O Senhor Augusto
José Teixeira
Parte III (Conclusão)
Um dia, em pleno verão, passou pela aldeia um médico novo, sobrinho da patroa. Levava um casaco branco vestido e montava um lindo cavalo branco. Atrás dele, juntou-se logo um magote de rapazes que o seguiram até entrar na porta da quinta. Eu tive mais sorte. Estava no quinteiro quando ele chegou. Escondi-me com medo do cavalo, e vergonha, mas ele sorriu-me. Deu um beijo à tia e perguntou-lhe se podia ir dar uma volta pela quinta. Ela sabia que ele gostava muito de uvas e disse-lhe:
– Vai e leva o rapaz. Ele que te diga onde estão as melhores uvas.
Colocou-me em cima do cavalo, à sua frente, e lá fomos nós, todos lampeiros, para a vinha, onde estava o meu amigo. O senhor Augusto viu-nos ao longe e desceu ao carreiro de cabeça descoberta a saudar os visitantes. Claro que foi ele quem me indicou onde podia ir buscar as uvas para o senhor doutor, enquanto eles ficavam a conversar.
Foram uns dias maravilhosos para mim, os poucos em que o médico por lá ficou. Não havia tarde que não saltasse para a garupa do cavalo, com o senhor doutor atrás, para irmos visitar o guardador da vinha. Também ele se apaixonou pelas histórias. O senhor Augusto contou-lhe os seus padecimentos. O nosso amigo médico quando partiu, prometeu que ia ajudá-lo, e voltaria em breve.
E assim foi. Um domingo de manhã, o doutor chegou à aldeia. Vinha num automóvel, uma arrastadeira da Citröen, preta, como nunca se vira por aquelas bandas, e onde havia apenas um automóvel, o do embaixador da quinta de Padões, que aparecia na aldeia no tempo das colheitas.
Ao fim da tarde partiu de novo. Sentado ao seu lado, seguia o amigo Augusto que tivera o cuidado de tomar banho e vestir roupa lavada, antes de se apresentar, e partiram os dois para a cidade.
Voltou três meses depois, no comboio das cinco. Reconheci-o pelo andar quando ainda vinha longe. Era ele, o meu amigo, mas parecia outro. Abraçou-me ternamente e caminhámos monte acima. Agora, as histórias eram diferentes, eram histórias reais, e deixavam-me espantado. Recordo a da casa amarela com muitas janelas e um pau no telhado que corria pela rua fora cheia de gente…
Estava gordo, e vendia saúde. Afinal, não era assim tão velho com os seus sessenta e cinco anos. O nosso amigo médico internou-o às suas custas no hospital, onde foi tratado como um general. Foi operado à perna e recuperou bem, sobretudo deixou de ter dores ao movimentar-se. Fez outros tratamentos em que teve de tomar muitas mixórdias, e “picas” no rabo. A coluna já não doía. Era um homem novo. Sentia-se cheio de vigor, e com vontade de trabalhar.
No dia seguinte, apresentou-se na quinta e disse à patroa que se sentia como novo e queria voltar de novo para a labuta, no campo. E assim aconteceu, para alegria dos colegas que viam no Augusto um verdadeiro companheiro de trabalho.
Eu completei a escola primária, perdi-me na cidade à procura de um futuro melhor, e o meu amigo Augusto ficou pela aldeia. A luta pela vida afastou-nos. Sei que ainda viveu vários anos. Do que tenho a certeza é que, quando partiu para a sua última morada, teve muitos amigos a acompanhá-lo.
O senhor Augusto era um homem bom, e foi o meu melhor amigo quando eu ainda era uma criança.
Zé Teixeira
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Notas do editor:
Vd. postes de:
7 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23598: Estórias do Zé Teixeira (58): O Senhor Augusto - Parte I (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
e
8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23600: Estórias do Zé Teixeira (59): O Senhor Augusto - Parte II (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)
8 comentários:
Zé, sabemos que nos podem roubar ou tirar-nos tudo, a casa, a terra, o país… Não se escolhe onde se nasce, muito menos pai e mãe... Ninguém pode, todavia, roubar-nos a memória, incluindo as memórias da infância.... E a infância tahto pode ser uma rua, como um bairro, ou uma quinta, um lugarejo, um lugar, uma aldeia, uma vila...
Estás lá todo, nesta tua históra da infância... São memórias impressivas, essas, de paisagens que têm cores, sabores, cheiros, têm rostos, personagens, homens e bichos... Estava aqui a tentar a descobrir o teu chão, através deste texto onde deixa pistas: os carvalhos, os castanheiros, o vinho verde... "o embaixador da quinta de Padões"... Os casebres dos pobres, os "cabaneiros" (diz-se em Candoz, de quem vive em cabana de madeira, sem beira nem eira), os rendeiros, os fidalgos... A "tua quinta" era de alguma "fidalga", viznha da "quinta de Padões", topónimo que não existe... Querias dizer "Quinta do Padrão", Penafiel, Vale do Sousa, hoje turismo rural... Acertei ?
Continua a explorar esse filão da tua infância, sofrida mas também maravilhosa...
Que bela estória do Senhor Augusto, que tinha 65 anos e afinal não era tão velho como parecia.
As histórias da infância, principalmente as passadas na província são cativantes e apetece-nos, sem querer, falar delas. Somos nós a ficar velhos e lembrarmo-nos de quando fomos crianças.
Mas contar/escrever estas estórias não é para todos, o Zé Teixeira é escritor.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Meus queridos camaradas.
Quando eu tinha cinco/seis anos, a minha avó falava-me de um velhinho que tinha andado na primeira guerra mundial, a que dei o nome de Augusto. Tenho uma vaga ideia do velhote; baixo, corcunda, careca, desdentado e sempre agarrado a um pau, pois mancava de uma perna.
