Boa tarde
Como sempre, acompanho todos os dias os posts que vão surgindo no blog e este, sobre as relações com o PAIGC pós-25 de Abril suscitou-me várias memórias.(*)
Após o 25 a Abril foi nascendo e ganhando raízes, em Nova Sintra, a sensação de que finalmente íamos ficar livres daquele inferno e rapidamente regressar a nossas casas depois de dois anos (na verdade mais alguns meses) de sacrifício com a morte a rondar diariamente e as provações contínuas a que fomos sendo submetidos que enumerar aqui seria fastidioso para quem por lá andou e tem memória dos anos de guerra.
Em Julho de 1974 (a 17, segundo o nosso amigo Carlos Barros, que também publicou sobre este tema) tinha recebido do capitão a indicação de que nesse dia iriam chegar ao quartel elementos do PAIGC que iriam substituir-nos e que eu iria recebê-los dado que falava crioulo (acrescento que sou natural de Cabo Verde e falava crioulo sim mas de Cabo Verde, diferente do da Guiné). Dias antes, portanto já bem depois do 25 de Abril, uma Berliet da nossa companhia tinha accionado uma mina na estrada de S. João e só por sorte não houve feridos, só um enorme susto para quem estava na viatura que ficou com a parte traseira feita em cacos.
Cumprindo o determinado lá fui até ao 4.º grupo que dava para a bolanha para onde se saía a caminho de Ganfudé Mussá, tabanca já sob duplo controle nosso e do PAIGC e onde capturámos algum armamento e um guerrilheiro. E assim, logo pela manhã começou a surgir um grupo, aparentemente pequeno, de homens armados que precedia um outro já mais numeroso. Desci pelo carreiro ao encontro deles, confesso que com algum receio e ensaiei umas palavras de crioulo ao que me responderam em português.
- Bom dia, sou o major Quinto Cabi e venho em nome do PAIGC para o quartel de Nova Sintra.
Acompanhavam-no um pequeno grupo de homens que, conforme se foram identificando, foram como campainhas que tocavam na minha cabeça. O comandante Tchambú Mané que comandava a artilharia que muitas vezes nos brindou com canhoadas e morteiradas, o Bunca Dabó que liderava os guerrilheiros que nos emboscavam e causaram tantas dores de cabeça, o Armando Napoca que tratava de colocar as malfadadas minas que tanta chatice nos deram, um comissário político cujo nome já não me recordo e vários outros. Caminhei com eles ao longo do arame farpado até à porta de armas por onde entraram e onde os aguardava o capitão e demais pessoal da companhia e a pequena população da minúscula tabanca que existia em Nova Sintra. Não consigo imaginar o que passava pela cabeça daquela gente, tantos anos junto da tropa e de repente viam o inimigo entrar pela porta dentro do quartel onde se abrigavam, embora tivessem conhecidos e família junto do PAIGC a sensação devia ser no mínimo confusa.
Entraram no quartel e foram-se espalhando entre os soldados e tabanca aparentemente convivendo como se tivessem sempre andado por ali…
Ao fim da manhã, vindo de Tite, chegou o comandante do batalhão, Ten. Coronel Almeida Mira, que reuniu na parada com os quadros do PAIGC numa longa conversa que não acompanhei, apenas o Capitão Machado que comandava a companhia estava presente. Seguiu-se um dia mais ou menos estranho de convívio entre a tropa e a guerrilha e dormimos todos pacificamente no quartel. No dia seguinte subimos para as viaturas e deixámos Nova Sintra para sempre a caminho do Cumeré e depois Lisboa. Interrogo-me hoje sobre o que sentia nesse momento. Acho que senti apenas alívio, depois de dois anos que só quem por lá andou é capaz de definir é a única coisa de que me recordo, outros terão outras sensações, eu apenas queria sair dali quanto mais depressa melhor.
Foto 1 – Viatura Berliet após accionar uma mina na estrada para S. João. Vê-se da esquerda para a direita o alferes Pereira, o furriel Elias e o furriel Sousa Foto 2 – A chagada do PAIGC a Nova Sintra. À frente da esquerda para a direita, eu, o major Quinto Cabi, o comissário político e o comandante Tchambú Mané Foto 3 – Reunião na parada do quartel de costas o ten. coronel Almeida Mira, de boné azul o major Quinto Cabi, de lado o mais alto o capitão Machado e de camisa branca o comandante da milícia
Foto 4 – Na parada do quartel o furriel Duarte conversa com o Bunca Dabó
Foto 5 – Dentro de uma Berliet eu a dizer adeus a Nova Sintra
____________Notas do editor
(*) - Vd. poste 5 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização
Último poste da série de 30 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (418): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)
2 comentários:
Obrigado, Ramiro, é mais um precioso depoimento para documentar a proeza da nossa geração que teve que fazer a guerra e a paz... Não podemos ser juízes em causa própria, é verdade, mas também não podemos deixar que sejam os outros a contar, hoje ou amanhã, por nós, a nossa história...
Parabéns pela tua memória, ainda tão "fresca", recordas-te de nomes e pormenores,incríveis, ao fim destes quase 50 anos passados...
Um abraço fraterno, e votos de festas felizes, "quentes e boas"... Luís Graça
PS - Fico contente por saber que és de Cabo Verde, terra que também me é querida... Ando a ler o Germano Almeida, o saboroso cronista da Ilha da Boa Vista e, como sabes, Prémio Camões (2018). Conhecia-o mal, ando a ler as "Estórias Contadas" (1998) e escolhi "A Ilha Fantástica" (1994) para pôr no cabaz de Natal... (No Natal gosto de oferecer livros.)
Resposta tardia... mas como se diz por aí, antes tarde que nunca :)
A memória continua boa, felizmente e mesmo que não continuasse, esquecer Nova Sintra é uma impossibilidade por tudo o que por lá aconteceu e em particular estes dias do "final do império".
Sou realmente de Cabo Verde, mais particularmente de S. Vicente. O meu pai foi durante muitos anos médico do aeroporto do Sal, desde 1948. Curiosamente fez parte da força expedicionária enviada para Cabo Verde durante a II guerra mundial, em 1942 e estave colocado em S. Vicente com idas à ilha do Sal onde estava, creio que, um batalhão. Depois de desmobilizado apareceu-lhe a oportunidade de concorrer como médico da Direcção de Aeronáutica Civil no aeroporto que se ia começar a contruir na ilha do Sal, concorreu e ficou com o lugar. Foi médico ali durante 30 anos e muito respeitado pela população. Hoje o hospital da ilha do Sal tem o nome do meu pai, o que muito honra a minha família.
Um grande alfa bravo
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