HM 241 de Bissau
1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):
28 - A EVACUAÇÃO
A situação vivida em Canquelifá era prenúncio de doenças e tocou-me a mim mais uma dose de paludismo e, na recuperação, uma apendicite aguda com peritonite brava que me ia deixando lá ficar os ossos.
Após uma noite de vomitório constante o furriel enfermeiro, o nosso amigo Mendes, pelas seis da manhã do dia 20 de Abril de 1974, pediu a minha evacuação para o Hospital Militar de Bissau (HMB). O heli chegou pelas doze horas tendo saído quase de imediato em direção a Nova Lamego (Gabu) onde fui visto pelo médico que não concordou com o diagnóstico. Após uma longa espera pois um paraquedista tinha aproveitado para dar um salto, lá me levaram numa Berliet para a pista e, para esperar à sombra, puseram-me em cima da maca debaixo da traseira do veículo. Quando o heli baixou apanhei tanta poeira e terra que, semanas depois, hospitalizado, ainda possuía vestígios da poeirada.
Mas a coisa não ficou por aí, ainda piorou, pois o heli foi a Bambadinca buscar correio e a tripulação aproveitou para se refrescar, enquanto eu, ardendo em febre, ia chupando água com compressas molhadas.
Cheguei a Bissalanca já era noite e fui de ambulância para o HMB. Como era hora de jantar o atendimento demorou algum tempo. Por fim lá fui operado mas a recuperação correu mal.
HMB: lendo o correio
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29 - A VIDA NO HOSPITAL MILITAR DE BISSAU
A vida no Hospital Militar de Bissau [, HM 241,] era, em muitos casos, perfeitamente surrealista para quem estivesse atento.
Entrei no HMB a 20 de abril e, ainda nos cuidados intensivos, onde não me apercebia do decorrer do tempo, tomei conhecimento do 25 de abril que, a princípio, ninguém ali sabia o que era.
Já em recuperação, fui para uma enfermaria com outros camaradas onde, mesmo em mau estado, passei momentos inesquecíveis, tivesse eu arte para os contar. Mas, mesmo assim, atrevo-me a dar um lamiré.
O comer era basicamente arroz (bianda) pelo que me socorria de sandes, leite e sumos que o Martinho, o auxiliar da enfermaria, me ia comprar à cantina. Frequentemente o almoço não me chegava pelo que interpelava o Martinho sobre o assunto o qual me dava uma qualquer desculpa esfarrapada do género: como eu estava acamado e o almoço era servido na varanda da enfermaria decerto alguém o tinha comido. Até que, um dia, lá me consegui levantar e, de facto, o Martinho, que era desarranchado, batia-se prazenteiramente com o meu almoço.
Havia uma auxiliar, bajuda, muito bonita e elegante, trajando minissaia, que nos fazia a cama. Era certo e sabido que cada cama que a Carol fazia a visão que transmitia revigorava os doentes, principalmente os vizinhos do lado, um dos quais se debruçou tanto que caiu no chão da enfermaria.
O Lemos, furriel de outra Companhia do meu Batalhão, baixou ao HMB para a ala psiquiátrica. Nunca percebi se foi por doença ou estratagema mas de facto cada vez que me visitava parecia-me mais apanhado. Entretanto, teve alta, e, no mesmo dia, na Praça do Império, houve zaragata que meteu arma branca e o Lemos que nada tinha a ver com o assunto foi esfaqueado tendo de novo baixado ao HMB, agora para outro serviço. Passados dias foi visitar-me e transmitiu-me a sua grande preocupação com a cicatrização da costura pelo que perguntava frequentemente a minha opinião sobre o assunto, além de passar a vida ao espelho para aquilatar da evolução daquela marca corporal.
Um oficial superior foi operado às amígdalas no HMB. Porém, o quarto reservado para as maiores patentes estava ocupado por um militar de patente mais alta pelo que lhe terá sido proposto passar um curto período pós-operatório num quarto de oficiais de menor patente. Creio que recusou e foi recuperar para onde vivia. De noite, a situação ter-se-á complicado e, sem assistência adequada, terá falecido. Conto como me foi transmitido pois, embora estivesse internado no mesmo hospital e tivesse conhecimento geral da situação, não testemunhei os pormenores.
Havia um soldado que estava internado por ter apanhado com estilhaços de granada que, embora pequenos, eram muitos e lhe apanhavam grande parte do corpo, incluindo a cara. Porém, o seu estado não exigia que lhe fossem ministradas injecções, que normalmente eram fortíssimas e os efeitos da toma algo dolorosos o que fazia com que o pessoal procurasse fugir na hora da injecção. Ora, o rapaz acordava cedo e deambulava pelas instalações acompanhando o enfermeiro para observar o seu desempenho na aplicação dos medicamentos. Mas, não só fazia isso como tirava prazer em controlar os camaradas que procuravam fugir ao acto denunciando ao enfermeiro a sua localização.
