Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I.
Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp.
1. Faz hoje anos, porém está doente (*). Continua a ser uma das estrelas da nossa Tabanca Grande. Autor da série "Estórias Cabralianas" (, de que publicou em 2020, em livro, com o mesmo título, o 1º volume), aceitou incarnar a figura impagável do "alfero Cabral".
Não esconde que tem um "grãozinho de loucura", coisa que faz parte dos genes dos ilustres Cabrais, mas sempre modesto, define-se como simples "escrivinhador". Pessoalmente, considero-o como um dos melhores escritores do "teatro do absurdo da guerra" que nos calhou em sorte. Ninguém poderá falar do nosso quotidiano, nos quartéis do mato, na Guiné, de 1961 a 1974, sem evocar a figura do "alfero Cabral" (**)
Mestre do microconto, da "short story", senhor de uma ironia fina, é responsável por alguns dos melhores postes que aqui fomos publicando, entre 2006 e 2016. É pena, porém, que os "mais novos", os "periquitos" da Tabanca Grande, não o conheçam. De há meia dúzia de anos a esta parte, foram rareando as "estórias cabralianas", série que chegou quase à centenas de postes.
Fazendo votos para que o "alfero Cabral" ainda tenha forças, saúde, coragem, motivação e o tal "grãozinho de loucura" que dá pica à vida, para publicar o seu prometido 2º volume das "estórias cabralianas" (, infelizmente o seu editor também adoeceu, entretanto), republicamos hoje, em dia de festa, um das "pérolas literárias" com que em tempos nos brindou (e que está no seu livro, é a estória nº 17) (**). Mudámos-lhe, porém, o título, liberdade que ele sempre permitiu ao editor do blogue, seu contemporâneo no CTIG e no setor, camarada, amigo e admirador. (***)
2. Estórias cabralianas > "Alfero Cabral", oficial e cavalheiro... ou o último dos românticos do império
por Jorge Cabral
Estava calor e todo o quartel dormia a sesta. Em cuecas, o Alfero urinava contra a parede (bem não urinava, mijava, pois na Tropa, ninguém urina, mija). Eis que um jipe se acerca. Nele, três alferes de Bambadinca, acompanhados de duas raparigas.
Ainda a sacudir “o corpo do delito”, disfarça, cora, mas que vergonha (!). Claro, ninguém lhe aperta a mão. Elas são a filha do Senhor Brandão [, da ponta Brandão], e uma amiga de Bissau, cabo-verdiana. Vêm visitar Fá. Chama o fiel Branquinho. Que os leve a todos para o Bar, enquanto ele se veste e se penteia. Regressa impecável. À paisana, de camisinha branca, calças azul-bebé.
Há muito pouco a mostrar. Fá já fora sede de Batalhões e Companhias [, sede até 1965 do sector L1, sucedendo-lhe Bambadinca ], mas agora só o seu Pelotão o ocupa e as redondezas dos principais edifícios encontram-se minadas.
Dão uma volta e, ao passar por uma ampla vala, que separa o Quartel de cima, do Quartel de baixo, as raparigas reparam que, naquela vala inundada, cresceram formosos nenúfares.
− Tão bonitos ! |− exclamam.
Logo o Alfero mergulha. Porém a vala é funda. Perde o pé, escorrega, cai, estrebucha, mas sem nunca largar as aquáticas flores. Valeu-lhe o Preto Turbado, gigante soldado Bijagó, que o consegue agarrar pelo colarinho e o retira salvo da água pantanosa. Batem palmas as Jovens.
Recomposto, encharcado e cheio de lama, o Alfero deposita-lhes no regaço, qual Magriço de outrora, o troféu, pois… os nenúfares.
Beijam-no, sem receio de se sujarem.
− Que romântico! − dizem.
