourique", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/ourique [consultado em 30-04-2020].

Aquela foto em que vemos centenas de «Indígenas», cheira-me que seriam balantas, a passar de mão em mão pedaços de argila para construir 14 quilómetros de dique, isto em 1946, dá que pensar o que eramos nós a colonizar, comparados com a colonização de Inglaterra, Bélgica, por exemplo, em que já matinham milhares de «Indígenas» mobilizados mas na exploração de grandes minas de vários minérios.

Além de que já utilizavam meios mecânicos para tudo.

Nós eramos (somos) muito rudimentares, não tinhamos muita pressa, para explorar as riquezas naturais africanas.

E as tais riquezas por explorar achava muita gente que deus dava nozes a quem não tem dentes.

O próprio Amilcar Cabral, e os Netos, e Laras andavam a espalhar entre os «amigos» que havia imensas riquezas escondidas nas suas terras e Salazar escondia para ninguem cobiçar as suas colónias.

Enfim, colonizávamos devagarinho...mas estariamos errados?

Eu vi os russos com grandes máquinas de furos próprios para sondagens disfarçadas de furos para águas para fontanários para as tabancas.

Enfiaram cada garrusso! muito parvos!

Valdemar Silva disse...

Sobre o amendoim, comentava-se entre os soldados da nossa CART11 'mancarra sempre manga de problema'
Realmente, todos os comerciantes nas grandes tabancas/localidades, fosse qual fosse o seu negócio, tinham sempre 'lugar' para o negócio da mancarra e havia nas traseiras das suas lojas armazéns para depósito. Julgo que as nossas 'casernas' no Quartel de Baixo, em Nova Lamego, e em Paunca teriam sido grandes armazéns centrais de amendoim.
A Casa Gouveia (CUF) era a grande negociadora do amendoim da Guiné, que comprava aos vários comerciantes, que estes tinham comprado aos vários agricultores/produtores.
O 'manga de problema' acontecia, quando começavam as colheitas os agricultores depressa vendiam aos comerciantes por vários/baixos preços e só no fim, já com os armazéns cheios, é que surgia a fixação final do preço negociado pela Casa Gouveia com os comerciantes.
E partir daqui é que surgia o 'problema' com o preço a pagar pelas sementes das novas campanhas.
'Mancarra sempre tem problema, nosso homem grande sempre forido', diziam eles.

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Caro Rosinha,

Não tenho certeza absoluta, mas acho que seriam Papéis de Biombo, pois é o Chão deles e seria estranho que fossem buscar trabalhadores balantas de uma outra região para a valorização das terras de produção de arroz em beneficio das populações locais.

Amigo Valdemar,

A produção do amendoim na Guiné, um produto de renda introduzido pela administração colonial com o objectivo de garantir a obtenção de dinheiro vivo e sobretudo para o pagamento de impostos de capitação, era mesmo um problema, porque antes da sua comercialização junto dos intermediarios, o pobre do camponês já tinha consumido mais do que metade por via de avanços em forma de géneros alimentícios, utensílios agrícolas e sementes do amendoim entre outras necessidades, de modos que os camponeses estavam sempre aflitos, necessitados e dependentes deste ciclo vicioso onde sempre eram os grandes perdedores. Desta forma, os jovens que conseguiam escapar ao rodopio do sistema, sentiam-se muito aliviados.

Com um abraço amigo

Cherno AB