sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23837: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XI: Uma equipa inteira do Grupo de Comandos "Fantasmas", destroçada em 28/11/1964, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé - Contabane



Guiné > Brá >  Grupo de Comandos "Fantasmas" > 1964 > Desta equipa do Gr Cmds “Fantasmas” só não morreu. junto do Rio Gobige, na estrada de Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964; o segundo da esquerda. Da esquerda para a direita, o 1º cabo Ferreira, o soldado Carreira, o furriel mil. Artur Pires e os soldados Artur e Godinho.

Foto (e legenda): © João S. Parreira (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


 
Guiné > Bissau > Cemitério de Bissau, talhão militar. (onde foram inumados alguns dos comandos do Grupo Fantasmas, mortos em Gobige, em 28/11/1964) , como o Manuel Couto Narciso,  soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, ou o Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria.

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné > Região de Gabu  > Madina do Boé > Imagem aérea de Madina do Boé. Na mata ao fundo fizemos o acampamento. 

Imagem: Cortesia do blogue  Luís Graça e Camaradas da Guiné com a seguinte indicação: “Presumo que a sua autoria seja de Jorge Monteiro (ex-capitão miliciano da CCAÇ 1416, Madina do Boé, 1965/67) ou de Manuel Domingues, ex-alf mil da CCS/BCAÇ 1856, Nova Lamego, 1965/66.”



Guiné > Carta geral da província > 1961 > Escala 1/500 mil > Posição relativa de Madina do Boé e estrada para Gobige e Contabane., na fronteira sul com a República da Guiné.

Infografia: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2022)

 
1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do nosso camarada, já falecido, Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010.

A fonte continua a ser o ser o seu  livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

A edição, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível  que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965,
 e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / 
set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, 
generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, 
a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta série (*): demos um salto no tempo, de 1964 para 1970, para  acompanhar  as suas memórias da Op Mar Verde (Conacri, 22 de novembro de 1970). Um ano e tal antes, ele tinha sido selecionado 
para integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almeida.  
 
Hoje voltanos ao Gr Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG. O grupo, comandado pelo alf mil comando Maurício Saraiva, parte para Madina do Boé em novembro de 1964. Irá perder 9 dos seus homens..




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




 
Amargas recordações de Madina do Boé:  a tragédia de 28/11/1964, junto ao pontão do rio Gobige 
(pp. 94/105)

por Amadu Djaló (*)



Estávamos em Novembro de 1964. O alferes Saraiva soube,  no QG, que o PAIGC já tinha chegado à zona de Madina do Boé, no sudeste. Que tinham vindo com muitos carros carregados de material até à linha de fronteira, até uma tabanca chamada Boloi Ela, que fica no território da República da Guiné-Conakry, a pouca distância da fronteira com a Guiné Portuguesa.

O alferes ofereceu o grupo para ir para lá, enquanto não houvesse reforços para destacar para aquela zona [1].

Assim, fui a minha casa preparar a roupa interior para levar. Eu não queria despedir-me da minha mãe durante o dia, porque era dia 13 de lunar 
[2]e nós evitamos viagens nos dias 3, 13 e 23 de lunar e também na última 4ª feira de lunar. A partir do dia 21 de lunar temos que evitar as 4ªs feiras, esse espaço de tempo até à lua nova. Nos restantes dias só não devemos sair para viagens nos dias 3, 13 e 23, já que a maioria das separações, nestes dias, seriam para nunca mais, quanto mais ir para a guerra.

Quando o cabo Braima  [Seidi]. me falou da saída, não me senti muito bem. Mas se fosse de noite não fazia mal, podia sair.

Quando cheguei a Brá, encontrei os colegas europeus à nossa espera. Fui a correr pegar na arma e no equipamento e seguimos para o aeroporto, onde estavam cinco avionetas à nossa espera.

Chegámos a Madina entre as 16 e as 17 horas. Estavam todos os homens a fazer a pista para as avionetas poderem aterrar e, como o local e a clareira eram de lapas de pedra e cascalho,  não custou muito fazerem a pista num dia só. Tambor a tocar, os rapazes e homens de meia-idade trabalharam com vontade e, às 16 horas, quando chegámos, não tivemos nenhuma dificuldade em aterrar as cinco avionetas. Depois, também acompanhados com os toques dos tambores, deslocámo-nos para a entrada do aquartelamento.

Depois do alferes Saraiva explicar ao alferes [3], comandante do pelotão de Madina do Boé, sobre a nossa missão, tratámos de arranjar lugar para nós. Não ficámos dentro do “quartel”, fizemos um acampamento numa mata perto, com seis barracas, uma para cada equipa e outra para armazenar os nossos mantimentos.

A ideia era cozinhar dia sim, dia não. Um dia ração quente, outro dia ração fria. E tínhamos programado sair para o mato, também dia sim, dia não.

A população ajudou-nos a fazer as barracas, à entrada de Madina, para quem vem de Dandum. Quando era dia de descanso, dormíamos nas barracas fora do quartel e das tabancas.

Durante a semana, nas saídas que fizemos,  não vimos nem ouvimos nada. O alferes já não tinha confiança nas informações da população local. Num dia à noite, disse-me:

–  Amadu, quero ir contigo e com um guia para a tabanca de Hore Moure, na República da Guiné-Conakry.

 O que é que disse? Está bem, vamos quando quiser!

 Amanhã, Amadu. Não vamos fardados, tomamos emprestadas duas camisas grandes, vestimos como homens grandes Fulas e não vamos com as nossas armas, só levamos granadas ofensivas, duas ou três cada um.

O alferes perguntou-me em quem eu tinha confiança ali. Era a primeira vez que vinha a Madina, mas, quanto a mim, era melhor levar o chefe da tabanca. Tinha mais responsabilidades que os outros.

No outro dia, por volta das 17 horas, seguimos em duas viaturas na direcção de uma tabanca abandonada, Guileje [4] do Boé, e apeámo-nos antes de chegarmos ao local. Depois seguimos a pé até á tabanca e ficámos emboscados até às 23h00 no caminho que vem de Hore Moure.

Nessa altura o alferes comunicou a missão ao grupo. Que os três, ele, eu e Mode Hure[5], íamos fazer uma visita a uma tabanca da República da Guiné, enquanto o grupo se deveria manter emboscado naquela zona, mais ou menos a 500 metros do monte da fronteira.

Que só levávamos granadas e que se tivéssemos contacto com o PAIGC, lançávamo-las e retirávamo-nos na direcção da fronteira e o chefe da tabanca devia fugir sem se preocupar connosco. Para o grupo que ficava emboscado, o alferes disse que se aparecesse algum vulto, que atirassem, porque não seríamos nós. E, se ouvissem rebentamentos das granadas, não contassem com a nossa presença. A comandar o grupo ficou o furriel Artur.

A tabanca para onde íamos,  ficava acima do monte, no nosso idioma Hore Moure, mais ou menos a 2 kms da fronteira, dentro do território da Guiné-Conakry.

Depois de tudo esclarecido iniciámos a marcha em direcção ao sul, com destino ao nosso objectivo. Cerca de 500 metros andados chegámos ao monte de pedra [marco] de fronteira    e, agora daqui para a frente estávamos na República da Guiné-Conakry, disse-nos o chefe da tabanca.

Até aí, Mode Hure seguia à frente, eu ia a seguir e o alferes atrás. A partir dessa altura, o alferes passou à minha frente e disse-nos que se nos apanhassem deveríamos dizer que éramos árabes. Eu disse para mim, sim senhor, meu alferes, sou um árabe que não sabe falar árabe.

