segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22894: Notas de leitura (1407A): O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,

O agora jubilado professor do ISCTE e durante muito tempo o responsável pelo Centro de Estudos Africanos desta instância universitária tem vasto currículo de investigação guineense, são, por exemplo, incontornáveis, os seus artigos de caráter enciclopédico sobre a Guiné, escrito com José da Silva Horta, os seus estudos sobre os judeus na Senegâmbia. 

Neste trabalho desvela-se uma realidade com base na evidência científica e que tem a ver com conceções de aproveitamento de alianças, de negociação de fidelidades e da escolha entre um grande território com um grande chefe ou régulos implicados na gestão da administração colonial, mesmo com um campo de liberdade específica. Prevaleceu a segunda conceção, foi essa que observámos nas nossas comissões sem perceber muito bem o que estava por detrás delas. Eduardo Costa dias dá-nos uma interessantíssima chave explicativa, a propósito do Gabú entre 1900 e 1930.

Um abraço do
Mário



O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias

Beja Santos

O Professor Eduardo Costa Dias, com larga investigação referente à colónia da Guiné, publicou na revista Africana Studia, n.º 9 de 2006, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, um trabalho intitulado “Regulado do Gabú (1900-1930): A difícil compatibilização entre legitimidades tradicionais e a reorganização do espaço colonial”

Uma visão singular que apraz aqui registar, indo diretamente às questões nodais que a investigação contempla.

Primeiro, os problemas da dominação territorial colonial como se puseram nas primeiras décadas do século XX, um processo diversificado que contou com operações militares contra potentados recalcitrantes, cartografia rigorosa, sujeição dos africanos a uma lógica económica e política colonial, que obrigou a novas regulamentações e alargamento da malha político-administrativa, concomitante com o desenvolvimento das comunicações e de outras infraestruturas. 

A Guiné, mesmo a uma escala relativamente modesta, contou com uma rede de estradas ligando o litoral ao interior, generalizou-se o telégrafo e depois o telefone, substituíram-se os antigos postos, presídios e fortificações por pontos locais da quadrícula político-administrativa. 

Enfim, uma dominação territorial que se fez com desacertos, cumplicidades e submissão de poderes locais, havendo resistência passiva, desobediência por parte das populações e dos poderes ditos tradicionais, que se manifestavam sobretudo na recusa do pagamento de impostos, na contestação dos chefes reconhecidos pelas autoridades coloniais, mas muito mais.

Segundo, o estudo centra-se nos anos 1900-1930 na região do Gabú, a figura principal do estudo é o régulo do Gabú entre 1906 e 1927, Monjour Meta Bâlo, já vimos anteriormente referências a este régulo no livro “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço, filho do Governador Jorge Frederico Vellez Caroço. Monjour tinha legitimidade tradicional e era benquisto pelas autoridades portuguesas, até ao dado momento em que se coligaram contestações locais e coloniais.

Terceiro, o investigador dá-nos um retrato da Guiné Portuguesa nesse período: décadas de afirmação da dominação territorial, expedições militares punitivas em territórios recalcitrantes: Papéis da ilha de Bissau, Balantas de Mansoa, regiões dos Bijagós, os Mandingas do Oio, entre outros. Tudo acompanhado de questiúnculas e queixas da administração e dos militares: o antigo herói Abdul Indjai fez-se cair em desgraça; Teixeira Pinto envolver-se-á em confrontos com a Liga Guineense; Vellez Caroço teve vários conflitos com o secretário do Governo, Sebastião José Barbosa, por exemplo. 

A despeito das frequentes mudanças de governadores e das orientações da administração colonial, ir-se-á afirmando uma linha de apoio à administração portuguesa, terão a etnia Fula à cabeça.

Ainda antes do Estado Novo, foi promulgada a Carta Orgânica da Guiné, que dividiu a população residente em civilizada e indígena; em 1919, o território da Guiné Portuguesa foi dividido em dois concelhos e treze circunscrições; substituiu-se o imposto de cabeça por palhota; e manteve-se, mesmo com simulação, a requisição dos indígenas para um sem número de atividades, o trabalho forçado mascarado, e o autor dá vários exemplos com a Casa Gouveia, a Companhia Estrela de Farim e a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné.

Quarto, atenda-se ao conceito de Vellez Caroço para a modernização da colónia, ele era defensor da figura do “chefe de território” em vez do “chefe de raça”, de uma política diferenciada para cada etnia e de aproximação aos chefes muçulmanos em detrimento dos animistas. Nesta ótica, observa o autor, ele foi o pai da estratégia colonial que privilegiará durante décadas a aliança da administração com os chefes Fulas.

