quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III

Belmiro Tavares

2024

No dia 12 de maio de 2024, organizámos a nossa confraternização anual para os nossos antigos combatentes da zona norte. Reunimos em Águeda e éramos 35 convivas. Tudo (quase tudo) correu bem! O almoço estava otimo e foi bem servido. Tivemos direito a uma sala só para nós o que é deveras importante; estávamos, absolutamente, à vontade e não incomodámos os vizinhos.

Para esta reunião, tivemos em devida conta, facilitar a vida aos companheiros, principalmente, os que vivem a norte do Douro mas, segundo parece, a benesse não foi bem entendida. No entanto – cereja no topo do bolo – a irmã e o sobrinho do furriel Mesquita (dr.ª Teresa Mesquita e dr. - Francisco Mesquita) bem como três familiares do soldado n.º 2336, Jerónimo Justo (o filho, José Luis, a nora Maria de Lurdes e o neto, Tiago) fizeram questão de nos brindar com a sua benigna presença. 

Além disso, estes participantes anunciaram que estarão presentes também na confraternização do sul, em Benavente, no dia 22 de setembro do ano corrente. O nosso mui querido general, o Tavares, o C. Figueiredo, o Frade, o Luis Moreira e o Santo Marques percorreram mais de duzentos quilómetros para cada lado; o Gabriel Rosa e o M. Cariano palmilharam cerca de duzentos quilómetros na ida e na volta.

Caros minhotos! Tenham em devida conta que todos nós (os elos da nossa robusta corrente) nos sacrificámos imenso, durante aqueles dois longos anos de bruta guerra para criar e alimentar, até ao dia de hoje esta amizade enorme que nos une; esperamos que ninguém pretenda deitar por terra o esforço, a ousadia, a enorme coragem e a amizade que tem unido todos os robustos elos da nossa corrente. Pensem nisso! Esperamos, sinceramente, que todos pretendam que a Gloriosa CCaç 675 se mantenha viva durante muitos anos. O Tavares defende que sempre foi muito bem recebido pelo nosso pessoal do Minho – em boa verdade nunca foi mal recebido pelos antigos combatentes, em parte alguma! Pretende-se que assim continuemos por muitos e bons anos.

O comandante desta tropa especial continua a ser o nosso General Tomé Pinto que se mantém duro como o aço - se, como ele afirmou, no dia 12 de maio de 1965, em Binta, “Com tais soldados (os da CCaç 675) é fácil ser vencedor. Nós diremos que com tal comandante será impossível não ser vencedor; com ele ao nosso lado, tudo era fácil e, todos juntos, vencemos o que parecia impossível. Teremos de continuar a ser vencedores!

Mudando de rumo!
Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017)


Até ao dia de hoje, não temos notícias dignas de registo acerca do nosso pessoal. Assim sendo, vamos falar de uma figura ímpar da nossa CCaç 675. É certo que não pode haver comparações pois, a sua especialidade era única. Referimo-nos, claro está, ao nosso mui distinto médico, dr. Martins Barata.

Sabemos que provém de uma família de arquitetos e pintores. O seu “mano velho” também foi arquiteto; foi ele quem projetou o emblema da CCaç 675 que veio a ser considerado o mais original (e diferente) de quantos apareceram naquela Guiné tórrida e inclemente. O nosso era, na verdade, simples e simbólico: “CCaç 675 Nunca Cederá” sobre as cores da Infantaria.

Damos como certo que não vamos falar do médico porque não temos cabedal para tanto. Mas podemos afirmar que era um bom médico (muito bom mesmo) e sempre presente onde e quando necessitávamos dele. Nunca virou a cara à luta… à sua luta… que era também a nossa!

Pelo menos nos primeiros tempos de mato, ele foi muito assediado por alguns dos nossos soldados para se livrarem de uma ou outra patrulha mais assustadora. Não constou que alguém tivesse beneficiado de tais artimanhas. O nosso bom Galeno confiava nos seus alargados conhecimentos e experiência de vida e, assim sendo, não seria fácil demovê-lo ou enganá-lo.

Ainda em Bissau, os soldados lamentavam que ele receitava apenas comprimidos LM (Laboratório Militar) e que “os mesmos” serviam para debelar todos os males que os assolavam. O bom do nosso médico foi incansável a explicar que os comprimidos que usávamos eram todos preparados no mesmo laboratório mas tinham finalidades e valências próprias. Conseguiu levar a água ao seu moinho! Tudo ficou esclarecido.