A tabanca estava ali à nossa frente. Deixámos o chefe ali e eu e o alferes entrámos. Vimos uma arrecadação de mantimentos, afastada das casas de habitação por causa dos incêndios. Lá dentro, com a lanterna de mão, subimos as escadas, feitas de paus e cana de bambu. Empurrei a porta, não tinha nada, estava vazia. Saímos da arrecadação, com muito cuidado, aproximámo-nos de uma casa, entrei e também não estava lá ninguém. 

Revistámos mais de dez casas, não vimos pessoas [6], só vestígios, maços de cigarro “Nô Pintcha”,  vazios, caixas de fósforos também vazias e muitos restos de cigarros. Não havia nada a fazer, só ir embora dali, sussurrou o alferes. E eu respondi, vou levar esta maca que estava na varanda. Dobrei-a e trouxe-a para eles saberem que tínhamos lá estado.

[ Imagemà esquerda: Marca de cigarros, de fabrico soviético, que eram distribuídos aos guerrilheiros do PAIGC, durante a guerra colonial / luta de libertação. "Nô pintcha", em crioulo, quer dizer Avante!... ]

Foto (e legenda): © Magalhães Ribeiro  (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Regressámos no mesmo caminho em que viemos até que já perto do local da emboscada, o alferes chamou pelo furriel Artur e mandou levantar a emboscada.

Seguimos para uma pequena tabanca, perto do local onde o grupo tinha estado emboscado. O alferes deu três tiros para o ar. Quando lá chegámos,  tinham fugido todos. O lume ainda estava a arder nas casas e, como estava frio, aquecemo-nos. Eram para aí 3 horas, mais coisa menos coisa. O chefe dessa tabanca apareceu, começámos a falar em futa-fula. Dissemos-lhe quem éramos, chamou a população, conversámos com eles e prometemos-lhes segurança.

Ao fim da primeira semana da nossa presença em Madina do Boé, tínhamos recebido uma informação de que um rapaz tinha sido preso pelo PAIGC, no local onde o nosso grupo tinha estado emboscado, Guilege do Boé. O rapaz vinha de Jarga Dongo e ia para Gobige, quando foi preso no cruzamento de estradas que vem de Madina de Boé, paralela à fronteira, até Contabane e Aldeia Formosa e passa por Gobige.

Vivia em Gobige com a irmã e o cunhado. Quando o pessoal do PAIGC lhe perguntou quem era, de onde vinha e para onde se dirigia, ele disse que vivia com a irmã e o cunhado, Jarga Bora, que, viemos a saber depois, era um colaborador clandestino do PAIGC.

Quando soubemos desta história enviámos um recado ao rapaz para ele vir falar connosco, e que viesse acompanhado pelo cunhado Jarga Bora. Passados vários dias, nem vieram nem tinham dito nada.

Contactámos o chefe da tabanca e dissemos-lhe que precisávamos de alguém que fosse a Gobige, dizer ao Jarga Bora que ainda estávamos à espera da resposta. E, que se não viesse, íamos nós lá. O chefe arranjou-nos um rapaz e quando chegámos à estrada vimos três homens de bicicleta. Como já nos conheciam, pararam e cumprimentámo-nos. Disseram que iam para Gobige. Então, já não precisávamos do rapaz, agradecemos-lhe e mandámo-lo regressar à tabanca. E aos homens que encontrámos na estrada pedimos-lhes que dessem o nosso recado ao Jarga Bora. Passados poucos minutos, chegaram as nossas viaturas e regressámos a Madina.

O dia e a noite estavam destinados ao nosso descanso, mas o alferes estava preocupado com a população de Dandum, que estava sem segurança na linha da fronteira, e disse-nos que seguíamos para lá ainda nesse dia e que regressávamos no dia seguinte.

Fomos então para Dandum e regressámos a Madina na manhã do dia seguinte [7]. Era dia de ração quente. Logo pela manhã, eu e o cabo Braima fomos a Dandum comprar quatro cabritos para o grupo, regressámos à nossa cozinha e quando começámos a tratar deles chegou o Mode Hure, o chefe da tabanca de Madina do Boé, acompanhado de Jarga Bora e do tal rapaz que tinha sido aprisionado pelo PAIGC. 

Quando o Alferes Saraiva chegou, vindo da loja do senhor Campos [8], informei-o do que o Jarga Bora me tinha acabado de contar. Que tinha encontrado uma caixa pequena que estava dentro de um buraco cavado na estrada onde passava roda de carro. O alferes disse logo, é mina, vamos lá levantar.

 Tu, Amadú, não vais, ficas a cozinhar.

Fiquei com uma equipa, os restantes foram todos. Passada uma hora, mais ou menos, vieram com a mina, todos a cantar. O alferes levantou 500 escudos, pagou a Jarga Bora e aproveitou para lhe pedir toda a colaboração.

No fim do almoço fui com o alferes no Unimog pequeno, para Dandum a casa do meu primo, Iaia Djaló, que vivia na tabanca e era o homem mais rico de toda a zona. Estivemos com ele até às 17h00, voltámos para Madina e quando estávamos a chegar, o Mode Hure, acompanhado de Jarga Bora, de Gobige, fez sinal para pararmos. Disse-nos o que o Jarga Bora nos queria pedir que o levassem a Gobige, porque tinha medo de regressar a pé. E o alferes, como ele nos tinha avisado da mina, disse a Mode Hure que ia pedir um carro maior no quartel, para levar escolta. Ficou assente que, em vez desta noite, partiríamos no dia seguinte de manhã, porque já não descansávamos há três noites.

Então, nessa manhã [9], o alferes disse ao furriel Artur que íamos dar um passeio a Gobige e que perguntasse ao pessoal quem queria ir, porque não valia a pena ir o grupo todo.nPreparámos duas viaturas. O alferes mandou o Jarga Bora e a mulher subirem para um Unimog 404 e depois distribuiu os nossos quinze homens pelas duas viaturas, quatro na viatura da frente, um Unimog 411, e onze na outra.

Saímos alegremente, vi o furriel Artur a cantar e fomos até Gobige. Quando chegámos, o homem ofereceu-nos um cesto grande cheio de laranjas. Depois de muita conversa, a certa altura, o alferes disse:

 Bem, vamos embora.

Mas o Jarga estava muito falador, não se calava. Só por volta das 13 horas arrancámos de regresso. A primeira viatura, a mais pequena, levava cinco homens e a segunda doze, contando com os condutores.

Duzentos ou trezentos metros andados ouvi um rebentamento [10] atrás de nós,
o alferes gritou “mina” e, quando saltei vi a viatura ainda no ar, colegas a cair, o depósito da gasolina a rebentar, a gasolina a sair, a arder para cima deles.

Entrámos no fogo também e arrastámos os companheiros. Não podíamos fazer muito mais.

 Amadú, toma conta disso    disse o alferes.

Enquanto ele e o condutor arrancavam no outro Unimog a toda a velocidade para Madina, a cerca de 30 e tal kms, pedir auxílio, eu, o António Kássimo e o Aquino [11], três soldados, ficámos ali a fazer o que podíamos. Passados uns minutos, o Carreira [12] despertou onde tinha caído e passámos a ser quatro, dois negros e dois brancos, a tomar conta da situação.

Jarga Bora e a população da tabanca observavam a cena. Jarga aproximou-se, perguntou-me pelo alferes e eu perguntei-lhe se ele tinha vindo ali para dar informações ao PAIGC. Foi-se embora, desapareceu com a população atrás.

