sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22906: Notas de leitura (1409): Diário da Companhia da Loira & Zorba, por Manuel Neves Fonseca; Projecto Foco, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
É mesmo uma narrativa agropastoril, com o seu quê de fantasiosa, muitas considerações de índole política, começámos num mundo rural das décadas de 1950 a 1960, percorremos vários pontos do Leste da Guiné, pena é ter-se ficado tão pouco a saber sobre a vida em Madina de Boé naqueles 14 meses do João Bigodes e porquê o mistério de tratar a Ponta do Inglês como Mata do Inglês, foi provavelmente artifício literário de que se se socorreu o autor.

Um abraço do
Mário



Diário da Companhia da Loira & Zorba, por Manuel Neves Fonseca

Mário Beja Santos

Manuel Neves Fonseca, foi furriel da CCAÇ 1417 (1965/1967) e tece uma narrativa um tanto fantasiosa de um reencontro de dois antigos combatentes em ambiente agropastoril,  "Diário da Companhia da Loira & Zorba", Projecto Foco, 2020. Tudo começa na Aldeia da Ribeira, afetada pela desertificação, a poucos quilómetros de Espanha, ouve-se o pífaro do João Bigodes, o narrador, de nome Silvestre, mete conversa, o pastor Bigodes declara ter prestado serviço militar na Guiné entre 1965 e 1967, passou 14 meses em Madina de Boé. Reconhece a Companhia a que pertence Silvestre, este estava em Bajocunda. Fazem amizade, conversam muito, Silvestre leva João à Guarda, um médico deteta que ele sofre de stress pós-traumático, deverá tomar medicamentos, ao fim de dois meses sente-se retemperado. Os amigos conversam, Silvestre também fala de si, nasceu no sopé da Serra da Estrela, numa aldeia pobre chamada Monte do Bispo, a que na época tudo faltava, é um puro ambiente rural, a vida social comandada pelo toque do sino, em que o pároco contabilizava rigorosamente todas as presenças na missa dominical; assiste-se à fuga dos jovens e até de homens de meia idade para França. Silvestre descreve o trabalho de um serrador, e depois como se apaixonou pela jovem Clarisse, há entendimento mútuo, a jovem vive numa cidade, Silvestre deixa a aldeia, dizendo que quer ir trabalhar para Castelo Branco e aprender a ler e a escrever, escreve a Clarisse que vive em Lisboa, é chamado para a tropa, procura a morada de Clarisse, é recebido pelo irmão: “Então és o Silvestre, aquele que anda para aqui a escrever cartas doidas? Pois, escreve à vontade que ela não leu, nem nunca vai ler nenhuma, vai para o lixo estão lá todas, e agora desaparece”. E é dentro deste diálogo agropastoril que João fala do local onde nasceu e da família, história bem triste.

Estão agora a bordo do Niassa, descrição da viagem, chegada a Bissau, lembranças de uma cidade que para eles era uma pequena vila da província rural portuguesa. Sobem o Rio Geba numa lancha da Marinha. Em Bambadinca João e Silvestre separam-se, Silvestre segue para Fá Mandiga, João para a zona de Bafatá. Silvestre descreve Fá Mandiga, diz que aqui nasceu a luta armada, teria sido aqui que Amílcar Cabral congeminou o plano de revolta e foi buscar o apoio aos Balantas, destinou-se a esta companhia a intervenção da Mata do Inglês. E vai dar-nos pormenores sobre essa região da Mata do Inglês: extensa zona de arvoredo centenário, coqueiros, imbondeiros, diversos arbustos. A Mata do Inglês começava para lá do quartel de Bambadinca. E dá pormenores da primeira incursão militar da chamada Companhia da Loira, constituída sobretudo por madeirenses. “Foi-nos atribuída a missão de destruir um acampamento da guerrilha no interior da Mata do Inglês, a poucos quilómetros de um lugar chamado Xitole”. “Quando chegávamos a esses acampamentos da guerrilha, não encontrávamos mais do que palhotas limpíssimas, uns bancos de madeira, umas mesas improvisadas com um ou dois livros do ensino básico abertos numa dessas mesas dando-nos a indicação de que ali havia uma escola e que ali se ensinava português. O trabalho da tropa era incendiar as palhotas e deixar a escola intacta”. Descreve um cerco num desses acampamentos, tudo parecia de feição quanto ao fator surpresa, só que apareceu um guerrilheiro e deu o alarme, atacou-se em força, vomitaram-se as balas indiscriminadamente sobre tudo o que mexia. “A violência do ataque enfureceu a guerrilha e dias depois duas minas anticarro apanharam dois veículos de transporte de militares e civis que se deslocavam de Bambadinca ao Xime, três soldados mortos e uma dezena de civis, para além de feridos. Silvestre ficou chocado com o funeral dos soldados mortos, enrolados em lençóis brancos desceram à cova, a identificação foi escrita num papel branco, metido de uma garrafa de cerveja fechada com uma rolha de cortiça”.

