quarta-feira, 6 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23413: Historiografia da presença portuguesa em África (324): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Estamos sempre a aprender, veja-se este relatório de 1914 do Administrador da Circunscrição de Geba, um território com as dimensões aproximadas de um terço da Guiné atual. Fazia parte das obrigações dos administradores enviarem relatórios ao Governador em Bolama, este por sua vez coligia todas as informações recebidas e enviava um relatório ao Ministro da Marinha e do Ultramar. Vê-se com alguma perplexidade como é que o administrador dá ampla publicidade através de uma edição da sua iniciativa, ou recebera autorização superior ou reformara-se. É patente o orgulho pela obra feita, tece críticas demolidoras não só para a administração como para os administrados, não deixa de falar na indolência do indígena e em simultâneo faz propostas concretas para o desenvolvimento agrícola, para a criação de ensino técnico-profissional, para grandes mudanças de tributação e sobretudo faz um apelo a uma organização efetiva da administração colonial. Leitura indispensável para entender a presença portuguesa numa região onde não havia tradição da nossa colonização, e onde o poder colonial contava inegavelmente com o suporte das etnias islamizadas.

Um abraço do
Mário



A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (1)

Mário Beja Santos

Com impressão na tipografia Progresso, Porto, 1916, o Administrador da Circunscrição de Geba fazia o seu relatório, seguramente encaminhado para Bolama, terá recebido autorização para edição própria. É um documento de grande importância, como o leitor ajuizará. Permite, em primeiro lugar, apercebermo-nos como mudam os critérios de organização do território, e neste caso é surpreendente a circunscrição civil de Geba, tinha uma área aproximada de 13 mil quilómetros quadrados, cerca de um terço do território da colónia, limitada a Norte e a Oeste pela linha de fronteira do marco 58º ao 95º, pelos limites Sul e Leste das regiões de Pateá, Colá e Oio, e limite a Oeste a região do Cuor; ao Sul e Leste o rio Corubal desde a sua confluência com o Geba até ao território do Corubal e a linha de separação deste território do de Badora e Cossé e linha de fronteira do marco 24º ao 58º, e o rio que a separa da região Norte do Forreá. Cerca de 19 regulados, desde Cabu até Mansomine. Impossível não ficarmos impressionados com a extensão desta circunscrição. Queixa-se de muita coisa, logo dos vencimentos e dos efetivos, dizendo que o corpo de guardas é insuficiente, nem chega para policiar a povoação de Bafatá, vê-se constrangido a encarregar indígenas para desempenhar serviços inerentes aos guardas, sem remuneração. E dá conta do crescimento de Bafatá, a vila tem conhecido um grande e rápido desenvolvimento, teria uma população superior à de Bissau, não contando com a população flutuante, daí ser imperativo ter um maior número de agentes de segurança.

É verdadeiramente demolidor quando fala da instrução: “Consiste apenas em ensinar os indígenas a ler e escrever, como se estes predicados bastem para fazer deles indivíduos úteis à terra de onde são nativos! Estes indivíduos recebem apenas uma instrução superficial e quando já sabem soletrar e fazer duas letras dão por finda a sua instrução. As escolas primárias do interior são úteis, mas quando nelas se criem conjuntamente escolas de ensino de trabalho manual, como oficinas de carpinteiro, marceneiro, serralheiro, alfaiate, sapateiro, etc.”. Dá-nos conta que há 62 estabelecimentos comerciais, é um número excessivo, apareceram muitos comerciantes sírio-libaneses a partir de 1911, faz deles uma apreciação pejorativa: “Vivem, em geral, miseravelmente, restringindo as suas necessidades ao número possível e juntando umas centenas de escudos lá vão para Beirute! O indígena, que parece destinado a ser explorado, é uma vítima nas mãos destes indivíduos, que sem consciência nem escrúpulos os exploram. Põe acima de tudo as suas ambições, e por isso enganam no peso, na medida, nos preços gerais do mercado, o indígena, e não levam mais longe a ganância dos seus lucros porque se começou a exercer fiscalização rigorosa”.

Muda de tema, direciona-se para a agricultura, dizendo que em geral são os cabo-verdianos os únicos indivíduos que exploram a agricultura na região, o indígena tem repugnância ao trabalho assalariado, e vaticina mesmo: “Poderão vir as maiores e mais poderosas companhias que encontrarão nesta região sempre este grande obstáculo”. Novamente desassombrado a falar das questões da Fazenda: “Por decreto de agosto de 1912 foi criada uma repartição da Fazenda nesta localidade, mas até hoje ainda nenhum empregado da Fazenda para aqui veio destacado”. E mais desassombrado se revela a apreciar o serviço de fiscalização aduaneira: “Em 1909, quando aqui tomei posse, havia apenas em toda a circunscrição um posto fiscal, chamado do Boé, mas verdadeiramente o que havia estava em Pai-Ai, muito aquém do Boé. O aspirante ali destinado fazia o que queria. Apreendia borracha, mercadorias e dinheiro aos indígenas do nosso território, um verdadeiro salteador de estrada”. Deplora os fiscais, verdadeiros ladrões e o corpo de guarda-fiscais, gente viciosa e indisciplinada. Tal como hoje, critica o funcionamento da justiça, houvera um aspirante que praticara mão-baixa, fora o cabo dos trabalhos demiti-lo, o processo arrastava-se há anos, o ladrão bandeara-se com uma bela soma.