Continuámos a tratar dos nossos feridos. Quatro soldados com dez companheiros deitados, dois dos quais carbonizados, o furriel Artur[13] e o cabo Ramiro [14].

O alferes tinha-me dito que se demorasse muito, devíamos recolher as armas e esconder-nos com elas no mato. Para quem vem de Gobige e vai para Madina do Boé, o capim e a montanha ficam à esquerda, do outro lado era uma mata cerrada.

Nem meia hora depois do rebentamento, o Kássimo ouviu alguém chamar pelo alferes. Entrámos no capim alto, cobria-nos, e depois de procurar encontrei o Ferreira sentado. Tinha sido projectado a mais de 10 metros. Eu não vi nada de ferimentos e perguntei-lhe o que tinha.

–  Amadu, os meus pés!

Olhei, eram esqueletos. Do joelho ao tornozelo ficou sem carne, só osso branco e do tornozelo para os pés, nada, tinha desaparecido tudo. O Aquino e o Carreira ajudaram-me a levá-lo para a beira dos outros camaradas moribundos e dos dois mortos carbonizados que, na altura, tínhamos. À nossa guarda estavam, nessa altura, dois mortos e sete feridos, todos muito graves. Continuámos a acudi-los no local. Um local de grande risco, uma autêntica terra de ninguém, horas à espera da escolta de socorro que vinha de trinta e tal kms. Estávamos sem rádio e em Madina só ficariam a saber do acontecido quando lá chegasse o alferes.

Estivemos sempre à espera que o PAIGC nos atacasse. Para mim, isso não aconteceu porque o Jarga Bora tinha muitas famílias a proteger e, se nos atacassem, com certeza as NT destruiriam a tabanca e os mantimentos para todas as famílias. Penso que foi ele, o Jarga, que pediu para não nos atacarem.

O terreno também não nos era favorável. Nós estávamos na berma da estrada, perto do local da mina. À nossa direita era uma mata cerrada, nem se via o sol, um atirador podia aproximar-se à queima-roupa sem dificuldade e eliminar-nos a todos. À nossa esquerda estava com capim muito alto, maior que a altura de um homem.

O Ferreira perguntou quando é que vinha o helicóptero. Pedi-lhe para ter calma que o alferes tinha ido tratar disso, que podia chegar a qualquer momento. Todos os feridos tinham queimaduras grandes, menos o Ferreira e nós não podíamos tirá-los do local. Até à chegada da coluna de socorro, já estava escuro, passava das 19h30, tinham morrido mais dois companheiros, o cabo Ferreira [15] e o soldado Godinho [16].

Quando o médico [17] mandou dar água a todos, o condutor morreu, mal acabou de beber. O cabo Braima Seidi, quando iniciámos a viagem de regresso, também morreu. Entrámos em Madina do Boé com quatro feridos graves [18] e oito [19] mortos, sete europeus e um guineense.

O alferes disse-me que falasse com o régulo e lhe pedisse cinco homens para me ajudarem a tomar conta do acampamento e do nosso material. Que de manhã tirávamos as nossas coisas. Passei lá a noite com esses homens. Quando, na manhã seguinte, regressei a Madina, os mortos e os feridos já tinham sido evacuados. Alguns foram para o Gabú e dali no Dakota para Bissau.

Ficámos três praças e o alferes. Uma Dornier 
 [DO-27]  foi-nos buscar e trouxe-nos para Bissau.

Nunca esquecerei o passeio a Gobige, como lhe chamou o alferes. Para nós, muçulmanos, evitamos ir de viagem nos dias 3, 13, 23 e na última quarta-feira de lunar, quanto mais ir para a guerra! São dias negros e aquela viagem realizou-se no dia treze de lunar.

Dois dias [20] depois realizou-se a cerimónia do funeral, na Sé de Bissau. Aos corpos dos Comandos, ainda se juntaram mais dois, de um furriel e de um milícia, que tinham morrido num ataque a Guilege.(***)

Não me posso esquecer do ambiente que pairou no enterro, a tristeza dos amigos e companheiros e o ar de satisfação que se via em alguns presentes na cerimónia.

A seguir descansámos uma semana.

(Continua)

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Notas do autor e do editor literário:

[1] Nota do editor: o Comandante do CTIG Brigadeiro Sá Carneiro tinha determinado o imediato destacamento “para Madina do Boé, em reforço do BCaç 506”, de um pelotão da CCaç 727, tendo aquele pelotão ficado instalado em Madina do Boé a partir de 18 de novembro de 1964, sob o comando do alferes miliciano António Angelino Teixeira Xavier.

[2] Diz-se 1º ou 2º dia de lunar, conforme se trata do 1º ou do 2º dia da lua, após o novilúnio. As noites não contam, só os dias.

[3] Nota do editor: alferes miliciano infantaria António Figueiredo Pinto que pertenceu à 3ª Companhia de Caçadores, em Nova Lamego, e aos BCaç 506 e 512 e BCav 705, todos sediados em Bafatá. (**)

[4] Guileje de Madina do Boé.

[5] Mode é senhor. Para nós, Futa-Fulas, quando um homem é respeitado, a partir de 20 anos de idade, ninguém o chama sem dizer Mode.

[6] Casas que estavam habitadas durante o dia. À noite, como o local era desprotegido, o PAIGC abandonava a tabanca. Esta informação foi-nos prestada, mais tarde, por um rapaz.

[7] Nota do editor: 27 de  novembro de 1964.

[8] Europeu casado com uma negra africana e que tinha uma loja onde comerciava tudo o que podia.

[9] Nota do editor: sábado, 28 de novembro de 1964.

[10] Junto a uma passagem de cascalho sobre o rio Gobige.

[11] Nota do editor: soldado António Aquino de Sousa

[12] Nota do editor: soldado António de Jesus Carreira

[13] Nota do editor: furriel miliciano Artur Pereira Pires

[14] Nota do editor: 1º cabo Ramiro de Jesus Silva

[15] Nota do editor: 1º cabo António Joaquim Vieira Ferreira.

[16] Nota do editor: soldado João Ramos Godinho.

[17] Nota do editor: Dr. Luiz Goes.  (****)

[18] Nota do editor: destes, o soldado comando Artur Mateus Martins, foi evacuado em 30 de novembro de 1964 do HM 241, Bissau, para Lisboa, HMP, onde veio a morrer em 8 de dezembro de 1964.

[19] Soldados José da Rocha Moreira, Manuel Coito Narciso, furriel mil. Artur Pereira Pires, 1ºs cabos Ramiro de Jesus Silva, António Joaquim Vieira Ferreira e Braima Seidi e soldados João Ramos Godinho, todos dos “Comandos” e o soldado condutor Eugénio Campos Ferreira, pertencente á CCS / BCaç599, que se voluntariou para levar a viatura.

[20] Nota do editor: o funeral realizou-se em 30 de novembro de 1964, na presença do Governador, tendo o cortejo fúnebre, com os féretros transportados individualmente em camiões Mercedes, saído da capela militar de Santa Luzia para o cemitério da cidade, onde ficaram sepultados.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

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Notas do editor:

(**) Vd. postes de:

4 de fevereiro de  2007 > Guiné 63/74 - P1493: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (2): Eu e o Furriel Comando João Parreira

20 de Dezembro de 2006> Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

(***)  O grupo de Comandos Fantasmas perderam 9 homens na região de Madina do Boé, antes de serem extintos: 8 homens em 28 de novembro de 1964 (junto do Rio Gobije, na estrada Madina do Boé para Contabane, a oeste); 1 homem em 8 de dezembro de 1965:

António Joaquim Vieira Pereira, 1º cabo corneteiro comando, natural de Santa Leocádia / Baião, inumado no cemitério de Santa Leocádia, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Pereira Pires (foto à direita), furriel miliciano comando, natural de S. Sebastião da Pedreira / Lisboa, inumado no cemitério da Ajuda em Lisboa, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Braima Seidi, 1º cabo comando,  natural de Buba / Fulacunda, inumado no Cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Eugénio Campos Ferreira (foto à esquerda), soldado condutor auto comando, natural de Vila Frescaínha (São Pedro) / Barcelos, e inumado no cemitério de Vila Frescaínha, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


João Ramos Godinho (foto à direita), soldado condutor auto comando, natural de Valverde / Coruche, e inumado no cemitério de Coruche, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

José da Rocha Moreira, soldado condutor auto comando, natural de Arcozelo / Vila Nova de Gaia, inumado no cemitério de Arcozelo, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Manuel Couto Narciso, soldado condutor auto comando, natural de Santa Catarina / Caldas da Rainha, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;

Ramiro de Jesus Silva, 1º cabo condutor auto comando, natural de Valongo (Colmeias) / Leiria, inumado no cemitério de Bissau – Guiné, tombou em contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane, em 28 de novembro de 1964;


Artur Mateus Martins (foto à direita), soldado cozinheiro comando, natural de Olhão, inumado no cemitério do Alto de S. João - Lisboa, faleceu, no Hospital Militar Principal (Lisboa), em 8 de dezembro de 1964, vítima de ferimentos recebidos em combate em 28 de novembro de 1964, no contacto com o IN, junto do Rio Gobige, na estrada Madina do Boé para Contabane.


(****) Vd. poste de 19 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10406: Evocando a trágica emboscada com mina, de 28 de novembro de 1964, em Madina do Boé, que vitimou 7 camaradas da equipa de comandos Os Fantasmas, alguns dos quais morreram nas mãos do alf mil médico Luiz Goes (1933-2012) e do alf mil António Pinto

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1384: Com o Alferes Comando Saraiva e com o médico e cantor Luiz Goes em Madina do Boé (António de Figueiredo Pinto)

Guiné 61/74 - P23836: Parabéns a você (2121): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2772 e CCAÇ 3477 (Nova Sintra, Guileje e Nhacra, 1970/72)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23832: Parabéns a você (2120): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 e Rep ACAP (Mansoa, Mansabá e Bissau, 1970/71)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23835: Blogoterapia (307): Nós e eles (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)


1. Mensagem do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66), com data de 30 de Novembro de 2022:


Nós e eles

C
ompanheiros, continuamos a escrever porque participámos “nela” e entendemos que este é o meio de fazer uma ampla gama de relatos ou histórias, que no fundo, no fundo, fornecem uma janela única para as complexidades de uma guerra que foi algo injusta e controversa e que nunca devia de ter existido.

No entanto, hoje, todas estas narrativas oferecem-nos um registo que talvez vá contribuir no futuro para que não se voltem a repetir, porque o profundo impacto da vivência numa guerra, embora isto sejam só memórias, algumas até distorcidas pela própria memória por vezes emotiva, pois foram cenas passadas há mais de meio século, mas representam a história que não deve de ser apagada, embora autobiográfica, contando o impacto tanto político com social de quem escreve, com a empatia de humanização, única e simplesmente.

E, fazendo hoje uma reflexão sobre o horror de um bombardeamento a uma aldeia rural, onde valia tudo, virava a cabeça a qualquer ser humano, porque horas depois, a terra ainda estava quente, havia alguns corpos queimados e tudo ao redor eram ruinas, nada restava daquela que tinha sido a residência de um guerrilheiro e o lugar onde estava a criar a sua família. Este cenário, dava-lhes uma força moral interior, quase sem limites. Essa era uma das razões porque os guerrilheiros lutavam pela libertação e independência do seu território, que era correr com os Europeus para fora de África.

E o mesmo se passava do nosso lado, quando de uma qualquer mortífera emboscada ou de um frequente ataque ao nosso aquartelamento e estar próximo da explosão de uma granada de morteiro calibre 90 e algum tempo depois ouvir o som do bater das lâminas de um helicóptero, que pousava no nosso aquartelamento, recolhendo o que restava do corpo de um combatente, nosso amigo e com o qual poucas horas antes tínhamos falado e convivido e…, agora seguia para a capital Bissau, embrulhado num camuflado sujo com o seu próprio sangue.

Resumindo, hoje um dos nossos principais argumentos é que, os jovens, que podem ser de ambos os sexos, podem ir para a guerra e lutar uns contra os outros, mas ainda assim, talvez tenham esperanças e sonhos semelhantes para um futuro, mas depois de se envolverem em combate, começam a compreender o desenvolvimento de uma perspectiva crítica fatal, com mortos e feridos para ambos os lados, sobre a qual eles podiam não ter pensado antes.

Em conclusão e numa última análise, a plataforma de narrativas tal como vamos fazendo, procuramos sempre afastar-nos dos debates sobre a moralidade da guerra, onde não existe moralidade nenhuma, e em vez disso, tentamos explorar questões de como os seres humanos podem compartilhar sentimentos de medo, angústia ou empatia e examinar as maneiras como a guerra se inscreve nas histórias de vida de pessoas como nós, indivíduos simples e comuns, que passaram pelos horrores da guerra e precisam de se reconciliar enquanto avaliam o que encontraram por anos e anos, após o fim daquele maldito conflito.

Porque quando voltámos à Europa, embora afectados, nunca o governo Português se lembrou de nós, nunca foi reverenciado o nosso retorno, ficámos refugiados, significativamente talvez piores, e nunca nos foi oferecida qualquer reeducação, aliviando o trauma passado naqueles dois longos anos num angustiante cenário de combate, que nos deixou muitas cicatrizes.

Enfim, lamentamos a maneira como o governo Português e algum publico há muito nos esqueceu, todavia, e muito pior, foram os deslocados pela guerra, que ainda hoje se envolvem constantemente com memórias de guerra, ao reassentamento e deslocamento a que foram obrigados para reconstruirem as suas vidas e identidades após uma migração forçada, como em parte foi o nosso caso, que acabámos refugiando-nos deste lado de cá do Atlântico.

Tony Borie,
Dezembro de 2022
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23780: Blogoterapia (306): Comando de Agrupamento N.º 16 (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16)

Guné 61/74 - P23834: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte VI: Bissá: as últimas fotos do destacamento e tabanca balanta















Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > s/d > c. 1970 > Tabanca e destacamento de Bissá.

Os militares que se vêem nas fotos possivelmente pertenciam à CCAÇ 2587 / BCAÇ 2885, que em 5mar70, rendendo a CArt 2411, assumiu a responsabilidade do subsector de Porto Gole, com um destacamento em Bissá. A tabanca era balanta.

Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71
).

Organização e seleção feitas pelo seu amigo e nosso camarada Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá e Mansoa) e Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, (Bissau) (Fev 1970/Dez 1971) (médico, foi diretor do Hospital de Tomar, 6 anos, de 1990 a 1996, e diretor clínico cumulativamente 3 anos, de 1994 a 1996, vivendo então em Abrantes; hoje vive em Tomar).

