Acabo de chegar a casa (, em Torres Vedras, depois da Vilma ter regressado a bordo, no passado, dia 20, vinda da Eslovénia) . Gostas que partilhemos experiências relacionadas com a Guiné … aqui vai  o que se passou ontem comigo:
Fui  a Coimbra onde tinha deixado para encadernar um calhamaço que comprei  um dia numa feira em Nova Iorque.  Reencaderná-lo lá  era proibitivo mas lembrei-me de o fazer em Portugal. E  foi em Coimbra que encontrei quem o fizesse. 
Aí lembrei-me  de vários amigos e camaradas que tenho  encontrado  em anos anteriores e que gostaria de encontrar outra vez.   Tenho  pena de o não poder fazer, que o tempo e outras razões não permitem tudo.  Mas há um   indivíduo, camarada da Guiné,  que, graças ao António Figueiredo,   da minha CCaç 1439,   eu   consegui reencontrar há cerca de dez anos e  com quem tenho falado desde então   pelo telefone,  mas  cuja  oportunidade de encontrar pessoalmente  tem sido elusiva. 
 Sabia que ele morava  perto dali e telefonei-lhe.  Estava em casa e  ficou satisfeito de saber que eu estava em Portugal. Imediatamente combinamos um encontro/almoço num restaurante local,  o "Katekero", mesmo em frente da câmara municiipal e lá fomos,  eu e a Vilma a conduzir como de costume,  até S. João da Madeira.
Não te preciso dizer o que senti, que em circunstâncias é experiência muito repetida  , mas que não deixa de ser menos sentida sempre que um de nós reencontra um camarada.
Dentro em pouco falávamos  da  Guiné: 
"Olha, João    − disse- me ele logo ao começar   −, estive lá só quatro meses,  mas fiquei a gostar daquilo e hoje tenho saudades.” 
E logo  lembrou  a emoção que sentiu um dia quando numa visita ao Porto, em frente ao centro comercial de Brasília,  deparou com o capitão Amândio Pires, comandante da CCaç 1439…
   
Trata-se  do alferes médico Francisco Pinho da Costa, do BCaç 1888,  sediado em Bambadinca,  em 1965 /66. Tem agora 84 anos, com uma memória ainda muito boa, lembrando coisas nos seus  pormenores, capacidade que  eu há muito perdi substancialmente. 
Perante a minha surpresa, uma vez que estivemos na Guiné na mesma altura e ele ter mais sete anos que eu, explicou  que isso se deve ao facto de ter adiado o serviço militar várias vezes para que ele pudesse acabar o seu curso de medicina.   Pensei que ele tinha feito o curso de oficial miliciano em Mafra, mas esclareceu-me me "ter  sido preparado" em Santarém, uma preparação rápida "ad hoc" (disse ter sido apenas cerca de um mês, se me não engano) ao fim da qual, mesmo  sem saber ainda bem  o que era e como funcionava uma G3, foi enviado em rendição individual para a Guiné.
 
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CCAÇ 1439 (1965/67) > Fevereiro de 1966 > Cecília Supico Pinto, presidente do Movimento Nacional Feminino, na sua 1ª visita à Guiné, então já com 44 anos (ia fazer 45 em 30 de maio de 1966). De pé à esquerda, na primeira fila, de óculos,  o alf mil médico Francisco  Pinho da Costa, hoje, com 84 anos, a residir em São João da Madeira. 
 Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Apesar das poucas vezes que estive com ele (ele apenas esteve na Guiné quero meses e apenas  apareceu algumas vezes na CCaç 1439),  lembro-me bem dele,  como  um indivíduo afável,  bem disposto e sempre   a querer  ajudar no que quer que fosse: mostrei-lhe,  no computador que propositadamente tinha trazido,  vários postes do nosso blogue, nomeadamente os postes P22258 e P22478. Ele aparece numa foto (vd, acima),  a do  primeiro poste, o P22258 (  da esquerda é o segundo, de óculos,  ) por ocasião da visita da Supico Pinto a Porto Gole e reconheceu , parece mais e melhor que eu, a maioria dos que aparecem nessa foto. Outras fotos que lhe mostrei  foram para ele  momentos de emotiva saudade. 
   
