quinta-feira, 30 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23399: Blogpoesia (770): "Já Poeta não sou", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887

© ADÃO CRUZ


Em mensagem do dia 28 de Junho de 2022, o nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) enviou-nos este seu pema:


JÁ POETA NÃO SOU

Já fui poeta da luz quando a palavra alumiava o infinito e o sol nascia dentro de mim.
Quando me vesti de sol e me despi de luar e estreei o mundo no abraço das árvores e no beijo dos rios.
Quando a vida alumiava o infinito e eu nasci na erva e dormi no feno e acordei com melros e rouxinóis e saltitei com os pardais.
Quando meus olhos dormidos casavam a noite e o dia no mesmo silêncio de sonho-menino.

A vida viveu em mim crescendo todos os tamanhos e medindo todos os céus.
Um dia abri as janelas que me disseram haver dentro dos homens e só me apareceram muralhas.
Nada de crianças.
Os homens comeram as crianças os homens comeram-se crianças.
Os homens pariram-se adultos.
Também eu fui criança e matei em mim a criança que procuro.

Já não sou poeta não sou luz da serra nem sombra da noite no alvor da madrugada não sou coisa nem nada.
Não sou murmúrio de rio nem cigarro viciado nem ponta de cio nem lua patética crescendo e fugindo do tempo que passa.
Não sou quebra-luz nem gavinha entrelaçada num abraço de frio.
Não sou resina nem merda nem urina nem sangue nem seiva.
Já não sou quem era não sinto as noites de prata nem mexe comigo a ventania que varre as faldas da serra.
Não me doem as videiras espetadas no céu nem os castelos de fantasia caídos por terra.
Cada erva cada semente é resto de uma canção que já não sei cantar.

Sete raios de sol queimaram o sonho que sete chuvas de esperma fecundaram.
Morreram Afrodites e leões de pelo fulvo quando se inventou a alma e eu não sou mais que rescaldo.
Fugiu do peito o coração foi-se embora o luar e o rio que eu era nem sequer chegou ao mar.

Resta-me a tarde que declina como o lento caminhar de uma nuvem para o fundo escuro da noite.
A tarde declina para onde não há outra manhã de corpos apertados e corações bem perto.
Resta-me a saudade da luz viva de um sonho perdido num campo de violetas.

Já não sou poeta nem nada nem credo nem sonho nem dilema nem a magra esperança de uma luz que faça nascer um verso para acabar o poema.
Sou pirilampo das sombras voando pelos regatos secos não sei se vou longe se vou perto se ao cimo se ao fundo não sei se giro por dentro ou por fora do mundo.


adão cruz
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23392: Blogpoesia (769): Nomes atribuídos às Missões e Operações no TO da Guiné, por Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845

1 comentário:

antonio graça de abreu disse...

Oh, meu caro, tu és tudo o que dizes que não és, tu és tudo o que dizes que foste, és e serás.
Á luz de pirilampos ou do foco incandescente, intermitente, ou meio apagado, tépido, pelo ainda perpassar da vida. Vale o bater do coração.

Abraço,

António Graça de Abreu