A minha avó vivia o drama do seu irmão José que fora no mesmo comboio que o Augusto para a tropa e seguidamente para França. O Augusto voltou com a medalha da invalidez, sem direito a reforma, e o meu tio-avô José nunca mais voltou, nem deu notícias. Um drama para a família de 16 irmãos, em que um tinha desaparecido na guerra.
Quando fui mobilizado para a Guiné, estivemos 15 dias a fazer o IAO numa serra perto de Abrantes e no sábado em que estava de serviço à enfermaria de campo desenfiei-me à procura de uma aldeia onde se pudesse beber uns copos. Como houve vários desenfiados, ao fim de uns minutos já éramos cinco, entre os quais o furriel Ramiro da C.Caç 2382 que levava a viola.(ele pertencia creio que ao grupo Blusões Negros). Fomos dar a uma aldeia onde havia um tasquito. Que bom, e melhor foi, quando debaixo da ramada estavam um grupo de velhotes a comer coiratos e a beber. Dois deles eram combatentes da 1ª guerra mundial. Comemos bem e melhor bebemos à pala e a ouvir as suas histórias de guerra. O Ramiro (falecido num desastre em Bissau, provocado por ele num Unimog na véspera de embarque para férias e casamento) dedilhou uns acordes e logo os combatentes começaram a cantar as velhas canções da sua guerra. Foi fácil para mim, juntar estórias e escrever um conto.
Luís.
Na milha aldeia - Meinedo, Lousada há várias casas senhoriais. A que eu reporto no conto, era a casa do Brunhal onde pontificava a D. Aninas, uma senhora idosa que tinha vários jornaleiros para lhe laborar as terras.
Muito perto desta há a casa dos Estorãos, que a minha avó chamava casa dos Cónegos. Segundo ela, viviam dois padres Cónegos da Sé do Porto e tinham uma criada a D. Miquinhas. Quando morreram deixaram a quinta a criada e logo esta arranjou casamento e ao fim de algum tempo, nada era dela. Esta é famosa porque vem na história do Zé do Telhado. Eu conheci a Miquinhas, porque ela passava pela minha porta para ir à missa, enquanto o marido de passeava num carro desportivo da Wolkswagen. Ela quando matava o porco, chamava-me para me dar um naco de toucinho.
A casa de Padões não existe. Existe sim, casa de Padrões, que não tem nada a ver com a história.
Zé Teixeira
Meinedo é terra de muita História. É a antiga Magnetum, sede de bispado no tempo dos suevos, esses bárbaros vindos da Germânia após a queda do Império Romano do Ocidente, que por cá ficaram, fundaram um reino com capital em Braga e se fundiram com os conquistados para darem origem aos portugueses. Terá sido Meinedo a primeira sede da diocese do Porto, antes de esta ter sido transferida para Portucale (ainda hoje a diocese do Porto se denomina portucalense), mais precisamente para o atual Morro da Sé, que então se chamava Castrum Novum Suevorum.
https://jf-meinedo.pt/pt/noticias/meinedoum-pedaco-da-historia-de-portugal_28
https://www.cm-lousada.pt/cmlousada/uploads/document/file/375/191_original.pdf
Zé Teixeira
A minha curiosidade com a idade do velhinho é que ele não poderia ser muito velhinho.
Teria nascido em 1896, para ter vinte anos em 1916 e ir para a guerra em França.
Mas, isto sou eu que não percebi o enredo, não tenho nada que fazer e nem jeito para escrever uma estória.
Venham mais estórias, versando os tempos em que eramos crianças.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Valdemar.
Nos anos cinquenta com 65 anos já se era velhote, pois poucas pessoas atingiam essa idade, numa terra em que no hospital da Vila. a cinco quilómetros, havia um médico para todo o Concelho que também recebia no consultório particular onde recebia como pagamento, quando não havia dinheiro, galinhas, ovos, para não dizer outras coisas. No hospital, havia umas dedicadas freirinhas que faziam o que sabiam e podiam para aliviar o sofrimento de quem lá caía. Para se chegar à vila havia um carro de bois, quando havia, pois, ambulância nem vê-la, e taxi, que me recorde, havia um, mas para os ricos e quase não saia da garagem.
Ainda mais para uma criança, aliás o tal senhor augusto morreu com um ou dois anos depois. Foi essa imagem que me ficou, pelo que escrever outas coisas era trair a minha memória.
O resto, juntando um pouco das estórias que os Velhinhos (a sério) me contaram 15 anos depois, é imaginário em prosa poética que me deu imenso prazer em escrever.
Fraterno abraço.
Zé Teixeira
Zé Teixeira
Desculpa a minha minhoquice, é o que dá não ter nada que fazer e nem sequer poder sair
de casa por motivos de saúde. Afinal a minha dúvida era em relação à tua idade e por causa da história do Gato das Botas Altas.
Percebo perfeitamente o que era ser velhinho nos anos 50, as pessoas aparentavam ter mais
idade e os sexagenários eram mesmo "muito velhos". Repara em fotografias com os ministros e etc. do tempo do Salazar e vemos que era tudo gente velha, ou aparentava ser pelo que faziam.
Quanto às freiras nos hospitais, eu que o diga. Nasci no Hospital da Misericórdia de Viana do Castelo e vim a este mundo ajudado por uma irmãzinha da caridade.
Vivi até aos dez anos numa linda aldeia da província e vim a escorregar numa tábua até Lisboa a seguir à 4ª. classe, mas lembro-me, perfeitamente, do ambiente provinciano daquele tempo. Costumo dizer 'sou Lisboeta mas nasci no Minho'.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
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