Comment ils sont toujours gais, les portugais!
por Luís Graça
Olho do alto,
do mais alto edifício da Lisboa fontista,
o marquês in su situ,
o dito marquês de Pombal,
le plus fameux marquis du Portugal:
Estatuado,
bem apessoado,
em pose de Estado,
futurista,
mas sem insígnias de general:
apeado,
sem burro, mula ou cavalo
para se poder passear
pelas futuras avenidas novas,
largas, chiques, burguesas,
do Ressano Garcia
que ainda está por nascer.
Consulto o guia turístico do pós-25 de Abril
e vejo que lhe falta, do polícia oitocentista,
o cassetete e o apito,
mas ele está bem assim,
acima do Rei de Paus,
abaixo da Lei e da Grei,
maçon e republicano,
domando o leão,
dominando a cidade,
serena, sibilina,
com o Terreiro do Paço,
o Palácio do Santo Ofício, os Estaus,
e o Rio Tejo, o mundo, ao fundo.
bem apessoado,
em pose de Estado,
futurista,
mas sem insígnias de general:
apeado,
sem burro, mula ou cavalo
para se poder passear
pelas futuras avenidas novas,
largas, chiques, burguesas,
do Ressano Garcia
que ainda está por nascer.
Consulto o guia turístico do pós-25 de Abril
e vejo que lhe falta, do polícia oitocentista,
o cassetete e o apito,
mas ele está bem assim,
acima do Rei de Paus,
abaixo da Lei e da Grei,
maçon e republicano,
domando o leão,
dominando a cidade,
serena, sibilina,
com o Terreiro do Paço,
o Palácio do Santo Ofício, os Estaus,
e o Rio Tejo, o mundo, ao fundo.
── Comment ils sont toujours gais, les portugais! ──
exclama a guia, do vinte e oito da Carris,
que vai da Graça aos Prazeres
da boa mesa e melhor cama.
Olho-o de alto,
ao Marquês e ao seu leão,
sem desprezo nem paixão,
com o tal olhar sociológico,
que deve ser distanciado,
profundo,
perscrutador,
sideral,
como me ensinou o meu professor
de métodos e técnicas
de investigação social:
── Saibam escutar Deus e Diabo,
e ponham a falar o pecador e o santo,
Deus e a sua corte,
mais os pobres deste mundo.
Mas só agora reparo,
no meu pequeno problema
do foro oftalmológico.
Não é uma questão de vida ou de morte,
mas apenas de incapacidade:
estou com falta de perspectiva,
não tenho o súbito ângulo de visão,
nem a suficiente lucidez,
luminosa, altiva,
para descer do pedestal
e caminhar, homo erectus, e sozinho,
pela Avenida, larga, da Liberdade.
O que vale é que p'ra baixo
todos os santos ajudam,
mesmo os papos de anjo e os querubins
do Hospital Real de Todos os Santos,
em ruínas.
Não, não sou santo, pederasta nem pedófilo,
sou o Intendente,
do Largo do mesmo nome,
Pina Manique,
um seu criado para o servir.
E eu, cá por mim,
prezo-me de ser um gajo decente,
não fumo,
não bebo,
não conspiro,
não conspurco,
não especulo,
não cometo crimes horrendos,
exclama a guia, do vinte e oito da Carris,
que vai da Graça aos Prazeres
da boa mesa e melhor cama.
Olho-o de alto,
ao Marquês e ao seu leão,
sem desprezo nem paixão,
com o tal olhar sociológico,
que deve ser distanciado,
profundo,
perscrutador,
sideral,
como me ensinou o meu professor
de métodos e técnicas
de investigação social:
── Saibam escutar Deus e Diabo,
e ponham a falar o pecador e o santo,
Deus e a sua corte,
mais os pobres deste mundo.
Mas só agora reparo,
no meu pequeno problema
do foro oftalmológico.
Não é uma questão de vida ou de morte,
mas apenas de incapacidade:
estou com falta de perspectiva,
não tenho o súbito ângulo de visão,
nem a suficiente lucidez,
luminosa, altiva,
para descer do pedestal
e caminhar, homo erectus, e sozinho,
pela Avenida, larga, da Liberdade.
O que vale é que p'ra baixo
todos os santos ajudam,
mesmo os papos de anjo e os querubins
do Hospital Real de Todos os Santos,
em ruínas.