O José Torres Neves é missionário da Consolata, ainda no ativo. Vai fazer 86 anos. Vive num PALOP. Esteve no CTIG, como capelão de 7/5/1969 a 3/3/1971. Os capelães eram, em geral, graduados em alferes.

As fotos (de um álbum com cerca de 200 imagens) estão a ser enviadas, não por ordem cronológica, mas por localidade, aquartelamentos ou destacamentos do sector de Mansoa. Sobre Bissá, temos já mais de 3 dezenas de referências no nosso blogue. A tabanca (e o destacamento) de Bissá ficava a oste de Porto Gole. (Vd. carta de Fulacanda, 1955, escala 1/50 
mil.)

As fotos de hoje, enviadas pelo Ernestino Caniço, em 29 de outubro passado, são "o remanescente das fotos do álbum do Padre Zé Neves, relativamente a Bissá".
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Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné


1. Parte IV da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


IV - Guiné…

Dia 31 de Outubro de 1970, outra data marcante, lá estamos, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o
nde o velho Carvalho Araújo nos aguardava para o embarque rumo à Guiné.

O agora capitão Assunção e Silva, promovido nessa altura, pôde confirmar a falta de mais dois graduados, o Cunha e o Rosa, nessa altura, já em França… Mas o Neves e o Cruz estavam presentes…

O capitão Assunção e Silva era conhecido, em Lamego, onde tinha dado instrução, por ‘assassino das falinhas mansas’, pelo baixo tom de voz e porque atingiu dois instruendos, durante a instrução, com bala real de G3.

Eu poderia ter pedido adiamento da ida para a Guiné, pois o meu irmão ainda estava em Moçambique, nesta altura, embora por mais dois ou três meses. No entanto, isso significaria mais tempo de serviço militar, para mim, abandonar a companhia já formada e ser mobilizado, novamente, em rendição individual, logo que o meu irmão chegasse.

Cerca do meio-dia, o Carvalho Araújo apita e começa a arrastar-se pelo Tejo, deixando aqueles lenços brancos a esvoaçar e as lágrimas das gentes a correr pelas tristes faces. A navegar, começámos a sentir uma certa instabilidade no navio, bastante de lado, água e lamas pelos corredores e pelos camarotes que utilizávamos, as portas dos corredores arrancadas para passarem a servir de passadeiras, sobre a água e lamas, uma maravilha. E eu que detestava barcos, não pelos barcos, em si, mas pela água, pois não conseguia ver o que estava lá em baixo…

Tudo indicava que não conseguiríamos comer com sossego e isso veio a verificar-se. Além do enjoo que se instalou, os tabuleiros com a comida deslizavam para todo o lado, ao sabor dos balanços do navio. Nos porões, onde era acondicionado o gado dos Açores, durante anos, os soldados tentavam descansar, com um enorme esforço para se alhearem daqueles odores impregnados, sem alternativa.

Ainda não tínhamos completado um dia de viagem, é-me entregue um telegrama. O sentido apurado de mãe e o facto de ter desconfiado da minha despedida, diferente do habitual, no seu dia de aniversário, levou-a a telefonar para o Campo Militar de Santa Margarida e correr tudo até lhe ser dito que eu tinha partido para a Guiné, já a navegar, no Carvalho Araújo! Aquele telegrama da minha mãe deixou-me um pouco triste mas, ao mesmo tempo, cheio de força para enfrentar a aventura que me esperava.

Um dia de felicidade, quando fizemos a escala em Cabo Verde, ilha de S. Vicente, cidade do Mindelo, onde estivemos cerca de doze horas, para abastecer o navio.

Antes de acostarmos ao cais, os miúdos mergulhavam nas águas transparentes daquele mar livre de poluição, para apanharem as moedas com a boca. Mas a felicidade acabou por ser aparente, durante aquelas horas pois, apesar de termos tido a possibilidade de comer bem e relaxar um pouco, o cenário encontrado deixou-nos infelizes, frustrados, revoltados.

Entrámos na cidade - aquilo era uma cidade?! - E procurámos os correios e um sítio onde houvesse jornais ou qualquer coisa que nos desse notícias. Estou nos correios, a preparar um telegrama para a Metrópole, quando sinto alguém a mexer-me nos pés: era um miúdo dos seus quinze anos a limpar-me os sapatos e com material para engraxar.

Disse-lhe que não precisava, pois havia muito pó e iria sujar-me, logo a seguir. Logo me respondeu que precisava de ajuda, que tinha o quinto ano, mas não havia trabalho. Dei-lhe uns escudos, que trocaria por pesos, a moeda local.

A casa do governador, uma moradia de traça tropical, um liceu novo e um hotel novo, tudo o que sobressaía daquele mundo de casinhas de madeira, algumas transformadas em cafés, com esplanadas, e muito, muito pó castanho avermelhado pelo ar. Ficção, pensava eu, mas as cabras e vacas passeavam pelas ruas e comiam papel de jornal!

O pior deste cenário triste era a prostituição, como é costume dizer-se, porta sim, porta sim, ao longo daquelas ruelas de terra e pó castanho, sinal da necessidade instalada.

Hora do almoço e sou aconselhado a comer no hotel. Lagosta enorme, Pesos 70$00 (Esc 70$00 = € 0,35). Garrafa de Casal Garcia, Pesos 120$00 (Esc 120$00 = € 0,60). Claro que os produtos atingem preços altos, mais por força do custo do transporte.

Cenários que foram mal reconstruídos e continuaram mal tratados, podendo ter tido outro destino, principalmente, no acompanhamento dos mais pequenos, aqueles que mais sofrem, pois têm de ajudar os pais, pobres e sem horizonte. 
Aliás, tivemos esse exemplo por cá, em certas zonas do país, como já falámos.

Viagem retomada, restavam-nos as cartas, lerpa, sete e meio e montinho, principalmente, com muito dinheiro a rolar na nossa frente. Final do dia, já noite, notámos a falta do nosso enfermeiro, o Vítor Coelho. De um lado para o outro, corremos tudo e nada dele. Continuámos, até que, num camarote, um rabo e umas pernas saíam de uma janelinha redonda, constatando que o resto do corpo estava do lado de fora do navio.

Era o Vítor Coelho, debruçado para o lado de fora, com um cabo de vassoura na mão, a que tinha atado uma faca de mato, em ângulo recto, a tentar apanhar um peixe voador. Só o Vítor Coelho poderia lembrar-se disto!…

Algum tempo depois, passámos pela capital, a cidade da Praia, na ilha de Santiago, com pena de não ter sido possível conhecer, pois era a parte mais avançada do arquipélago. Limitámo-nos a apreciar, de longe…

No decorrer da viagem, fomos dando algum conforto moral aos soldados, pois eram os que mais mereciam, dadas as circunstâncias em que viajavam. Comer, uma grande dificuldade, pois tudo andava às voltas…

E a viagem continuava longa, como nos tinham dito. O que não nos disseram foi que o navio andava de lado, com água nos corredores e camarotes pelo meio da perna, lama, probabilidade de incêndio, etc.

E dez dias passaram, até que chegámos ao porto de Bissau. Não nos deixaram desembarcar, claro, pois o anoitecer estava perto e tornava-se perigoso.

Sabe uma coisa, Daniel? Tenho pena de não ter preparado uma garrafa de vidro, com uma mensagem dentro, e atirá-la borda fora, lá no alto mar, só para ver onde iria ter e se teria resposta, como tantos fizeram…

Porto de Bissau, oito da manhã, toca a sair do navio e entrar nas viaturas militares que ali nos aguardavam, rumo ao Depósito de Adidos, em Brá, perto do aeroporto de Bissau.
Não poderia imaginar que já éramos conhecidos ou falados, mas logo nos disseram:
- Ah, são a 2796, a que vai para a colónia penal da Guiné?!

