1. Vigésimo sexto episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:
Do Ninho D'Águia até África (26)
Raízes de agricultor
A época das chuvas, já lá vai, e com ela foram quase quatro
meses. Durante este espaço de tempo, o Cifra cumpriu as
suas tarefas com normalidade. Só fez uma viajem de fim de
mês, circulando, sempre em zonas de acção, mas não teve
contacto com alguma situação que envolvesse conflito.
No aquartelamento, a sua vida é quase de rotina.
Uma, duas, e até três vezes por mês, são flagelados,
durante a noite por granadas de morteiro, seguidas de rajadas de
metralhadoras e tiros esporádicos de outra arma, talvez
pistola. Isto acontece, principalmente, quando chegam tropas
novas ao aquartelamento.
Já consideram isto uma rotina, umas vezes, são avisados de
possível ataque, outras não.
Em primeiro plano Iafane, o barqueiro. De pé o Cifra
O Iafane, o “Barqueiro”,
foto acima, sentado na sua
canoa, olhando para o Cifra,
(mais para a frente
contaremos a sua história),
muitas vezes dizia ao Cifra,
nos momentos em que passam
juntos, na sua pequena casa
coberta de colmo, onde
guardava os remos e outros
utensílios, junta à ponte do
rio, enquanto ele estava
entretido, com um cigarro na
boca, sem nunca o tirar, até ser consumido totalmente, na
construção da sua nova canoa, e o Cifra, fumando e abrigando-se
do sol tórrido:
- Cifra, pessoal mau, anda na zona.
E o Cifra, questiona:
- Como sabes.
E ele responde, mais ou menos assim:
- Tu saber, que eu sei, e digo a ti, porque tu és meu irmão,
e cala-te, se militar no quartel, sabe que eu sei, estou
morrido.
Isso era verdade. O Cifra sabia e o Iafane dizia isto ao
Cifra, porque confiava nele e sabia do envolvimento do Cifra
com as duas raparigas, que afinal eram guerrilheiras,
suas vizinhas quando viviam com a família, na tal aldeia,
próximo do aquartelamento, numa morança próximo da sua.
Mas continuando, quando acontece um ataque ao aquartelamento,
fogem imediatamente para os abrigos, pois neste momento existe
uma boa protecção em abrigos subterrâneos, que não são mais do
que valas abertas no solo, da altura de um homem, cobertas com
troncos de árvores, geralmente palmeiras, depois cobertos com um
bom metro de terra. Há o inconveniente, de por vezes se encherem
de água, que depois seca, ou se tira com um balde.
À volta do aquartelamento, do lado das matas, em alguns
locais, existe uma barreira de terra, afastada mais ou menos
dois metros do arame farpado, com cerca de um metro de altura.
Dá uma certa segurança. Se as primeiras granadas, não acertam no
alvo, passado um minuto, já o pessoal está nos abrigos a
proteger-se.
Durante estes ataques, e quando os rebentamentos começam a
ser menos frequentes, sai uma companhia de intervenção, ou o
pelotão de morteiros, tentando bater a zona, até onde sendo
possível, não indo além de uma distância de duzentos a
trezentos metros, talvez menos.
Não sabem, talvez por sorte, ou uma certa experiência de
protecção, não houve feridos ou mortes, além de uma reparação,
aqui ou ali, em alguns locais, que foram atingidos pelos
rebentamentos. Há uma área, no aquartelamento, que foi flagelada por
granadas, que nunca se reparou. É para exemplo, de tropas novas,
quando chegam ao aquartelamento.
O Cifra, nas horas em que não tem mesmo nada que fazer,
trata de uma pequena plantação
de couves e alfaces, que
iniciou, próximo dos tais três
furos de água quente, muito
quente, a cheirar a enxofre,
ou coisa parecida, que havia
ao sul do aquartelamento. No
solo, de cor preto/vermelho,
largou a semente, que cobriu
com um pouco de terra. Passadas
umas semanas, já os vegetais
cresciam. Era só regar de vez
em quando.
Na altura em que a água
tinha contacto com o solo, podia ver-se as alfaces a crescer, a
desabrochar, como se fosse um ser vivo. Que espectáculo. Os
vegetais eram consumidos no aquartelamento.
O Curvas, alto e refilão, passava muitas horas ao redor
desta plantação, fez uma vedação, com paus, em seu redor, e não
deixava que ninguém se aproximasse, ou tocasse nos vegetais, e
dizia, na linguagem que todos lhe conheciam:
- Até que enfim que vi o Cifra fazer qualquer coisa neste
aquartelamento, deviam de pôr essa “tropa fandanga”, que são os
cifras, e todos esses, que estão metidos nos gabinetes, a cavar
terra, pois assim já podiam dizer que trabalham, porra.
Era assim o homem.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Novembro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10646: Do Ninho D'Águia até África (25): O comboio das seis e meia (Tony Borié)