Na primeira quinta-feira que passámos em Bissau, ele mandou distribuir a cada militar, à hora do almoço, um comprimido (“daraprim”, um antipalúdico, se bem me lembro); espalhou-se entre os nossos soldados (nas outras unidades terá acontecido o mesmo) que se tratava “apenas” de um remédio “para combater ou diminuir o “apetite sexual”. Foi difícil combater tal boato entre os soldados, defendendo que se tratava apenas de uma proteção contra o paludismo – uma doença tropical, ainda muito ativa na Guiné e não só. Não evitaria que se contraísse tal maleita mas, quem tomasse aquele comprimido preventivo, não seria tão fortemente atacado.

Com o tempo, tudo entrou nos eixos, devidamente, - o nosso doutor passou no exame – e, lentamente, começou a ser admirado e respeitado (sem imposição) pelos nossos soldados; aliás, ele merecia toda a admiração, consideração e respeito de todos nós.

O doutor Barata gostava de ir connosco para o mato… de vez em quando. O nosso conceituado mestre da guerrilha não gostava (mas não o proibiu) que ele se expusesse, desnecessariamente, e alegava:
- Se o doutor vier connosco de uma patrulha e se tivermos um ferido grave, o senhor não estará nas melhores condições para o tratar como estaria se tivesse ficado no quartel.

O nosso bom Galeno ouviu as palavras sensatas do nosso venerável capitão e terá reduzido o número das suas saídas para o mato… talvez.

Constou que os nossos adversários (os nacionalistas) se assustaram, fortemente, ao ver um militar da CCaç 675 com uma arma tão estranha (uma máquina fotográfica); terão pensado que se tratava de um “lança misseis” e/ou um “drone” e deram corda às sandálias; com o rabo entre as pernas, rumando aos seus esconderijos, como, usualmente, faziam.

Acontece que, no dia 28 de dezembro de 1964, dia em que fomos, severamente, atingidos por uma potente mina anticarro (foi a primeira de seis); o nosso médico estava lá – demos graças a Deus! – caso contrário, os danos poderiam ter sido bem mais graves. Ele manteve-se calmo, atuante e dominou a situação; ia aconselhando os dois cabos enfermeiros, ali presentes, os quais se comportaram como deviam. Naquele dia, de triste memória, nem o fur. mil. enf. Oliveira se encontrava entre os operacionais mas os dois cabos enfermeiros fizeram maravilhas; como soe dizer-se: das tripas fizeram coração! Seguindo o exemplo do seu chefe, iam acorrendo a todos os “focos de incêndio” e… eram tantos, meu Deus!

Sinto vontade de recordar, aqui e agora, as ousadas palavras do mui ilustre “inventor do quadrado móvel” da CCaç 675:
- O soldado português é o melhor soldado do mundo! Ele é corajoso, voluntarioso, valente e ousado. Poderá não morrer pela Pátria ou pela Bandeira, mas, de bom grado, dá a vida pelo seu chefe ou pelo companheiro do lado.
E acrescentava:
- Será que ele – “doa a quem doer”! Será que ele tem as chefias que merece?!

Nota: as palavras em itálico e entre aspas são acrescento nosso.

Voltemos ao campo da verdade!

O dr. Martins Barata conseguiu, no meio daquele inferno medonho e sem os meios adequados, elaborar diagnósticos completos e perfeitos acerca de cada sinistrado.

Agora, será de bom tom lembrar, também, a extraordinária atuação do soldado nativo n.º 108, Mamadu Bangoran (etnia fula), um soldado com muitos altos e baixos. Naquele dia, de triste memória, não fora a sua inaudita coragem e o seu arreigado portuguesismo e teríamos mais mortos, certamente, ou feridos mais graves, ainda. Ele arriscou, literalmente, a sua vida, entrando no meio daquelas chamas alterosas para retirar dali alguns feridos que, por si só, não conseguiriam livrar-se daquele inferno. Reentrou no meio daquelas chamas impetuosas para recolher espingardas, capacetes, carregadores, cantis, etc. para que não fossem parar às mãos dos independentistas vorazes. Não temeu sequer a mais que provável explosão do depósito de gasolina.