As Senhoras do Movimento Nacional Feminino visitavam semanalmente os doentes hospitalizados no HMB. Levavam consigo sempre uma palavra amiga e cigarros ou leite, ofertando a cada um de nós uma coisa ou outra. A maioria dos doentes metropolitanos optava pelos cigarros (as enfermarias eram também salas de fumo), em contraste com alguns doentes africanos que agarravam ambas as coisas não percebendo, ou fingindo não perceber, que tinham que optar por uma e, perante isto, as Senhoras, lá transigiam desfalcando as suas reservas.
As visitas dos familiares aos doentes incidiam naturalmente sobre os de origem africana. Em muitos casos, o doente dormitava durante a visita e a família alimentava-se com o que o militar tinha disponível, bebiam o leite ou o sumo, comiam as bolachas, fumavam os cigarros e, a finalizar, ainda levavam algum dinheiro que este tivesse na gaveta. Uma hora depois iam-se embora sem que, nalguns casos, tivessem sequer falado com o doente.
Pouco passava de meados de maio de 1974 entrou no HMB um soldado do grupo “Os Vingadores”, liderado por Marcelino da Mata, hospitalizado na sequência de um acidente em Mansoa quando uma granada caíu de uma bolsa de transporte e explodiu. Esteve alguns dias internado e, diariamente, passava pela enfermaria um 1.º sargento metropolitano que, creio, dava apoio logístico ao grupo, abastecendo o doente de produtos alimentares e de higiene de acordo com os pedidos que este fazia.
Durante a estadia no HMB tive oportunidade de assistir a situações curiosas mas, para mim, o cúmulo do non-sense era uma espécie de praxe que alguns militares amputados faziam a doentes periquitos no Hospital.
Se podiam andar, todos os doentes gostavam de visitar as enfermarias procurando alguém conhecido. Nos locais onde havia pessoal amputado acontecia, por vezes, o doente nestas condições solicitar aos camaradas que por ali apareciam o favor de lhe coçar um dos membros inferiores, naturalmente o que tinha perdido, embaraçando deveras a vítima da brincadeira.
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Nota do editor
Último poste da série de 18 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21916: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (9): "O relógio do Matos", "Há homens que metem medo" e "Canquelifá"
4 comentários:
José João, nã0 me leves a mal, mas hoje já fico bem disposto para o resto do dia: acabei de ler as tuas duas histórias, a nº 28 e a nº 29, a evacuação e a vida no HM 241, respetivamente...
Devia ter pudor, compaixão, condoer-me, revoltar-me, ser solidário com o teu sofrimento (, mesmo passado há quase meio século!...), mas não, deu-me para rir a bandeiras despregadas!...
O que tu escreveste é de antologia, de puro humor negro!...
Tens direito a chapa 10, como me pede o meu mecânico da Santogal, quando o carro vai à revisão, vem nos trinques, limpo, lavado, polido, a fucnionar, e eu pago uma nota preta e ainda por cima tenho que dar a nota máxima ao serviço da oficina!... Qualquer dia os cangalheiros também não nos enterram sem a gente primeiro mostrar "plena satisfação" pelo serviço fúnebre!...
José João, ganhei o dia!... Depois do almoço, vou reler a tua prosa, como digestivo!
Quando a gente vê os portugueses (e o resto do mundo) confinados, crispados, amargurados, stressados, zangados uns com os outros (, e alguns mesmo doentes, desesperados, e o caso não é para menos, e quantos dos nossos amigos e conhecidos já não se passaram para o outro lado ?!)..., é bom saber soltar uma gargalhada por mor da nossa saúde mental...
Na era pré-covid, há coisa de ano e picos, a minha filha deixou-nos um "post-it" na porta do frigorífico com a seguinte mensagem epicurista: "Carpe diem!... Desfrutem da vida... Tudo é impermanente e passageiro!"...
Ainda lá está!... Meteu-se a Covid e a ela ainda não voltou cá à Lourinhã... Cada um confinado para seu lado... E eu tenho tentado seguir o conselho, mesmo às vezes sorrindo com meia cara...
Ó Domingos, cuidado com o gamanço dos direitos de autor. Essas davam uns apanhados para rir agarrado à barriga.
Quando estive no HMB (05/1970) fiquei num quarto, quase por cima da porta principal, com mais três doentes. Além das visitas das senhoras do MNF, como referes, também aparecia quase todos os dias o Gen. Spínola, talvez por um dos companheiros ser um oficial (superior?) que tinha sofrido ferimentos duma granada que rebentou perto e ficou com a cara cheia de estilhaços.
O homem era muito magro e o Spínola cumprimentava-o com um: isso vai melhorar, dos fracos não reza a história. Também nos dirigia umas palavras e saía, e o tal oficial passado uns segundo dizia: obrigadinho!
Isto foi testemunhado pelo oficial médico assistente, não me recordo do nome, que tinha tido um acidente e andava com uma perna em gesso.
Por acaso não me lembro de ter sido mal tratado.
Abracelo
Valdemar Queiroz
José João Braga Domingos (by email)
23 fev 2021 21:27
Obrigado.
Ainda bem que gostaste. Talvez faça um esforço para me lembrar de mais uma ou outra história.
Um abraço para ti e outro para o José Ferreira
José João Domingos
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