Como acabávamos de chegar, logo, designados ‘periquitos’, eu pensei logo que poderia ser uma espécie de praxe, para nos amedrontar. Organizámos o ‘acampamento’, ajudando os nossos homens na distribuição dos espaços e das tendas de campanha, após o que nos deram uma refeição rápida, na cantina do Depósito de Adidos.

Para os graduados, tendas individuais, um colchão pneumático, já com um ou outro gomo rasgado, mas era melhor do que nada. Silêncio, luzes de presença e segurança, ali estávamos a tentar descansar, já sentindo um certo cheiro a pó africano.

De repente, sinto qualquer coisa nas traseiras da tenda, que davam para a vedação de arame farpado, um som que correspondia a corte na lona. Mesmo na penumbra, vejo uma lâmina a entrar e a sair, lentamente, com cuidado, a cortar a lona, junto ao chão de terra castanha com tom avermelhado.

Consigo resvalar para o lado contrário, a saída da tenda, e rastejar de faca de mato na mão, a única coisa de defesa que tinha, pois ainda não tínhamos recebido as armas. Quando chego ao lado de trás, só vejo um vulto, africano, a correr em direcção ao arame farpado, dando um salto de peixe na primeira linha e novo salto na segunda linha, desaparecendo no escuro…

Logo chamei a atenção do sargento Moreira, no sentido de providenciar a distribuição de armas para o dia seguinte, logo de manhã, pois não se sabia que mais nos estava reservado, mesmo dentro do Depósito de Adidos.

Entretanto, tínhamos de aguardar disponibilidade de LDG (lancha de desembarque grande), com transbordo para LDM’s (lancha de desembarque média) e para LDP’s (lancha de desembarque pequena) ou batelões, caso apanhássemos a maré vazia, um grande problema.

O Daniel está a ver que lanchas são estas, as tais utilizadas no desembarque das forças aliadas, EUA, Inglaterra, França Livre e aliados, na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, considerada a maior invasão marítima da história, episódio que quase era dos nossos tempos. Parece que partiram todos de vários portos de Inglaterra, atravessaram o Canal da Mancha e invadiram a França ocupada pelos alemães, a Normandia.

Como eu ia dizendo, enquanto esperávamos pela hora da partida para o Sul, dava para umas visitas ali perto, Engenharia, Força Aérea, Comandos e à cidade, onde podíamos comer e beber umas coisas melhores do que no quartel, enquanto não nos avisavam da hora de partida para Gadamael Porto.

Na Força Aérea, encontrei um amigo da Figueira da Foz, o Flórido, que estava a acabar a comissão, logo, a preparar o regresso à Metrópole. Ficou contente por me ver e, ao mesmo tempo, preocupado comigo, quando lhe respondi que ia para Gadamael Porto, e isso respondeu à minha dúvida sobre o que nos tinham dito quando chegámos, ‘colónia penal…’.

Na cidade, além de tomarmos contacto com alguns locais que nos diziam interessantes e úteis, sinceramente, nada de jeito, tivemos a primeira noção de realidades estranhas, como produtos de consumo corrente com preços distintos, conforme procedentes da Metrópole ou importados, ou produtos inexistentes, sem justificação, para nós. Por exemplo, não havia água de Castelo, sumos e refrigerantes, logo, nacionais.

Havia água Perrier, coca-cola, logo, estrangeiras. Whisky, Gin, Licores de Whisky, por exemplo, imensas marcas, tudo original, importado - mais baratos do que qualquer bebida idêntica na Metrópole. Na esplanada de um café, um cálice balão de Whisky, Pesos 2,50 e uma água pequena Perrier, Pesos 7,50.

Os armazéns e retalho, principalmente, propriedade de portugueses, embora alguns de propriedade libanesa, pela tradição de comércio instalado, que era feito entre os países africanos, passando pela Guiné Conacry, atravessando a Guiné Bissau e seguindo pelo Senegal.

Vasta gama de equipamentos de alta-fidelidade e fotografia, pelo que adquiri um leitor gravador Hitachi, de boa qualidade, e uma máquina fotográfica Olympus.

Ainda me recordo de algumas casas, como a Casa Ultramarina, ligada ao BNU, a Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF, a Casa António Pinto, conhecida por Pintosinho.

E fomos sabendo de algumas das etnias indígenas que encontraríamos pela Guiné, como Bailundos, Nalús, Sossos, Manjacos, Futa-Fulas, Fulas, Papeis, Balantas, Mandingas, Beafadas, Bijagós, Mancanhas, Felupes, Banhus, Tandas… Cada etnia tinha a sua própria cultura e estou a lembrar-me dos Manjacos que se distinguiam pelos panos que produziam em teares artesanais, os panos coloridos muito apreciados, as danças e sons muito característicos, só a título de exemplo.

E, apesar da grande confidencialidade, conseguimos um ’cheirinho’ sobre a razão da demora em partirmos para Gadamael Porto: qualquer coisa relacionada com as tais lanchas, ao mesmo tempo que davam a entender qualquer coisa de operações em curso, enfim, coisas que nada nos diziam, mas tinham todo o sentido, pelo que veio, a seguir…


(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 29 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha

Guiné 61/74 - P23832: Parabéns a você (2120): Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208 e Rep ACAP (Mansoa, Mansabá e Bissau, 1970/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23816: Parabéns a você (2119): Jorge Teixeira, ex-Fur Mil Art da CART 2412 (Bigene, Guidaje e Barro, 1968/70) e Manuel Lima Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3476 (Canjambari e Dugal, 1971/73)

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Temos três versões documentais, René Pélissier consultou os arquivos franceses, o Capitão Velez Caroço elaborou relatórios sobre as suas idas e vindas acompanhando uma Comissão Franco-Portuguesa à cata de provas de que o avião francês aterrara em solo da colónia portuguesa, e temos as cartas do chefe do BNU de Bissau para a administração em Lisboa. O historiador francês sobrecarrega de pormenores as peripécias das missões vindas do Senegal à Guiné portuguesa e a brutalidade dos interrogatórios aos Felupes para apurar se efetivamente o avião desaparecido caíra em chão Felupe, esta etnia que dava sobejas provas de revolta, vendo tanta intimidação, desataram a fugir para os pântanos e para a colónia francesa; o Capitão Velez Caroço desmonta a argumentação de que o avião francês pudesse ter aterrado em solo da colónia portuguesa, e chegamos à tragicomédia de se percorrer os Bijagós para saber se os alemães tinham raptado os franceses...; o gerente do BNU revela sobretudo a preocupação de que era indispensável pôr cobro aos desmandos dos Felupes, declaradamente insubmissos, a verdade é que findo este período de revoltas dever-se-á ter chegado a um acordo tácito de que eles jamais provocariam as autoridades coloniais, ficando num discreto regime de uma quase auto-gestão, como se comprovou com o seu procedimento durante o período da luta armada.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3)