Mas foi a leitura do relatório sobre a operação Gorro  que  lhe ocasionou ume enxurrada de comentários e detalhes, alguns deles a meu respeito que eu tinha já completamente esquecido mas que me vieram à  memória então.
 Lembrou que o Capitão Pires o havia mandado   para ir nessa "saída ao mato”.  Mas,  quando ele se preparava para o fazer,   alguns elementos da tabanca  vieram ter com ele, avisando-o que não fosse. Mas ele não lhes deu ouvidos: o capitão tinha-o  mandado ir e portanto ia. Mas que mais tarde os mesmos membros da tabanca que o haviam   aconselhado a não sair, voltaram e desta vez com mais insistência o avisavam de que não devia ir pois que iam ser atacados. Que não lhes deu atencão, mas que,  perante a insistência deles de que iam ser atacados,  resolveu então  levar uma G3, como todos os outros.
Lembra-se de ir  em pé  em cima do “granadeiro”,  agarrado à “parede da frente "por trás  do condutor  António Figueiredo, quando a mina explodiu e foi pelos ares. "Foram os maiores minutos da minha vida”… sentiu e ficou  consciente do sopro da explosão que o fez ir pelos ares  mas que depois "parecia nunca mais chegar ao chão”… 
 E quando de pernas direitas atingiu o chão,  percebeu logo que tinha partido uma das  pernas, para logo verificar  que tinha  o calcanhar e tornozelo da outra também estavam  partidos.  Mas que haviam vários feridos (pensa ele que eram cerca de oito) , os que foram com ele pelos ares e as dores eram sofríveis. 
Com um bocado duma  tábua  e alguma  ajuda que lhe deram ele próprio endireitou e  imobilizou a  perna partida e  começou a  ajudar aqueles que precisavam da sua ajuda; lembra-se de ter instruido  um indivíduo — pensa ele que era um cabo enfermeiro que estava  ferido — a tapar e fechar  com os próprios  dedos a veia junto ao ouvido, pois este estava a sangrar pelos ouvidos e tinha de ser evacuado imediatamente. Depois de evacuado  nunca soube mais dele.
E lembra-se bem de mim: que eu ia ao lado do condutor e que eu ia a dormitar  quando a mina rebentou. A mim e ao  condutor não nos sucedeu nada, apesar de termos sido lançados pelos ares. Lembra-se que eu o abracei quando vi que ele estava vivo; e lembrou-me dum facto  que de todo tinha  esquecido  até hoje:   que lhe disse que eu estava ferido, mas que não sentia  dores, mas que — dizia eu— o sangue me corria pelas pernas. E logo verificou que o que eu pensava ser sangue a escorrer  na perna era apenas o azeite de uma lata de sardinhas…   Sucede que eu tinha comigo a ração de combate e um estilhaço qualquer   atingiu  o meu saco  da ração de combate  mas a lata de sardinhas  salvou-me do pior.  E  a verdade é que quando ele mencionou isto eu lembrei-me  imediata e  vivamente de  tudo isso. 
O raça da idade faz destas coisas… .  Como me  lembrei  também da troça de que fui alvo depois muitas vezes …  o que me admira é ter completamente esquecido isto; um facto que se não fosse o médico a lembrar-me agora,  provavelmente nunca mais me viria  à memória… 
E foram umas atrás das outras, as histórias e memórias que relembramos, umas boas, outras menos boas: a historia dum alferes, Alves Moreira,  conhecido como "o Grilo” que era comandante do Xime: havia no Xime  um cão de guerra ( devo dizer que nunca  ouvi isto antes) que,  embora não atacasse ninguém sem razão,  só respeitava mesmo o soldado que o havia treinado. O alferes porém pensava que,  porque  alferes, sabia melhor que os outros,  e gostava de mostrar as suas capacidades e conhecimentos no manejo de cães de guerra;  mas o cão parecia não concordar e não reconhecia autoridades;  e um dia atirou-se ao alferes que apenas se  salvou de pior porque o treinador presente  controlou imediatamente “ aquela falta de respeito” a um oficial . 
Um dia perguntou o que é que seria feito do cão quando o treinador  deixasse de o ser por qualquer motivo. Para seu desmaio foi informado que muito provavelmente nessa altura o pobre bicho teria de ser abatido…  O mesmo alferes estava um dia  em cima duma  ponte (que identificou mas   cujo nome não lembro,)  e estava  de queixo  e  braço apoiados na proteção/berma  da ponte, quando dele se aproximou um indivíduo   que havia acabado de chegar ao Xime. E, ainda periquito,  não  sabendo de quem se tratava mas procurando informação ou conselho,  aproximou-se dele  e  perguntou: 
"Olha lá, tu conheces o comandante aqui do Xime? dizem-me que é um grande filho da puta”…  Ao que o alferes, sem uma nem duas, espetou-lhe uma grande murraça enviando o inocente  desgraçado para o meio do rio…
Do Enxalé lembrou ainda que quando aí esteve havia uma grafonola; mas o problema é que só havia um disco e ele depressa se cansou da variedade musical que isso  oferecia…  Foi neste momento que eu compreendi que deve ter sido então no Enxalé que  nasceu o popular dito  "vira o disco e toca o mesmo"…
E quando estávamos nós neste desfilar de recordações apareceu um  indivíduo que conhecia bem o nosso Francisco Pinho da Costa. Depois das devidas apresentações, vim a saber que se tratava de um outro veterano da Guiné, de nome António Azevedo Praia de Vasconcelos. Também ele foi  alferes miliciano médico nos anos 1966/68  do BCAV 1897,  cujo comandante era o tenente  coronel Vasconcelos Porto, e lembrava as companhias desse batalhão :  CCav 1615, 1616 e  1617 . Esteve em Canquelifá, Nova Lamego, Madina do Boé, Mansabá, e Bissorã (se bem percebi estes últimos dois nomes). 
Tivmos pena do encontro ter acontecido   tão "em cima da hora"; o Francisco Pinho da Costa  (e parece-me que o recém-chegado  António Vasconcelos também)   conhecem o Adão Cruz , membro da nossa Tabanca Grande, e teria sido um encontro ainda mais interessante. Mas "como  não pode ser desta vez, ficará para outra ocasião".. Oxalá as distâncias e idades o permitam. (**) 
João  Crisóstomo
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Notas do editor: