Apresentação do livro
Spínola: Biografia, da autoria do historiador Luis Nuno Rodrigues (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010). Local: Lisboa, Fundação Mário Soares, 8 de Abril de 2010. 2ª parte da intervenção do Embaixador João Diogo Nunes Barata, antigo chefe de gabinete de Spínola na Guiné. Neste excerto, são abordados dois capítulos do livro, correspondentes à carreira militar de Spínola durante a guerra colonial (Angola e Guiné). Afirmação de Spínola como "grande político" na Guiné.
Vídeo (4' 17''):
© Luís Graça (2010). Direitos reservados (Alojado na conta
You Tube > Nhabijoes)
Guiné > Algures > Maio de 1973 > A 25 Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, dá início a uma visita ao Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), para se inteirar do agravamento da situação militar e analisar medidas a tomar com vista a garantir o espaço de manobra do poder politico. Uns dias antes, a 22, Spínola tinha mandado um telegrama ao Ministro da Defesa, com o seguinte teor: "Conforme seu pedido telefónico informo que sob pressão IN comandante local mandou evacuar Guileje e destruir acampamento sem ordem deste comando. Trata-se de lamentável estado de pânico perante manifesta superioridade inimigo o que em caso algum justifica tal decisão. Esclareço Guileje estava sem comunicações Bissau virtude destruição antena pelo inimigio. Mandei levantar auto corpo de delito comandante responsável. Insisto pedido reforços" (Fonte: Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso -
Os anos da guerra: volume 14: 1973: perder a guerra e as ilusões. Matosinhos: QuidNovi, 2009. p.46).
Na foto, vê-se o Gen Costa Gomes à direita de Spínola, falando com milícias guineenses. Foto do francês Pierre Fargeas (técnico que fazia a manutenção dos helis AL III, na BA 12, Bissalanca), gentilmente enviada pelo nosso camara Jorge Félix (ex-Alf Mil Pil Heli, BA12, Bissalanca, 1968/70).
Foto: © Pierre Fargeas /
Jorge Félix (2009). Direitos reservados.
1. Continuamos a publicar pequenos depoimentos de camaradas nossos que estiveram, no TO da Guiné, no tempo de Spínola (entre Maio de 1968 e Agosto de 1973). São excertos de textos já publicados no nosso blogue (I e II Séries). São pequenos contributos para o conhecimento (e apreciação crítica) daquele que terá sido porventura o mais o mais falado, criticado, idolatrado, carismático, detestado e controverso dos nossos comandantes militares durante a guerra colonial. Spínola nasceu há 100 anos, em Estremoz, a 11 de Abril de 1910, no final da monarquia, ainda no reinado de D. Manuel II. O nosso blogue fica aberto à publicação de novos testemunhos e comentários sobre Spínola, o Governador e Comandante-Chefe da Guiné (1968/73).
(i)
Paulo Laje
Raposo (ex- Alf Mil, CCAÇ 2404 / BCAÇ 2852, Mansoa, Galomaro, Dulombi, Julho de 1968/ Maio de 1970)
(...) Chegámos a Bissau nos primeiro dias de Agosto [de 1968]. Depois de uma noite mal dormida, e cheios de picadas de mosquito, lá fomos para os adidos em Brá. Os dois Batalhões [BCAÇ 2851 e 2852] formaram na grande parada e o então Brigadeiro Spínola passou revista às tropas e fez a sua saudação.
Spínola tinha chegado há pouco tempo à Guiné [, em Maio de 1968, ] e esta foi a primeira cerimónia deste género que realizou. Acabadas as cortesias, ouve-se o toque a Oficiais e vamos para um
briefing. Reunimo-nos numa sala pequena. Nós, os chegados, fomo-nos sentando em várias filas de cadeiras. À nossa frente estava uma pequena mesa aonde se sentou ao centro o Brig Spínola, Governador e Comandante Chefe da Província, à sua direita o Brig Nascimento, 2º Comandante Militar, e à sua esquerda, o Comandante Militar Brig Novais Gonçalves, que já estava no fim da sua Comissão.
Não me recordo do teor do discurso proferido por Spínola, mas deve ter sido no sentido de apelar ao nosso patriotismo e responsabilidade na condução dos homens que tínhamos à nossa guarda. Após o discurso veio cumprimentar-nos, um a um. Quando chegou a minha vez, eu estava altamente perfilado, pois nunca tinha cumprimentado alguém com tantas estrelas nos ombros. Duas eram de Brigadeiro e as outras quatro de Comandante Chefe, em ambos os ombros. Ele põe-se em frente de mim, cumprimenta-me e eu também e, à queima-roupa, diz-me:
- Você tem sorte.
Eu, sem saber bem o que me esperava, digo muito timidamente:
- Porquê, meu Comandante?
- Porque quando começar a ouvir os tiros, já está mais perto do chão.
Também tinha humor. A meu lado estava o Alferes Felício, que é uma viga, e que a meu lado ainda parece maior. O nosso Comandante Chefe diz-lhe o inverso:
- Você que se cuide.
Realmente, aquele homem, com a sua voz rouca e arrastada, de luvas, com monóculo e o pingalim, impressionava qualquer um. A imagem de bravura que transmitia correspondia à sua maneira de ser. Nele tudo era verdadeiro e genuíno. (...)
(ii)
Luís Manuel da
Graça Henriques (ex-Fur Muil, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (***)
Bissau, 10 de Fevereiro de 1970
(...) De facto, aqui [,em Bissau,] desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os
desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os [alegados] criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…
(...) A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o
Velho [, uma das alcunhas de Spínola,] como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro,
ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar,
in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...
- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!
Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...
Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda. (...)
Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971 (****)
(...) De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime [, a cargo da TECNIL], esteve aqui de passagem, com uma matilha de
Cães Grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o
Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe
Herr Spínola,
tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivmente da Wermacht nazi.
Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou,
hélàs!, a presidência da república ...
Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.
Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus
nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…
A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné,
longe do Vietname.
(...)
____________
Notas de L.G.:
(*) Vd. último postre da série > 10 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 - P6138: O Spínola que eu conheci (5): Os depoimentos de Joaquim Mexias Alves e José Manuel Matos Diniz
(**) 5 de Maio de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola
(***) 14 de Novembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)
(****) 30 de Setembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)