Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 12 de setembro de 2022
Guiné 61/74 - P23610: Notas de leitura (1494): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2020:
Queridos amigos,
Confesso que nada de semelhante me fora dado ler em diarística de guerra. Está longe de ser um jovem convencido, nas suas notas introspetivas não se leva muito a sério, não esconde os confortos da sua condição burguesa, pensa à esquerda mas não se escusa à crítica. Nunca nos dirá as razões de fundo que o trouxeram à guerra onde, sem jactância, não se coíbe de dar o corpo ao manifesto. O acidente brutal afasta-o de tudo. Procurei no Google saber mais sobre a sua carreira de escritor, nada encontrei a não ser a capa deste livro. E se acaso li muitíssimo para alimentar o espírito e manter de pé os sonhos de recomeçar sem trauma após o regresso, não deixo de me surpreender com as maratonas de leitura de alguém que estava no centro do furacão lá para o Planalto dos Macondes, o mínimo que se pode dizer é que é totalmente surpreendente a vida deste oficial miliciano que mantém o orgulho da sua cepa burguesa e da sua liberdade de espírito.
Um abraço do
Mário
Um caso ímpar na literatura diarística da guerra colonial (2)
Mário Beja Santos
É um caso incomum, este "Diário Pueril da Guerra", de Sérgio de Sousa, Editorial Escritor, 1999, não terá a duração de um ano, um acidente brutal põe termo à comissão, quando este alferes está em Sagal, Moçambique. Viajara muito, como ele escreve em 31 de julho de 1970: “Fiz ontem 23 anos. Quando fiz 18, encontrava-me em Londres com o meu pai. Nesse dia vimos os Beatles entrando num cinema onde ia estrear o seu Help!, o que nos valeu um belo aperto na Piccadilly Circus”. Nas notas do seu diário desse dia fala em "Os Thibault", de Roger Martin du Gard, e "Os Subterrâneos da Liberdade", de Jorge Amado. Não esconde que gosta do conforto burguês, se bem que, inequivocamente, pensa à Esquerda. Os meses passam mas a compulsividade a ler e a escrever ainda não diminuíram. Está sempre preocupado com o estado de espírito do pai. E sente-se a envelhecer. Endereça uma carta aberta aos seus amigos, enaltece a felicidade de viver. A 16 de agosto: “Morreu ontem o capitão miliciano do meu batalhão. Gravemente ferido numa emboscada, aguardou pela evacuação cerca de três horas. A companhia que ele comandava já tinha um alferes ferido”. Escreve no dia seguinte: “Saí hoje para uma operação de levantamento de minas antipessoais, implantadas pelas nossas tropas em trilhos usuais do inimigo. A dada altura foi encontrado um guerrilheiro morto. Pisara uma mina que lhe levara um pé. Arrastou-se uns metros e acabou por morrer, esvaído em sangue. Era um moço de uns 17 anos. Tudo isto me foi contado pelo alferes que comandava o segundo grupo de combate; apareceu-me feliz, com uma orelha do morto na mão”.
Vai fazendo amizade com o alferes Sapador, falam imenso sobre Paris, e as crises académicas de 1962/65 e 1968. Já estamos em setembro, fala de emboscadas e nomadizações, lê Roger Vailland, o comando do seu batalhão deixou Sagal e seguiu para Nangade. Continua a escrever uma peça de teatro num só ato. E consta do seu diário, a 7 de setembro: “Chegou hoje um homem dos seus 40 anos, maconde, machambeiro, foi capturado durante a Operação “Nó Górdio”. Está disposto a guiar-me a uma base de guerrilheiros por onde passou há um ano”. E partem para uma operação de três dias, a missão é um golpe de mão a uma base da FRELIMO, nada de especial, destruiu-se um acampamento abandonado. Passará os dias seguintes a ler a fio os quatro romances do Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell. Deixara Lisboa há quatro meses. Regista rebentamentos de minas. O pai e os amigos enviam-lhe enormes quantidades de revistas, está bem informado da vida cultural lisboeta. Continuam as operações em que se destroem aldeamentos inimigos, por vezes há alguma resistência. Tem que ir tratar assuntos da companhia a Mueda, que ele apresenta deste modo: “Mueda, com a sua base aérea, seus vários quartéis, enfermaria, edifícios da administração, do banco, dos correios, dos apartamentos de oficiais e sargentos, dos dois estabelecimentos civis onde há de tudo, da prisão da DGS, seu tráfego de viaturas militares, sua extensão, evoca-me o que eu imagino seriam as bases norte-americanas na Coreia”. Passa por Nampula e não gosta. Num patrulhamento, acerca de dois quilómetros e meio de Sagal, apresentam-se dois guerrilheiros, de mãos no ar: “Um dos guerrilheiros diz ser bacharel em Ciências Económicas e Financeiras e Sociologia pela Universidade de Harvard. Trabalhou como revisor de provas num jornal moçambicano e foi locutor de rádio. Viajou pela Europa Ocidental e pelo Norte de África como membro encarregue das relações externas da FRELIMO. Na Tanzânia pertenceu ao comité central e executivo da FRELIMO. Deixou a FRELIMO porque o impediram de continuar os seus estudos, não lhe interessa lutar. Chama-se Miguel Marupa”.