Mário Beja Santos

Aquele ano de 1933 em que ocorreu o desaparecimento do avião do piloto Gaté foi praticamente dominado pela chamada revolta dos Felupes. Na investigação a que procedi no então Arquivo Histórico do BNU, encontrei um telegrama datado de 10 de novembro desse ano, provém da administração em Lisboa, com o seguinte teor: “Este telegrama é absolutamente confidencial e só poderá ser decifrado pelo gerente devendo na sua ausência ser devolvido indecifrado ao expedidor – telegrafe-se se o gentio se revoltou – telegrafe-se se ordem restabelecida quem como foi sufocada a alteração. Telegrafe as notícias que puder pormenorizando. Este telegrama é absolutamente confidencial para toda e qualquer pessoa seja qual for a sua categoria”.
No dia 13, o gerente de Bissau envia carta detalhada ao administrador do BNU:
“Há cerca de 3 meses levantou voo de Dacar, com destino a Ziguinchor, um avião francês tripulado pelo aviador Gatti (na verdade, o seu nome era Gaté) acompanhado de um observador. Por qualquer razão desconhecida – diz-se que fugindo a um tornado, o avião desviou-se da sua rota e presume-se que por falta de gasolina tenha caído em território desta colónia, a uns 40 ou 50 quilómetros da fronteira Norte, na região dos Felupes, área do posto civil de Susana, circunscrição de Canchungo.
O governo francês, supondo que o avião tenha de facto caído nesta região, solicitou do nosso que mandasse proceder às necessárias pesquisas. Diz-se que essas pesquisas foram efetuadas sem resultado. Há 20 dias, pouco mais ou menos, apareceram na área do posto de Susana a mulher do aviador desaparecido e uma outra senhora francesa acompanhada de um sargento aviador francês e ainda de um outro indivíduo que se dizia comerciante de Dacar, para fazerem por sua vez, novas pesquisas.

O administrador da circunscrição não consentiu nessas diligências sem autorização superior, essa equipa francesa foi a Bolama conferenciar com o governador, regressando ao posto de Susana acompanhada pelo ajudante de campo deste.
Em breve começaram a circular boatos sobre o aparecimento de vestígios do avião e dois ou três dias depois seguia também para Susana o Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, capitão Velez Caroço. Afirma-se que este oficial, depois de iniciadas novas pesquisas, notando certo retraimento do gentio, receando qualquer agressão dos Felupes que desde sempre se têm mantido mais ou menos rebeldes, pagando o imposto positivamente quando e como quer, sem que lhes tenha sido aplicado o corretivo necessário por falta de recursos, cobardia ou desleixo, resolveu, de acordo com o governador, não continuar as suas diligências sem se fazer acompanhar de uma pequena força militar.

No dia seguinte ao da ida daqueles oficiais a Bolama, regressaram a Bissau com um pequeno contingente, e daqui partiram de novo para Susana, armados e municiados. Os Felupes receberam-nos hostilmente, travando-se um combate em que morreram dois soldados, ficando vários feridos. O facto foi comunicado ao governador, seguindo imediatamente para o local, com reforços, o Capitão Sinel de Cordes, Comandante da Polícia. Chegado este a Susana, e posto ocorrente do que se tinha passado, entendeu, e muitíssimo bem, que era preciso castigar energicamente os revoltosos, tanto mais que já no ano passado, na mesma região, tinham cortado a cabeça a cinco soldados”
.

O relatório do chefe da delegação em Bissau do BNU é bastante minucioso, convocam-se Fulas para coadjuvarem as tropas regulares, dirigem-se a Jufunco, a povoação revoltada, aguardam-se ainda centenas de Fulas vindos de Bambadinca. Os rumores eram os mais desencontrados: que aos aviadores desaparecidos tinham sido cortadas as cabeças, por exemplo. Iniciada a batida, os revoltosos refugiavam-se nos pântanos, o governador seguiu para o campo de operações, voltou dias depois a Bissau, o chefe da delegação falou com ele, ficou informado que o gentio se tinha posto em fuga e que o governador tinha dado por fim a operação, deixando apenas na região uma pequena força para policiamento.

O chefe da delegação mostra-se contrariado coma decisão do governador, a região dos Felupes era uma verdadeira dor de cabeça. “A ação das nossas tropas está longe, muito longe mesmo, segundo as informações que temos, de se poder considerar decisiva. Ainda nos últimos dias foi assaltada pelos rebeldes uma camioneta que conduzia auxiliares, escapando, por milagre, o condutor do carro; aos outros foi a todos cortada a cabeça e membros e os troncos decapitados deixados na estrada alinhados, numa demonstração de ameaça e requintada selvajaria. Não desejamos comentar a medida governamental, porque isso não está na nossa índole, nem temos fundamento bastante para considerar desastrosa a ordem de retirada. A saída das nossas tropas da região revoltada sem terem infligido um exemplar castigo aos revoltosos é desprestigiante e será mal interpretada pelos vizinhos franceses, que estabeleceram postos militares ao longo da nossa fronteira.
Sabe-se que em Ziguinchor um francês que acompanhou as duas senhoras a que atrás fizemos menção ao referir-se a nossa ação nas pesquisas do avião desaparecido nos alcunhou de cobardes. Talvez tenha sido por isso que o Capitão Sinel de Cordes, calmo e sereno, mas decidido, tivesse a intenção de acabar de vez com a lenda dos Felupes, lenda que tem custado a vida a soldados e auxiliares indígenas”
.

Mais tarde, o gerente de Bissau volta a escrever uma carta para Lisboa, informando que se encontra na região dos Felupes apenas um oficial, o Tenente Dores Santos à frente de um destacamento, não se tinham registado até então novos atos de insubordinação ativa. “Consta que os chefes revoltosos – Alfredo e Coelho – das tabancas de Jufunco e Egine, respetivamente, se refugiaram com parte da sua gente no território francês, sendo ambos presos pelas autoridades respetivas. Iniciaram-se diligências oficiosas junto daquelas autoridades para que, às nossas, esses chefes fossem entregues”.

E mais não sabemos, jamais se voltará a encontrar documentação sobre o desaparecimento do avião, fica-se com um quadro claro de que no início da década de 1930 a região Felupe dava provas evidentes de insubmissão, tudo aponta para declarações forjadas de que o avião francês viera aterrar em território da Guiné portuguesa, no decurso do envio de tropas terá havido interrogatórios cruéis e altamente intimidantes, no somatório de todas estas rebeliões os Felupes entenderam que não possuíam capacidade para ripostar contra a autoridade colonial, terá sido essa a razão do chamado ensimesmamento dos Felupes, para lhes ser reconhecida a sua autonomia nem com o PAIGC pactuaram, mantiveram-se à margem, salvo exceções no período da luta armada. Assim se põe termo a este episódio rocambolesco de um avião desaparecido em território insubmisso.

Imagem do BNU em Bolama, ao tempo do desaparecimento do avião do piloto Gaté
Avião Potez-Salmson
Dança do choro, Susana, década de 1960
Dacar, Senegal, anos 1930
Uma mais que colorida festa Felupe, imagem de Eta Oliveira (do Wattpad), com a devida vénia
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Nota do editor

Postes anteriores da série de:

16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)
e
23 DE NOVEMBRO DE 2022 Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23830: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (54): A nossa geração que foi "a salto" para a França, nas aldeias da raia d' Espanha


Antº Rosinha, II Encontro Nacional
da Tabanca Grande,Pombal, 2007.
Foto: LG
 1. Mensagem de António Rosinha, o "nosso mais velho", "colon" em Angola (desde os anos 50, e onde fez a tropa e a guerra, em 1961/62), "retornado" em 1975, emigrante no Brasil, cooperante na Guiné-Bissau (como topógrafo da TECNIL, em 1987/93), um dos últimos dos nossos "africanistas",  membro da Tabanca Grande desde 29/11/2006 (ou seja, "um senhor senador"):

Data - 28 nov 2022 17:32  

Assunto - A nossa geração que foi "a salto" para a França, nas aldeias da raia d'Espanha


Desde os anos 50 até 1961 já havia "passadores" para a França, em todas as fronteiras da Beira Alta, Trás-os-Montes e Alto Douro.