Não, não sou santo, pederasta nem pedófilo,
sou o Intendente,
do Largo do mesmo nome,
Pina Manique,
um seu criado para o servir.
E eu, cá por mim,
prezo-me de ser um gajo decente,
não fumo,
não bebo,
não conspiro,
não conspurco,
não especulo,
não cometo crimes horrendos,
dou aos pobres,
empresto a Deus,
empresto a Deus,
que me paga com juros e dividendos,
enfim, sou um anónimo súbdito leal.
Je viens du Siècle du Son et e de la Lumière!,
mas sou daqui natural,
primata social,
de sangue quente,
português, discreto,
cidadão avant la lettre,
jacobino, às vezes,
maçónico,
clandestino,
podem chamar-me estrangeirado,
e hoje liberal dos sete costados,
como o Espada, o Pacheco ou o Barreto;
por azar, nascido no Estado Novo,
educado em escola do Conde de Ferreira,
que antes de ser conde era visconde,
como antes tinha sido barão e cavaleiro,
e antes de tudo era o José Ferreira,
nascido em Gondomar,
de pais campónios, mas remediados,
e maior roceiro e negreiro,
se não mesmo esclavagista,
p'las Angolas e p'los Brasis,
filantropo, benemérito,
apoiante da causa da Dona Maria,
e que eu saiba nunca foi setembrista
ou capitalista manufactureiro.
Mas que deixou o remanescente
da sua imensa fortuna
para fazer a escolinha
p'ró menino e p'rá menina,
a escolinha da minha infância.
E ainda, por duplo azar meu,
ex-combatente da guerra colonial,
no tarrafo do Rio Geba,
nos rápidos do Rio Corubal
e nas bolanhas da Guiné,
terra de azenegues e de negros.
E ainda por cima
contribuinte líquido,
cibernauta, blogador,
com sintomas de burnout,
ao virar da esquina do século vinte e um.
── Desculpe, Senhor Intendente,
excelência, senhoria,
mas não reparei na velhinha
com o cão pela trela,
na passagem de peões,
que ia levantar o jackpot do euromilhões
ao quiosque da Tabacaria do Pessoa.
Vote no homem, avozinha,
que ele é bom chefe de família
e benfiquista.
Enfim, andei como tu,
pobre marquês no ocaso dos dias,
grande duque de copas o resto do ano,
uma vida inteira
a exercer ilegalmente
o mister da existência,
o duro ofício de viver:
a enterrar os mortos
e a cuidar dos vivos,
a destruir o passado,
a reconstruir o presente
e a riscar o futuro.
Só não matei de morte matada,
por objecção de consciência,
nas guerras da pacificação
com o capitão diabo.
E afinal,
alguém me passou um atestado
de robustez física
para poder circular
entre o núcleo duro
da insanidade mental
da mítica cidade de Ulisses:
hoje faz parte da blogosfera,
a cidade gravada em cobre por Braúnio
em Civitates Orbis Terrarum.
── Não sei como deixei escapar
esta exposição
no Centro Cultural de Belém. ──
diz o Intendente Pina Manique,
agora caído em desgraça,
lá p'rós lados da Mouraria.
Por entre reclusos e negros,
mouros cativos
e filosófos esotéricos,
judeus sefarditas
e cristãos velhos,
marinheiros e mercadores,
balantas fuzilados entre a Mina e o Fiofioli,
batedores, dançarinos e cantadores de fado,
portadores do virús HIV,
operários sinistrados
das obras do convento de Mafra,
lançados,
grafiteiros,alcoviteiras,
tocadores de kora,
jagudis,
e poetas alcoolizados
no Martinho da Arcádia,
pederastas e prefeitos
dos Reais Colégios,
que gostam de pôr os pontos nos ii,
lá me escapei,
passei a fila
e cheguei à consulta do morbo gálico
no Hospital Real de Todos os Santos.
Estava semidestruído,
vinte anos depois da Grande Peste
(De que Deus nos livre!).
Afinal, o meu mal era português,
disse-me o físico,
de serviço ao banco de urgência.
Era já velho, trinta anos,
a cara coberta de bexigas
por causa da varíola
ou de algum esquentamento mal curado.
enfim, sou um anónimo súbdito leal.