E depois de um silêncio de mais de dois meses, chegamos a 16 de janeiro, houvera um terrível acidente no dia 8 de novembro:
“Quando ia a sair do aquartelamento para fazer o reabastecimento de lenha, num Unimog, sentado ao lado do condutor, ergui-me no banco para me virar para trás, a fim de verificar como o pessoal ia instalado; no preciso momento em que o condutor guinou a viatura para evitar uma cova, fui projetado para fora do Unimog, rodei sobre mim próprio no ar, toquei o solo, primeiro com todo o meu peso unicamente sobre o pé direito, de lado, e depois fiquei sentado.
Imediatamente agarrei a perna direita; os ossos haviam-se partido e rasgado a carne; estavam de fora, o pé baloiçava preso por uns pedaços de carne. Pensei: ‘Também se vive sem um pé’. Vários soldados pegaram em mim e levaram-me para o posto de socorros. Pensava sobretudo que não podia ir já de férias em dezembro, como planeara. A viagem até Mueda não me pareceu longa. Tiraram-me uma radiografia à perna. A intervenção não durará mais do que quatro horas; uma artéria está perdida; tenta-se suturar a outra, para que não tenham de me cortar o pé; por fim vencem, remendam a perna por fora com uns pontos enormes”.
Passa quase dois meses no hospital de Nampula, até ser operado e evacuado para Lourenço Marques. A operação decorreu bem: “Tinha perdido grande quantidade de substância óssea e os tecidos moles vizinhos também me tinham sido bastante ofendidos. O perónio ficou solto; a tíbia ligada por uma placa presa por quatro parafusos”. São longas páginas desse dia, e observa também: “Os homens choram quando têm dores insuportáveis, quando se vêm mutilados, quando a seu lado um camarada morre e não lhe podem acudir. Os homens choram e se não chorassem não eram homens, eram monstros. Mas há um desespero no homem que chora. O desespero da tentativa vã de evitar o choro. Porque está assente que o homem não deve chorar”.
E recorda uma patrulha de Sagal para o Chindorilho, um estrondo, alguém perdera as duas pernas, está enegrecido pela terra, pronuncia frases patéticas, é amparado, pede-se a evacuação. Veio-se a descobrir que no fornilho se tinha posto uma bomba de avião de 50 kg que não rebentara e que felizmente também não explodiu por simpatia quando a mina levou as pernas daquele homem. O que são os acasos do destino? Os próximos tempos serão dominados por leituras avassaladoras. A 1 de fevereiro, dará os primeiros passos pelo quarto. Manda um artigo para uma revista, a Nova Geração. Interroga-se sobre o seu futuro. A junta médica decidiu evacuá-lo e a 24 de abril de 1971 chega a Lisboa. Décadas depois, com pequenos cortes, diz ele, publica o seu diário, não esconde o desesperado egocentrismo, o não ter sabido enquadrar a guerra e o seu ambiente, publica o seu diário como testemunho da violência que acometia homens jovens do nosso país que se pretendiam conscientes.
E termina: “Para que se não repita”.
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Notas do editor
Poste anterior de 9 de Setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 9 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23603: Notas de leitura (1493): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VIII: A visita de uma delegação do Movimento Nacional Feminino, em fevereiro de 1966: "O senhor capitão hoje está cheio de sorte, há meses que não via uma mulher branca, hoje vê duas"
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8 comentários:
Na primeira parte deste texto o Mário Beja Santos cita o autor, as palavras de André Sousa. "Porque sei o crime que cometo empenhando-me numa guerra colonial." Crime, criminosos, nós todos, numa guerra em que participámos, quase todos contra vontade e todos contra os ventos da História.
Lembram-se, há uns tempos atrás, do Mário Beja Santos citar o escritor Mário Cláudio, que tanto admira, que escrevera a nosso respeito, que na Guiné as nossas tropas esmagavam o crâneo dos meninos negros no capô dos unimogs e retalhavam o ventre das mulheres negras grávidas com facas de mato.
Mário Cláudio foi alferes no serviço de Justiça em Bissau, de onde nunca saiu, não passou além de Bissalanca, e entretinha-se em Bissau a encenar teatro, a Cantora Careca, de Eugene Ionescu. Não cometeu crimes, como a maioria de todos nós.
Abraço,
António Graça de Abreu
Já agora, a propósito de crimes e criminosos, respigo um comentário meu, aqui no blogue, de 2019:
Um capitão Garcês inventado por Mário Cláudio, uma condecoração, e logo Torre e Espada, no peito do inventado capitão Garcês, colocada por Salazar, no Terreiro do Paço,as cabeças dos negros, despojos de guerra, espetadas pelo capitão Garcez em paus na berma das picadas.
Assim se vai dando o contributo (porque são quase só estas as imagens que ficam para as gerações futuras)para sermos considerados uma cambada de criminosos, militares ao serviço do exército colonial fascista.