Mudamos de lugar, João e Silvestre falam de uma operação em 22 de outubro de 1966, é então que ficamos a saber porque é que a companhia se chama Zorba, havia um soldado que se metia numa canoa, passeava-se no Rio Corubal, ao som desta canção, tinha um pequeno leitor de cassetes, ouvia o Zorba aos berros. “A alcunha da Loira deriva do facto do comandante da Companhia ser visitado de quando em quando por uma bela jovem, alta, cabelos loiros, suficientemente provocadora, pertencia à hierarquia do Movimento Nacional Feminino em Bissau”. Voltando à operação, foram resgatar um grupo de mulheres e crianças que se encontravam junto da fronteira da Guiné-Conacri, e que pretendeu sair da zona de influência da guerrilha. Passam tormentos, mas a operação resultou, mesmo com emboscadas e muitos outros perigos, chovia torrencialmente. Mal chegados ao aquartelamento, verificam que faltavam dois homens, regressa-se ao local da luta, o reencontro com os dois militares perdidos compensou tanto penar.

E os dois amigos em ambiente agropastoril vão agora falar de Madina de Boé e Bajocunda, João recorda a caminhada para Madina, os ferros retorcidos de viaturas destruídas nas bermas, a segurança dada por outros pelotões, a chegada a Madina com uma receção de morteiradas que iriam marcar a vida quotidiana da companhia Zorba. Silvestre aproveita para descrever a instalação em Bajocunda, participaram na remodelação das instalações, desde os abrigos ao arame farpado, havia então uma intensa atividade comercial, elenca os comerciantes, e dentro do diálogo dá conta que o tratamento do stress pós-traumático renasceu o gosto por viver, apaixonou-se pela Maria Florinda, o Silvestre pagou a boda e de imediato voltamos a Madina de Boé, há para ali um comandante de Nova Lamego de quem o Silvestre não tem boa imagem, aquele tenente-coronel deu-se ao desplante de informar o Comando-Chefe em Bissau de que a zona de Madina estava pacificada não era necessário qualquer apoio aéreo, aquele tenente-coronel Falhardo ostentava bravatas e pesporrência, determinou que o abastecimento de Madina de Boé seria patrulhado por uma companhia de 100 militares, chegados há dois meses de Lisboa, enquadrados por 28 militares da Companhia da Loira. Tudo vai correr mal, cinco carros atingidos por roquetadas, os guerrilheiros sentiram-se à vontade para saquear mantimentos, foi então necessário ripostar com uma companhia de paraquedistas. E João explica que foi assim que começou a adoecer, que quando veio para Portugal ainda teve pequenos trabalhos, andou com um carro frigorífico, descobriu a Aldeia da Ribeira, foi aqui que se sentiu feliz na vida de pastor. Silvestre mostra-se muito politizado, entrepelado por João sobre o que andaram a fazer naquela guerra, explica que andámos a defender os interesses da CUF através da Casa Gouveia, fala sobre o comércio na mão dos libaneses e sírios, na administração do território exercida maioritariamente por cabo-verdianos, a instituição militar vivia bem com aquelas guerras, delas tirava partido. E Silvestre volta a falar da sua vida em Bajocunda, onde teve uma paixoneta por Mariana Falé, que se veio a descobrir a ser um quadro do PAIGC, como aliás um dos mais importantes comerciantes da terra. Muitos anos mais tarde, Mariana veio a Portugal estudar Direito do Trabalho e encontrou-se com Silvestre, restavam uma boa amizade. E o livro termina em ambiente agropastoril, João ainda não está em condições de contar tudo quanto viveu, ainda há muitos acontecimentos encravados na sua mente, aguarda a libertação dessa dor, diz ao amigo que as explicações que lhe deu ajudaram-no a sair da escuridão onde se encontrava, só que os seus sentimentos continuam obstruídos, qualquer dia voltarão a conversar. E ponto final.


Ponta do Inglês, era o que restava em 2010 da casa de Inglês Lopes, encontrei muitas árvores com marcas de balas, o que mais me empolgou foi a beleza extasiante da Foz do Corubal
Artilharia de Bajocunda. Com devida vénia ao autor da foto
Ruínas de uma antiga caserna de praças, Xime, imagem do nosso blog
A retirada de Madina do Boé. Imagem do nosso camarada Manuel Caldeira Coelho (ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1589/BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68), com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22896: Notas de leitura (1408): "Aldeia Nova de São Bento: Estórias, Memórias e Gentes", de José Saúde: nota sobre o autor, introdução e sinopse

2 comentários:

Anónimo disse...


Formulário de Contacto do Blogger
sexta, 14/01/20222, 19:08

Caros amigos, à atenção do camarada Mário Beja Santos, sobre o poste 22906 de hoje, vê-se que aquela narrativa é mesmo ficção.

Depois, não há blogue António (antoniogoncalves20.wixsite)... A foto da transferência para Madina é de minha autoria, e a CC1417 não
esteve em Madina, a CC1416, sim.

abraço

Cumprimentos,
Manuel Caldeira Coelho | manuelccoelho@gmail.com

Anónimo disse...

Formulário de Contacto do Blogger
sexta, 14/01/20222, 19:08

Caros amigos, à atenção do camarada Mário Beja Santos, sobre o poste 22906 de hoje, vê-se que aquela narrativa é mesmo ficção.

Depois, não há blogue António (https://antoniogoncalves20.wixsite.com/veteranos-ultramar/blog).

A foto da transferência para Madina é de minha autoria, e a CC1417 não esteve em Madina, a CC1416, sim.

abraço

Cumprimentos,
Manuel Caldeira Coelho | manuelccoelho@gmail.com