Queridos amigos,
Os documentos que Paulo Guilherme envia para Annette Cantinaux, exatamente no momento em que ela embarca para Lisboa (passarão as férias de Natal juntos) prendem-se com um dos períodos mais dramáticos da sua comissão: novos sinistros, o sentimento de injustiça daquela punição acompanhada de dois louvores, agora vai a caminho de Bissau, será operado a uma exostose no joelho direito, cambaleia cada vez mais com o sofrimento. O guarda-costas surpreende-o, irá acompanhá-lo até Bissau, quer que não lhe falte nem uma garrafa de água nem as bananas, repetirá em 1995 tal procedimento. Há oito meses que não vai a Bissau, nem pode imaginar que no mesmo dia em que sair do Hospital Militar n.º 241 a ele regressará, de coração contrito, para visitar os feridos de uma flagelação que encheu de cinzas Missirá.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (25): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureuse, amanhã, uma belíssima mulher belga, a Estrela da Manhã da minha vida, chega à minha terra para fazer brilhar a nossa festa natalícia, para brindarmos ao nosso futuro. A arrumar papéis para te enviar (já na tua ausência chegarão à Rua do Eclipse) a sequência dos acontecimentos daquela desastrosa operação que vitimou Fodé Dahaba, encontrei por mero acaso a citação de um poema de Chico Buarque de Holanda que tinha a ver seguramente com um estado de solidão que atravessava a minha vida no Cuor e relendo-a senti algo semelhante ao que era a minha existência antes de tu, providencialmente, te teres atravessado no meu caminho: “Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado… isto é circunstância. Solidão é muito mais do que isto. Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma”.
Na verdade, minha adorada Annette, agora que te dás ao trabalho, quase de tear, de juntar todas estas peças de um jovem que desembarcou em Bissau com dois caixotes monumentais com livros e discos de vinil e gira-discos, parecia que andava com a casa às costas, mas no fundo era um processo de continuidade, uma sequência natural entre passado e presente, os meses vão passando, afeiçoou-se à sua gente, dá-se muito mal com aquela burocracia obtusa e a encenação ríspida de alguns dos seus superiores, no caso daquela desastrada operação pediu repetidas vezes ao tal major de operações que lhe parecia não ter pés nem cabeça pôr uma fila de 300 homens quando havia dois objetivos a alcançar, se acaso se alcançasse um o outro estaria fora de questão, ter-se-ia perdido a surpresa, era uma lógica com que o seu superior não atinava, e ele continuava a insistir que uma Companhia reforçada podia avançar a partir de Mato de Cão ou por Chicri até Madina, a outra Companhia, onde ele se integraria, iria a partir de Missirá para atingir a base de Belel. Fizeram vista grossa dos seus argumentos, toda aquela tropa chegou tarde e a más horas, completamente exausta pela cambança, por palmilhar aos tombos na bolanha de Finete, cada vez que este episódio se lhe aflora à mente é um travo de fel. Mas vamos prosseguir.
Logo a seguir àquela operação desastrosa, como te disse, fomos recuperar o armamento extraviado, ao entregá-lo em Bambadinca, assim de supetão, como se de castigo se tratasse, fui informado que ia participar numa operação na região de Mansambo, o mesmo major que sonhara com a destruição de Madina ordenava agora, com secura, que me apresentasse no dia seguinte, ao princípio da tarde, seguiria em coluna militar para Mansambo. Passando pela enfermaria, recebo o relatório médico para ir ser operado a Bissau, sigo para a secretaria para pedir guia de marcha, com data a partir do regresso de Mansambo. Em Missirá, ponho alguma ordem nos meus trastes, meto livros espalhados no baú, depois de lhes sacudir o pó, contando sempre com a extrema afabilidade e ajuda do meu guarda-costas, Cherno Suane. Primeiro os livros, depois os discos. Prepara-se um saco de roupa, a inevitável farda n.º 2 para me apresentar em Bissau, os artigos de higiene, mudas de roupa interior, um punhado de leituras. Toda esta atividade nas arrumações me faz bem, recordo onde e como comprei aquele livro, onde e como ouvi aquele quarteto, concerto ou sinfonia a que prontamente aderi, é com ternura que afago a correspondência de quem amo, por acaso nesse dia chegaram cartas e aerogramas de Lisboa, de dois pontos de Moçambique, imagine-se, de dois antigos soldados açorianos, recebi incitamentos, apelos à coragem, já comuniquei que me deram dois dias de prisão simples e em simultâneo louvores.