Este "herói tenebroso", como o denomina Mário Beja Santos, fez, pós 25 de Abril, segundo as palavras de Mário Cláudio "peregrinações a Leste, promovidas pelo partido de esquerda bem comportada de que foi militante." Espantosa figura, o capitão Garcez terá ido, com o Partido Comunista, à União Soviética, talvez deixar no Kremlin uns cravos vermelhos de Abril.
As coisas que eu tenho aprendido neste blogue...
Abraço,
António Graça de Abreu
2 de dezembro de 2019 às 15:59
Porque no primeiro comentário citei palavras de Mário Cláudio, de memória, fui procurar o seu texto, no livro "Astronomia" onde podemos ler:
"Sentado à mesa metálica da sua burocrática função, (no serviço de Justiça em Bissau,) analisa processos e processos que se ocupam de desastres e, serviço, violação de nativas, orgias homossexuais, e actos de insubordinação, e que propõem para as mais altas condecorações da pátria heróis que esmagam a cabeça dos meninos no capot do Unimog ou que espetam a faca de mato na barriga das grávidas."
Mário Cláudio, que jamais saiu de Bissau, diz em entrevista a
Lúcia Crespo no Jornal de Negócios, a 24 de Novembro de 2017.
"Eu vi isso, isso aconteceu, e não era ocasionalmente."
Ah, grande Mário Cláudio, até assistiu, esteve lá e viu. Ah, grande mentiroso! Assim se ganham os Prémios Pessoa, e outros.
Abraço,
António Graça de Abreu
1 - Que relação existe entre o livro analisado neste post e Mário Cláudio? Nenhuma; não foi Mário Cláudio que o escreveu. Porquê, então, insistir em Mário Cláudio?
2 - Não costumo usar o Google nas minhas pesquisas, mas sim o DuckDuckGo, e também não encontrei nada sobre a carreira de Sérgio de Sousa como escritor. Só descobri que Sérgio Brogueira Alves de Sousa foi alferes miliciano da C.Art. 2718, do B.Art. 2918, que esteve em Sagal, no distrito de Cabo Delgado (o chamado pelas NT, com triste ironia, "estado das minas gerais"), no norte de Moçambique, e que foi ferido em 8 de novembro de 1970. Ao todo, a sua companhia sofreu dois mortos e dezoito feridos.
3 - Um dos dois guerrilheiros que se apresentaram a Sérgio de Sousa, Miguel Murupa, era de facto um alto quadro da FRELIMO caído em desgraça. Receando ser morto pelos seus camaradas, apresentou-se às NT e colaborou ativamente com as autoridades portuguesas a partir de então. Fez extensas declarações na série televisiva "A Guerra", de Joaquim Furtado, sobre a guerra em Moçambique, mostrando que sabia do que falava.
4 - A frase seguinte provocou em mim um arrepio na coluna: «E recorda uma patrulha de Sagal para o Chindorilho, um estrondo, alguém perdera as duas pernas, está enegrecido pela terra, pronuncia frases patéticas, é amparado, pede-se a evacuação. Veio-se a descobrir que no fornilho se tinha posto uma bomba de avião de 50 kg que não rebentara e que felizmente também não explodiu por simpatia quando a mina levou as pernas daquele homem.»
Eu mesmo colaborei, dentro das minhas magras possibilidades, no levantamento de um fornilho numa picada do norte de Angola, o qual também incluía uma bomba de avião por rebentar. Nunca contei isto a ninguém, pois não ganhei para o susto. O fornilho era constituído por uma mina antipessoal, uma granada defensiva de mão e a tal bomba de avião, tudo envolvido por um ou dois metros de cordão detonante para garantir que o conjunto rebentaria mesmo, por "simpatia". Foi como escreveu Fernando Assis Pacheco num seu poema: «Vocês não sabem como se perde a tusa.»
Há quem afanosamente procure confronto de ideias.
Como diz e bem o Fernando Ribeiro, não há qualquer relação entre o livro ora comentado e Mário Cláudio.
Também houve quem não fosse além de Bissalanca e/ou do arame farpado dos aquartelamentos do mato.
Para mim todos eles, tal como os que calcorrearam as bolanhas e os matos da Guiné, sofreram na pele e na alma as dores resultantes duma guerra que nunca devia ter começado.
Abraço
Eduardo Estrela
Caro Eduardo
Se fosse "confronto de ideias", seria útil e saudável.
Mas não é disso que se trata.
Infelizmente.
Hélder Sousa
Que chatice, mais valquirices...
E sai outra vez Mário Cláudio, sempre com a mesma música, sem sair do ritornello.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Não entendem, são camaradas duros que só vêem para um lado. A relação entre o André Sousa e o Mário Cláudio
é simples, ambos acusam todos nós, repito, todos nós, de crimes de guerra. A esmagadora maioria de todos nós não cometeu crimes de guerra nenhuns. Só isto. Mas as cabeças duras não entendem. Devem gostar que lhes chamem criminosos de guerra.
Abraço,
António Graça de Abreu
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