Je viens du Siècle du Son et e de la Lumière!,
mas sou daqui natural,
primata social,
de sangue quente,
português, discreto,
cidadão avant la lettre,
jacobino, às vezes,
maçónico,
clandestino,
podem chamar-me estrangeirado,
e hoje liberal dos sete costados,
como o Espada, o Pacheco ou o Barreto;
por azar, nascido no Estado Novo,
educado em escola do Conde de Ferreira,
que antes de ser conde era visconde,
como antes tinha sido barão e cavaleiro,
e antes de tudo era o José Ferreira,
nascido em Gondomar,
de pais campónios, mas remediados,
e maior roceiro e negreiro,
se não mesmo esclavagista,
p'las Angolas e p'los Brasis,
filantropo, benemérito,
apoiante da causa da Dona Maria,
e que eu saiba nunca foi setembrista
ou capitalista manufactureiro.
Mas que deixou o remanescente
da sua imensa fortuna
para fazer a escolinha
p'ró menino e p'rá menina,
a escolinha da minha infância.
E ainda, por duplo azar meu,
ex-combatente da guerra colonial,
no tarrafo do Rio Geba,
nos rápidos do Rio Corubal
e nas bolanhas da Guiné,
terra de azenegues e de negros.
E ainda por cima
contribuinte líquido,
cibernauta, blogador,
com sintomas de burnout,
ao virar da esquina do século vinte e um.
── Desculpe, Senhor Intendente,
excelência, senhoria,
mas não reparei na velhinha
com o cão pela trela,
na passagem de peões,
que ia levantar o jackpot do euromilhões
ao quiosque da Tabacaria do Pessoa.
Vote no homem, avozinha,
que ele é bom chefe de família
e benfiquista.
Enfim, andei como tu,
pobre marquês no ocaso dos dias,
grande duque de copas o resto do ano,
uma vida inteira
a exercer ilegalmente
o mister da existência,
o duro ofício de viver:
a enterrar os mortos
e a cuidar dos vivos,
a destruir o passado,
a reconstruir o presente
e a riscar o futuro.
Só não matei de morte matada,
por objecção de consciência,
nas guerras da pacificação
com o capitão diabo.
E afinal,
alguém me passou um atestado
de robustez física
para poder circular
entre o núcleo duro
da insanidade mental
da mítica cidade de Ulisses:
hoje faz parte da blogosfera,
a cidade gravada em cobre por Braúnio
em Civitates Orbis Terrarum.
── Não sei como deixei escapar
esta exposição
no Centro Cultural de Belém. ──
diz o Intendente Pina Manique,
agora caído em desgraça,
lá p'rós lados da Mouraria.
Por entre reclusos e negros,
mouros cativos
e filosófos esotéricos,
judeus sefarditas
e cristãos velhos,
marinheiros e mercadores,
balantas fuzilados entre a Mina e o Fiofioli,
batedores, dançarinos e cantadores de fado,
portadores do virús HIV,
operários sinistrados
das obras do convento de Mafra,
lançados,
grafiteiros,alcoviteiras,
tocadores de kora,
jagudis,
e poetas alcoolizados
no Martinho da Arcádia,
pederastas e prefeitos
dos Reais Colégios,
que gostam de pôr os pontos nos ii,
lá me escapei,
passei a fila
e cheguei à consulta do morbo gálico
no Hospital Real de Todos os Santos.
Estava semidestruído,
vinte anos depois da Grande Peste
(De que Deus nos livre!).
Afinal, o meu mal era português,
disse-me o físico,
de serviço ao banco de urgência.
Era já velho, trinta anos,
a cara coberta de bexigas
por causa da varíola
ou de algum esquentamento mal curado.
── E aos trinta anos, senhor,
quem não é médico é louco. ──,
ameaçou-me o maqueiro,
mal barbeado,
com ar de galicado
e chulo do Bairro Alto,
sobrevivente da guerra dos três Guês,
Guidaje, Guileje e Gadamael.
Deu-me, o físico, alguns unguentos e sedativos
e um estranho papel com uma receita com mel:
quem não é médico é louco. ──,
ameaçou-me o maqueiro,
mal barbeado,
com ar de galicado
e chulo do Bairro Alto,
sobrevivente da guerra dos três Guês,
Guidaje, Guileje e Gadamael.
Deu-me, o físico, alguns unguentos e sedativos
e um estranho papel com uma receita com mel:
── Senhor real boticário,
é completamente inútil
este exercício ilegal da medicina.
O mal do doente é português
e quiçá irremediável e universal.