Adorada Annette, aqui segue a documentação que guardei da Operação Fado Hilário, tratava-se de sair de Mansambo e percorrer uma antiga base do PAIGC em Galoiel, não muito longe daquele rio Corubal que mais abaixo passa junto ao Xitole. Recordo acima de tudo o cuidado com que o Capitão Laranjeira Henriques explicou ao detalhe o que se pretendia com a operação e como faríamos o percurso. Será a primeira vez que irei entrar num acampamento de guerrilha abandonado. Ouviremos ao longe tiros de caçadores, no regresso teremos sorte em fugir a um ataque de abelhas. Enfim, um patrulhamento sem incidentes, regressaremos tarde, só na manhã seguinte nos poremos ao caminho para Bambadinca. É então que eu sinto uma exaustão profunda, a necessidade de me isolar um pouco, peço licença para depois do jantar ir para o abrigo, o Chico Buarque parece estar a esporear-me, a convidar-me para um volteio lírico, habituei-me a não ceder a um poetar que é epidérmico, sinto que é pouco sincero. Mas naquele momento eu não resisto, parece que tenho dentro da cabeça os gritos daqueles dois sinistrados, que aquela explosão parece que aconteceu há momentos, estou atarantado, busco o meu caderninho de apontamentos e passo ao papel a lamechice dos meus versos: “Os meus feridos são uma perene voz ululante, uma súplica sem remédio dentro da floresta fechada, os seus gritos esvanecem-se em abóbadas de gás, como se houvesse um concerto polar. Não sei o que fazer à minha solidão, ela ribomba dentro deste espaço protetor num aquartelamento militar, reprime um grito e é para ti minha mãe que eu garatujo a pedir amparo, nos estreitos dos teus braços. Tu és a minha primeira testemunha e a minha ancestral companhia. És a gávea de onde o marinheiro grita terra à vista”. E então não consigo reprimir a comoção, toda aquela mágoa sem qualquer direção, é um choro convulso dentro daquele espaço silencioso. E adormeço, durmo como uma pedra.
Regresso sem novidade a Bambadinca. Tenho guia de marcha e um voo a meio da tarde em Bafatá para Bissau. Despeço-me dos dois furriéis que ficam com farta agenda de cometimentos, não haverá patrão ausente e feriado na loja. Quando me preparo para me despedir do Cherno, ele olha-me de frente, e diz sem hesitar: “Ainda não lhe disse, mas vou de férias para Bissau, sigo amanhã numa embarcação, depois levo-te água e bananas ao hospital. O guarda-costas anda sempre com o alfero”. Imagina tu, adorada Annette, que em 1995 fui operado a uma hérnia discal e uma das primeiras visitas foi a do Cherno, eu conseguira preparar as coisas para ele vir até Lisboa quando trabalhei como cooperante na Guiné em 1991. Veio, foi a uma junta médica que lhe reconheceu as sequelas de um duplo traumatismo em consequência de uma mina anticarro, teve direito a uma pensão, e trabalhava numa loja de eletrodomésticos na Praça de São Paulo, junto do Cais do Sodré. Estou a dar-te estes pormenores porque gostaria que os dois o visitássemos, sei muito bem que ele se sentirá feliz em te conhecer.
Já entrei no Dakota, subimos aos céus e eu vou bisbilhotando todo aquele coberto florestal e os meandros do Geba, o avião inflete para Bissau, saio com a mala na mão e apanho aquele bafo de estufa e sinto prontamente aquele cheiro onde se conjugam resinas de árvores e gafanhotos mortos. Tenho direito a uma boleia de jipe e vou para Santa Luzia, amanhã de manhã serei visto pelo ortopedista, oxalá que a operação exija pouca convalescença e sobretudo que me tire as dores que me tolhem os movimentos da perna direita. E amanhã mesmo espero abraçar o meu querido Fodé Dahaba, o que eu ainda não supus irá acontecer: quando sair deste hospital devidamente tratado a ele regressarei apressadamente para visitar os meus feridos de uma terrível flagelação que irá devastar, deixar em cinzas, muito mais de metade de Missirá.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 23 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21477: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (24): A funda que arremessa para o fundo da memória