É nesse contexto que vamos agora situar o Gabú, povoado maioritariamente por muçulmanos (Fulas e Mandingas). Escreve o autor: 

“A soberania portuguesa no Gabú fez-se quase por delegação de poderes, isto é, controlando meia dúzia de chefes tradicionais e remunerando a sua lealdade com uma quase total liberdade de exercício do poder sobre as populações, recebendo em troca apoio para ações militares no resto da Província”. 

O termo Gabú era automaticamente conotado com a área onde pontificava o régulo Monjour e muito menos como a porção de território administrado pela circunscrição sediada em Bafatá. Lembra igualmente o autor que o regulado do Gabú herdou o nome e parte significativa do território do antigo reino Mandinga “animista”, do Kaabu, que existiu, na região compreendida entre os rios Gâmbia e Corubal. A administração portuguesa marcou presença em meados da década de 1910, apareceu a circunscrição administrada do Gabú com sede em Oco, depois em Gabú Sara (futura vila de Nova Lamego, hoje cidade do Gabú). O Gabú estava pouco integrado no espaço da colónia e não era alvo prioritário para intervenções das tropas portuguesas.

Quinto, e assim se passa para a lógica política de entendimentos preferenciais, escolha de interlocutores e relacionamento com os chefes tradicionais. Os chefes eram classificados em três grupos: o dos leais, o dos interesseiros e o dos rebeldes. 

Vellez Caroço, nos anos 1920, estruturou a política de aproximação aos muçulmanos e teceu os contornos da aliança estratégica do poder colonial com os chefes Fulas. Monjur, o régulo do Gabú, foi um precioso auxiliar da administração colonial, combateu ao lado por portugueses nas guerras de pacificação e durante muito tempo dominou as rivalidades entre etnias. E como diz o autor, acabou destituído quando a administração colonial perdeu o interesse em manter um território tão grande nas mãos de um único homem. Monjour é apanhado neste turbilhão de mudanças. No livro escrito pelo filho de Vellez Caroço é bem claro que ele, tal como o pai, era partidário da política dos grandes regulados e adversário acérrimo da multiplicação de regulados. E no seu livro ele apresenta Monjour como vítima das sucessivas traições da sua gente e de alguns administradores que eram favoráveis à lógica da “independência das raças”.

Sexto, o autor historia a ascensão e queda deste régulo que terá nascido em 1850 e faleceu em 1929 na região do Corubal, a sua ascensão não foi pacífica, a chefia do regulado fora contestada por um irmão e por vários descendentes de régulos anteriores. É no choque destas duas lógicas, do “critério da independência das raças” com pequenos regulados e a dos grandes regulados em que apostou sempre Vellez Caroço que veio a prevalecer, em 1917, uma divisão do Gabu em vários regulados, a situação durou pouco, no ano seguinte o regulado foi unificado e Monjour reinvestido como grande chefe. Mas a sua liderança era ameaçada por novos líderes. E com a retirada de Vellez Caroço para Portugal, acaba por ser destituído com uma pensão de trezentos escudos mensais, em 1927, e deportado com residência fixa para o Corubal, onde morre em 1929.

Sétimo, assim chegamos às conclusões. 

Foram-se impondo duas conceções dominantes: a dominação do território via o controlo de um único interlocutor, e que prevaleceu entre os anos 1900 e 1917; e uma conceção de dominação que privilegiava não só os pequenos regulados em prejuízo dos grandes como igualmente a efetiva circunscrição territorial de cada regulado a uma malha precisa da quadrícula político-administrativa colonial, a partir de 1917 e aplicada sobretudo a partir de 1926.

 Prevaleceu a segunda, os régulos foram funcionalizados, a ter obrigações, a despeito de aplicarem, dentro de moldes aceites pela administração colonial, decisões próprias dentro da área de jurisdição. E esta lógica vai chegar até à emergência do nacionalismo, foi com esta lógica que Amílcar Cabral e o seu PAIGC foram obrigados a lidar.
Tocador de korá no Gabú.
Jorge Frederico Vellez Caroço
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22893: Notas de leitura (1407): Um livro que é "serviço público": "Aldeia Nova de São Bento: Memórias, Estórias e Gentes", José Saúde, Edições Colibri, 2021 (Prefácio de David Monge da Silva)

8 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O prof Eduardo Costa Dias é membro da nossa Tabanca Grande desde 2010. E sempre manifestou um grande carinho por este blogue. Tem cerca de vinte e tal referências.

Apresentei-o nestes termos à Tabana Grande em 18/7/2010, no poste P6758:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/07/guine-6374-p6758-tabanca-grande-231.html

(...) Ando há dois anos a ameaçar o Edu, o meu amigo e colega Eduardo Costa Dias, com a sua entrada, pela porta pequena, na Tabanca Grande.