Do coração a sangrar não há sinais,
e da bilis amarela só sai fel,
dê-se conhecimento ao físico-mor
para os devidos efeitos
e procedimentos habituais!
Prognóstico reservado,
depois de vistas as águas!
E eu a pensar que o meu mal
era espanhol,
quando fero conquistador no Novo Mundo,
ou francês,
da rive gauche, que chique!
Ou veramente italiano,
florentino, de capa e espada,
católico, apostólico, romano,
genovês,
veneziano, viperino...
Não, o meu mal é português,
irremediavelmente, genuinamente, português
em Goa, Damão e Diu;
em Cabo Verde ou na Guiné;
em Angola ou Moçambique,
no Minho, em Macau ou em Timor
ou outras terras que a gente nunca viu.
Tirei a sina na feira da ladra
e a sentença ficou dada,
na barraca dos tirinhos:
── Pobrete mas alegrete!
Se não tens voz de tenor, senhor,
canta de falsete;
e se não tens cão, hombre!,
caça com gato.
E sobretudo nunca olhes para trás,
a menos que a vista mereça a pena!
Hoje a cidade está vazia
à hora do terço e da novena,
e já não se dispensam mais
cuidados paliativos nem terminais.
Facto trivial,
uma criança é abandonada
na Roda da Misericórdia,
e dois turistas acidentais
espreitam
à porta da cervejaria Trindade,
fechada por causa do Grande Sismo do Ocidente,
enquanto El-Rei, nosso senhor,
no Paço se deita com a abadessa...
Sangra de saúde, compulsivo,
deixando o seu ministro aflito,
mais o confessor conselheiro,
entre o patíbulo dos Távoras
e a Real Fábrica das Sedas,
ali, às Amoreiras,
de portas abertas à espera do investidor estrangeiro.
Nas paredes do hospital da cidade
alguém escreveu um grafito,
jocoso,
quiçá subversivo,
e lesa-majestade:
── Meu caro Marquês, em Lisboa...
nem sangria má nem purga boa!
27 out 2004 / Revisto nesta data
é completamente inútil
este exercício ilegal da medicina.
O mal do doente é português
e quiçá irremediável e universal.
Do coração a sangrar não há sinais,
e da bilis amarela só sai fel,
dê-se conhecimento ao físico-mor
para os devidos efeitos
e procedimentos habituais!
Prognóstico reservado,
depois de vistas as águas!
E eu a pensar que o meu mal
era espanhol,
quando fero conquistador no Novo Mundo,
ou francês,
da rive gauche, que chique!
Ou veramente italiano,
florentino, de capa e espada,
católico, apostólico, romano,
genovês,
veneziano, viperino...
Não, o meu mal é português,
irremediavelmente, genuinamente, português
em Goa, Damão e Diu;
em Cabo Verde ou na Guiné;
em Angola ou Moçambique,
no Minho, em Macau ou em Timor
ou outras terras que a gente nunca viu.
Tirei a sina na feira da ladra
e a sentença ficou dada,
na barraca dos tirinhos:
── Pobrete mas alegrete!
Se não tens voz de tenor, senhor,
canta de falsete;
e se não tens cão, hombre!,
caça com gato.
E sobretudo nunca olhes para trás,
a menos que a vista mereça a pena!
Hoje a cidade está vazia
à hora do terço e da novena,
e já não se dispensam mais
cuidados paliativos nem terminais.
Facto trivial,
uma criança é abandonada
na Roda da Misericórdia,
e dois turistas acidentais
espreitam
à porta da cervejaria Trindade,
fechada por causa do Grande Sismo do Ocidente,
enquanto El-Rei, nosso senhor,
no Paço se deita com a abadessa...
Sangra de saúde, compulsivo,
deixando o seu ministro aflito,
mais o confessor conselheiro,
entre o patíbulo dos Távoras
e a Real Fábrica das Sedas,
ali, às Amoreiras,
de portas abertas à espera do investidor estrangeiro.
Nas paredes do hospital da cidade
alguém escreveu um grafito,
jocoso,
quiçá subversivo,
e lesa-majestade:
── Meu caro Marquês, em Lisboa...
nem sangria má nem purga boa!
27 out 2004 / Revisto nesta data
Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade). Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira. (LG)
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 20 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11599: Manuscrito(s) (Luís Graça) (3): O país que via passar os comboios