Agora o assunto é o imposto de palhota, e ficamos a saber que os indígenas pagavam imposto com muita facilidade e na época em que se lhes determinava. Há razões que parecem bastante plausíveis para que o imposto deva ser individual e não por palhota, descobrira, sobretudo em gente da etnia Mandinga, que para pagar menos imposto chegava a haver palhotas com 23 pessoas, inconcebível. E dá sugestões: “Deveria ser estabelecido uma percentagem X sobre o imposto total recebido pela administração, para ser aplicado o seu produto em melhoramento de obras locais, a exemplo do que se faz em Moçambique e nas vizinhas colónias francesas. Era a forma de poder fomentar mais rapidamente esta região tão rica, valorizando-a ainda mais, construindo estradas que tão necessárias são, pontes, viadutos”.

A edição do relatório faz-se acompanhar de imagens que são uma verdadeira preciosidade, estão focadas no crescimento e desenvolvimento de Bafatá, mas mostram também os empreendimentos em que Vasco Calvet de Magalhães se envolveu, de fontanários a estradas. Não é despiciendo referir que se deve a este administrador de circunscrição a primeira estrada guineense de algum porte, entre Bafatá e Bambadinca, aliás, ele teve a preocupação de mostrar Bambadinca pela importância que tinha na região. Para além de imagens, dá números, sempre com prudência, irá falar do arrolamento com devidas cautelas, desconfia dos números. É um documento de inegável valor histórico, percebe-se que a povoação de Geba já tinha uma importância mitigada, a expansão era de Bafatá para os pontos remotos do Leste.

Há outras duas apreciações sobre este administrador: como as suas responsabilidades vão até ao Oio, colaborará com Teixeira Pinto; e terá um papel determinante na montagem de uma política colonial de fracionamento de poderes, será ele a dividir o imenso regulado onde pontificava o régulo Monjur, um importante colaborador dos portugueses nas guerras de pacificação, um régulo Fula altamente prestigiado que depois de destituído do seu poder viveu os últimos anos em obscuridade e foi alvo de pompas fúnebres emocionantes.

(continua)

Fotografias assinadas por Domingos Alvão, um grande fotógrafo que esteve presente na I Exposição Colonial, que se realizou no Porto em 1934, retirámos estas duas imagens no site Memória de África e do Oriente, seguramente que fizeram parte do repositório da investigadora Jill Rosemary Dias
Quatro imagens extraídas do site Memória de África e do Oriente, muito provavelmente também da coleção de Jill Rosemary Dias
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23396: Historiografia da presença portuguesa em África (323): Dados sobre a Guiné no início da década de 1920, trabalho de um aluno da Escola Colonial (1850-1925) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

O Administrador de Circunscrição enviava relatórios para os Governadores, e os Chefes de Posto enviavam relatórios para os Administradores de Circunscrição.

E isto seria a principal obrigação, relatórios, penso que mensal, naqueles tempos em que não havia estradas, telefones, telex, e em que o envio desses relatórios era através do Cipaio que metia os pés a caminho, fossem 10, 15 ou 50 Klm, e não era preciso grandes pressas, porque o tempo estava por nossa conta.

Ora esses relatórios eram alvo, por parte dos velhos pais dos brancos de 2ª e mulatos, a maioria "estudantes do império", e jogadores da nossa seleção de futebol, e outros que eram bons mestres em colonização para quem chegava, eram esses relatórios alvo de algum gozo, tal como isto que se contava em Angola inteira.

Se aconteceu assim ou não, no antigamente, acredito que sim, como eu conheci Angola ainda em 1957 e como a deixei em 1974, esta história era daqueles antigos:

O Chefe de Posto, que vivia a várias dezenas de quilómetros isolado de qualquer civilização de "branco" meses e meses, resolveu tirar uns meses por conta própria de férias na metrópole.

Apenas precisava de escrever os tais relatórios mensais da rotina, pô-los por ordem cronológica em cima da secretária, e o Cipaio cumprir com a sua rotina, relatório no saco do correio, pés a caminho, um mês atras do outro.

Mas a mentira tem pernas curtas, o cipaio abre a janela de manhã, dentro da rotina, o vento fez voar os relatórios, e começaram a aparecer os relatórios com datas baralhadas.

Isto era uma história universal em Luanda, escrita com O.

Grande Beja Santos.