A verdade é que ele aceitou, há já largos meses, o meu convite expresso para integrar este grupo de amigos e camaradas da Guiné que se reune, há mais de seis anos, sob o generoso e frondoso poilão da Tabanca Grande. (Só não a fez, a formalização do pedido, por falta da foto da praxe, problema que eu acabo de resolver, rapidamente, em véspera de férias, com o recurso à consulta da minha base de dados...).

Ele vai entrar finalmente, e deveria sê-lo pela porta grande... (se a Tabanca Grande a tivesse: ora como é sabido, nós não temos portas nem janelas, isto é, barreiras, físicas, culturais ou simbólicas; ou melhor gostaríamos de não ter...).

O Edu, ou ECD, entra como paisano, não sabendo eu nada da sua vida militar... Só sei que que já foi dezenas e dezenas de vezes à Guiné-Bissau, nestes últimos quinze a vinte anos. E é um dos portugueses mais bem informados e melhor conhecedores da realidade sócio-política deste país lusófono, e em particular da zona leste...

Fez lá o trabalho de campo como investigador no âmbito da sua tese de doutoramento em Antropologia (que defendeu, em provas públicas, em 1996): O sistema agrário dos Mandinga de Contuboel (Guiné-Bissau) : memória, saber, poder e reprodução social.

Aqui fica uma pequena apresentação do novo membro da nossa Tabanca Grande, que passa doravante a ser tratado sem mais salamaleques, como qualquer vulgaríssimo membro do nosso blogue. (...)

Agora que está jubilado, só espero que ele apareçamais vezes por aqui, num ou outro comentário, num ou outro texto antropológico. Afinal, continuamos a ter em comum a mesma paixão pela Guiné e as suas gentes... Desejo ao teu condiscípulo doo ISCTE uma boa continuação pela picada da vida, agor com mais riscos, com mais "minas & armadilhas"...

Um alfabravo fraterno, Edu. Luís Graça

Valdemar Silva disse...

300$00 em 1927 era uma choruda pensão.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

As pressas é o que dá, isto de ter que fazer o blogue a "quatro mãos" (, estou a contar com as "canadianas") dá "gralhada"...

Eu queria dizer:

(...) "Desejo ao MEU condiscípulo do ISCTE uma boa continuação pela picada da vida, AGORA com mais riscos, com mais 'minas & armadilhas' "...


Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, o Eduardo fez a sua tese de doutoramento com trabalho de campo em Contuboel... Pode ser que te interesse dar uma vista de olhos pelo trabalho, já antigo, de 1996, não se sei se está disponível em formato digital no repositório da Universidade de Lisboa... Nunca a li , mas gostava de a ler... Tenho as melhores memórias de Contuboel...

Por outro lado, ele é uma autoridade no que diz respeito ao Gabu...Mas o Gabu também é contigo... O nosso amigo JERO dizia: "Alcobaça é comigo"... Tu também podes dizer: "Gabu é comigo"...

Mantenhas. Luís

Cherno Baldé disse...

Caro Luis Graça,

O Eduardo Costa Dias foi meu Professor não titular de Antropologia e História de África no II Curso de Mestrado no CEA do ISCTE, na altura estaria ele a fazer os seus trabalhos de campo. Não sendo titular nós não dávamos o devido valor as suas aulas ocasionais. Nas raras vezes que falamos, tive muitas dificuldades em compreender e acompanhar a profundidade da sua linguagem de Antropólogo já tarimbado no terreno a dissertar sobre as linhagens mandingas na Senegâmbia, a disseminação das Confrarias religiosas e outros temas africanos que ainda eram novos para mim acabado de regressar da URSS. Todavia, fiquei com a impressão de que conhecia e tinha mais admiração pela gesta mandinga. Defendeu sua tese um ano após o meu regresso a GBissau.

A propósito do Gov. Vellez Caroço que conhecia a realidade africana e a guineense em particular como poucos, apraz-me informar que o actual Embaixador ou o Consul (não sei mt bem), é um Vellez Caroço, certamente um (bis) ou Trineto do antigo Governador da Guiné. Caso para dizer, ficou-lhe no sangue.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Ps: É o Embaixador e o seu nome é José Rui Baptista Borges Vellez Caroço.

Cherno AB

Unknown disse...

A minha tese infelizmente nao está acessível no repositório digital do ISCTE. Na época víviamos ainda .. no tempo do papel - no caso da minha tese cerca de 750 paginas. Para quem tiver curiosidade posso enviar por mail versão em pdf (costa.dias@iscte-iul.pt)

Cherno Baldé disse...

Caro Professor,

Muito agradecia se pudessem enviar-me a vossa tese para o endereço: chernoabalde@gmail.com

Cordialmente,

Cherno Baldé