Olhem se fossem rosas, pensa o Alfero. O pior foi o início da visita. Que se lixe, conclui, afinal os românticos também mijam…
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
Logo o Alfero mergulha. Porém a vala é funda. Perde o pé, escorrega, cai, estrebucha, mas sem nunca largar as aquáticas flores. Valeu-lhe o Preto Turbado, gigante soldado Bijagó, que o consegue agarrar pelo colarinho e o retira salvo da água pantanosa. Batem palmas as Jovens.
Recomposto, encharcado e cheio de lama, o Alfero deposita-lhes no regaço, qual Magriço de outrora, o troféu, pois… os nenúfares.
Beijam-no, sem receio de se sujarem.
− Que romântico! − dizem.
Olhem se fossem rosas, pensa o Alfero. O pior foi o início da visita. Que se lixe, conclui, afinal os românticos também mijam…
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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(*) Vd. poste de 6 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22692: Banco do Afeto contra a Solidão (26): "Por favor telefonem-me, mandem-me um email, visitem-me!", um apelo dramátrico do Jorge Cabral, sozinho em casa, no Monte Estoril, em lutar contra o raio da doença
(**) Vd. poste de31 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21498: Notas de leitura (1318): "Estórias cabralianas", 1º volume, Lisboa, Leituria, 2020, 144 pp,, de Jorge Cabral... Prefácio de Luís Graça: "o charne discreto da humanidade ou a arma da irrisão contra o absurdo da guerra"
(***) Último poste da série > 29 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22232: Antologia (78): Estereótipos coloniais: os fulas, "maus criadores de gado e piores agricultores"... (excerto de Geografia Económica de Portugal: Guiné / coordenado por Dragomir Knapic. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1966, 44 pp)
(***) Último poste da série > 29 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22232: Antologia (78): Estereótipos coloniais: os fulas, "maus criadores de gado e piores agricultores"... (excerto de Geografia Económica de Portugal: Guiné / coordenado por Dragomir Knapic. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1966, 44 pp)
3 comentários:
À volta de Bambadinca havia uma série de tabancas (Nhabijões, Mero e Santa Helena, Fá Balanta, e outras), consideradas, desde o início da guerra, como estando "sob duplo controlo", ou seja, com população (maioritariamente balanta) que tinha parentes no "mato" (zona controlada pelo PAIGC)...
Em Finete, Missirá e Fá Mandinga havia destacamentos nossos. Entre Bambadinca e Fá Mandinga ficava a Ponta Brandão. Tinha um ar decadente. O velho Brandão tinha já uma provecta idade. Havia aqui uma famosa destilaria, de cana de acúcar... Havia uma outra, em Bambadinca (diz a história do BART 2917, mas eu nunca soube onde ficava exatamente).
Os balantas adoravam aguardente de cana. Era natural que a guerrilha do PAIGC (ou os seus elementos locais, em Nhabijões, Mero e Santa Helena) viessem aqui, a Ponta Brandão, abastecer-se. O Jorge Cabral conhecia, melhor do que eu, Ponta Brandão (a escassos 5 quilómetros de Bambadinca, à esquerda da estrada para Bafatá, e a meio caminho de Fá Mandinga; ia-se lá por causa da aguardente de cana e de uma certa "bajuda", filha ou neta do Brandão que trabalharia em Bissau).
Tenho uma pena danada de ter convivido mais com esta gente,que nos olhava de soslaio...
A outra destilaria, em Bambadinca. deveria ser do Inácio Semedo, amigo e compadre do Amílcar Cabral. Foi molestado pela PIDE.
Camarada Jorge Cabral
Eu sou um novo tabanqueiro,assentei-me no poilão grande com o nº849.
Vi há pouco o teu texto extraido de "estórias cabralianas".Gostei do que li.
No entanto gostava de dizer que a doença ataca a quase todos, há cinco anos atrás fui operado a cancro, hoje ainda cá estou para poder dizer: -- Jesus não quis ainda que eu fosse ter com ele.
Se desejares dado que moro em Forte da Casa e frequentemente me desloco para essas bandas em trabalho, poderíamos combinar para tomar um café.
Um abraço, desejo as melhoras.
José Emídio Marques
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