Depois disto, juntou-se aos companheiros que enfrentavam, corajosamente, os adversários que desencadearam uma severa emboscada, logo após o rebentamento da desastrosa mina. Escondidos entre o capim alto e denso, iam fustigando a nossa tropa, que, com eficácia os colocou em fuga desvairada.
Era mesmo assim, aquele jovem fula! Naquele dia, portou-se como um herói!

Que será feito de ti, companheiro, Bangoran?! A CCaç 675 fez de ti um homem e não te esquece! Tu também não nos esquecerás, certamente!

(continua)
__________


Nota do editor

Último post da série de 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25441: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - II (Parte III e última) (Belmiro Tavares)

6 comentários:

Valdemar Silva disse...

O soldado nativo Mamadu Bangoran, de etnia fula.
Bangoran fula ?
O nosso amigo Cherno Baldé vai f.f. de nos explicar de onde vem este apelido fula Bangoran, que eu nunca ouvi falar.

De resto, continua este fenómeno da CCAÇ 675, que punha os "coitados" do IN a retirar em gosse, gosse com medo duma máquina fotográfica.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Belmiro, justa e bonita homenagem a um dos nossos médicos da Guiné... No meu tempo, só uma vez tive um médico comigo no mato, em operações, o dr. Vidal Saraiva, ao tempo do BART 2717 (Bambadinca, 1970/72)... Já falecido. E o teu dr. Martins Barata ( Alfredo Roque Gameiro Martins Barata) também já não está cá na Terra da Alegria. Morreu cedo, aos 79 anos,

Não te esqueças, ele passou a integrar, em 2017, a nossa Tabanca Grande. Está no lugar nº 747. E lá no Olimpo dos Combatentes deve estar a falar agora com o nosso JERO...

Vê aqui um pequeno texto em pdf, da Sociedade Portuguesa de Coloproctologia (de que ele foi cofundador), em sua homenagem, por ocasião da sua morte:

Homenagem: Dr. Martins Barata (1938-2017)

Valdemar Silva disse...

Sobre o gosse, gosse que todos nos lembramos, parece haver uma confusão parecida com a de jubi significar erradamente rapaz e queria dizer olha.
Vejamos, em crioulo gos = agora, kuri = correr, rapidu = depressa, rápido, e não aparece nenhuma palavra gosse com o significado de depressa/rápido.
Existe a palavra gosse em francês que significa criança, por isso não me espanta que
o gosse, gosse ter começado com o chamamento da criança, criança, com influências
da língua francesa dos vizinhos Senegal e Guiné-Conacri.
Valdemar Queiroz

Cherno disse...

Caro Valdemar,

Tens razão em desconfiar, a CCAC 675, tal como a 674 do soldado Inácio Maria Goís, é do inicio da guerra e, por isso, não admira que façam confusão nis nomes étnicos. Bangura é, de facto, um apelido (nome de familia) do grupo etnolinguistico Sosso (Mali/Guinée-Conakri). Todavia, nos territórios da Guiné-Bissau e Casamansa, por força da longa coexistência, conquistas e miscigenação , há muita gente dessa origem (Soninquê, Bambara, entre outros) que falam a lingua e se identificam com os grupos fula ou mandinga, por serem maioritários. De salientar que a quando dos primeiros contatos com os aventureiros e comerciantes europeus, esta região da África ocidental estaca em fase avançada de formação de nações em resultado da desintegração dos antigos impérios.

Em relação a palavra "gosse-gosse", em Crioulo da GBissau é "gôs-gôs", isto é agora, de imediato, sem demora.

Cdte,

Cherno AB

Valdemar Silva disse...

Caro amigo Cherno Baldé
Cá temos a tua douta explicação sobre o apelido Bangura e não Bangoran, que vem acrescentar aos apelidos dos soldados fulas da minha CART.11, assim como aos que
conheci quando dos recrutas em Contuboel, e que não conhecia.
E temos o caso resolvido quanto ao gosse-gosse que todos dizíamos mas não sabíamos
escrever, e como eu disse gos= agora, que com a tua explicação será mais correcto
dizer gôs-gôs = agora, de imediato, sem demora.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Esqueci-me.
Quanto ao gosse ser criança em francês, não sei se o chamamento por criança, criança
ouvindo-se gosse, gosse poderia ter dado azo ao crioulo gôs-gôs como que querendo dizer criança vem cá agora, sem demora, de imediato.
Valdemar Queiroz