Em alguns concelhos mais que noutros, logo a seguir à I Grande Guerra, já se ia para a França pelo processo do "a salto"..

Só que, a partir de 1961  acelerou essa actividade, e talvez, mesmo sem estatísticas, se possa dizer sem exagero que 50% de jovens entre os 18 e os 20 anos foi para a França, nas inúmeras aldeias, hoje desertificadas em maioria, dessas regiões do interior Beirão e Transmontano.

Será que a Guerra do Ultramar não podia mesmo dispensar aquela quantidade de soldados?

Era já um hábito muito enraizado, semi-clandestino, bem junto às fronteiras espanholas, a ida para a França..

Já era a alternativa ao Brasil e outras Américas a ida "a salto"  para a França ou nos porões da CNN (Compamhia Nacional de Navegação)  e CCN (Companhia Colonial de Navegaçãpo) para Angola e Moçambique e mesmo para África do Sul e Congo Belga..

As nossas velhas aldeias do interior, onde podia haver muita "carne para canhão", para a Guerra do Ultramar, 3, 4, e mais, filhos varões por família, na inspecção anual,  que podiam ser 20 ou 30 por aldeia, por ano,.uma grande parte ia para a França, por meio de "passadores", muitíssimo pouco clandestinos, pois eram figuras bem públicas nas regiões fronteiriças.

Como a partir de 61 tudo era apto para a guerra, ao fim de 13 anos, exceptuando amparos de família, e não sobrepondo dois ou mais irmãos, qualquer aldeia do interior poderia ter fornecido média de 20 por ano vezes 13 anos eram 260.

Só em fardamento, G3 e viagens, reduzindo para metade (praças havia muitas), era uma boa poupança..
Havia escassez era de capitães, não de praças.

Se de 260, 130 fossem para a França, farda, viagens sem custos para o Estado, e envio de remessas mensais, continhas à Salazar...será que os "passadores" não mereciam uma condecoração ou um prémio? Aliás, eles pagavam-se bem sem correr riscos cá em Portugal, e na fronteira francesa os riscos eram apenas para os emigrantes.

São muitos milhares das fronteiras beirãs e transmontanas que hoje, já reformados da França, a maioria com reformas completas, eles e as esposas também, são eles que dinamizam um pouco as velhas aldeias, pelo verão, pelos finados, Natal e Páscoa, aquelas aldeias desertificadas.

E ainda fazem um esforço enorme para entusiasmar os filhos e netos, alguns já franceses, a virem a terrinha dos pais, adquirindo apartamentos e casas junto às praias, que é mais convidativo para os jovens.

Vêm mais assiduamente os emigrantes reformados da França às suas aldeias,do que aqueles que foram à guerra e fizeram a vida em Lisboa ou Porto, como que são emigrantes também.

Foi com muito esforço que estes "franceses" fizeram a sua vida na França, não só pela língua, a maioria sem estudos, máximo a velha 4ª classe, e sujeitos, como qualquer emigrante, a trabalhos que o cidadão natural rejeita.

Salário, evidentemente o mínimo, a não ser quando adquiria alguma especialização.

Era à base de privações que conseguiram grande parte das economias para construir casa nova na aldeia, aldrabados muitas vezes por empreiteiros sem escrúpulos, fazer alguns depósitos bancários, aldrabados muitas vezes também por banqueiros e gerentes sem escrúpulos. e vivendo em condições degradadas em França para evitar pagar renda de casa.

Provavelmente todos os concelhos ao longo das fronteiras beirãs e transmontanas têm o seu monumento, pequeno ou mais vistoso com a lista por aldeias, dos seus filhos que morreram na Guerra do Ultramar.

Dalgumas aldeias talvez não tenha morrido ninguém em África, pois foi mais provável um ou outro terem morrido nas estradas de Espanha, pelas vacances, lançados em grandes carros, para matar saudades.

Estes jovens refratários, ou desertores ou que simplesmente já estavam para lá antes das inspecções, e não regressaram, fariam mesmo falta naquela guerra? Será que se notou a falta de soldados rasos?

Sim,  rasos, atendendo que a maioria dos jovens de que falo, "a salto", andaram apenas na escola primária, os que os pais dispensavam da vida do campo, nem todos souberam o que era a reguada do professor.

Lembro que, embora o pessoal saísse à socapa para a França, não iam avisar no Edital à porta da igreja ao Domingo, evidentemente, a sua partida, mas aquela clandestinidade era muito mal disfarçada, daí, até desde o regedor, o presidente da freguesia e algum da União Nacional desde o "passador",  indivíduo grandemente bem relacionado, até a algum bufo da PIDE, era tudo mais ou menos conivente.

Com mais todos esses mancebos em África, o resultado final da guerra era o mesmo que foi.

Embora este êxodo tenha ajudado à desertificação,  esta era tão inevitável que, mesmo com o fim da guerra, continuou, em quase todas as velhas aldeias daquelas regiões. São raríssimas as excepções em que a desertificação não acontece.

Mas,  se muitos os sexagenários e septuagenários reformados, não regressam definitivamente ás suas aldeias, deve-se a algumas explicações que eles dão:

  • Uma, são os filhos e netos já radicados definitivamente na França;
  • Outra explicação deles, é que em Portugal é tudo muito complicado.

Eu compreendo-os na perfeição nestas duas explicações.

E é uma pena que existam estas duas razões para eles não regressarem, principalmente a segunda. que é "estupidamente" verdadeira e real para esta gente, eu próprio senti ao fim de 5 anos no Brasil e um ou outro na Guiné.

Para tratar qualquer coisa (Registos, procurações, Câmaras, passaportes, saúde, etc.) em curto espaço das férias, só à base de "cunha", a velha corrupçãozinha. (Parece que actualmente alguma coisa terá melhorado, a anti-cunha.)

Quando se põe a questão da imigração/emigração actual no mundo, principalmente a clandestina como foi o caso desta que falo para a França, a única clandestina, costuma-se fazer comparações, e até semelhanças. Mas as semelhanças são muito ténues.

Era bom que o português não precisasse mais de emigrar, embora muitas vezes já seja por "tradição".

Antº Rosinha

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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23703: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (53): A Sebastiana Valadas (1º episódio da série da SIC, "Despojos de Guerra") e os "cantineiros do mato" em Angola

Guiné 61/74 - P23829: Tabanca dos Emiratos (11): Longe e perto de nós... Afinal, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca ... é Grande (Jorge Araújo, Abu Dhabi)





Emiratos Árabes Unidos > Abu Dhabi > 2022 > Mercado do Peixe > Uma banca de "encher o olho... e o estômago",,,


Fotos (e legenda): © Jorge Araújo (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); nosso coeditor, a viver neste momento em Abu Dhabi, Emiratos Árabes Unidos. Tem mais  de 320 referências no nosso blogue. É autor de várias séries: "Tabanca dos Emiratos", "Memórias cruzadas...", "(D)o outro lado combate"...


1. Mensagem de Jorge Araújo, que fez anos no dia 10 do corrente, e que felizmente está ao pé da sua querida Maria, mas infelizmente a 6 mil quilómetros de nós ("by air"), mesmo que ele não se esqueça da malta da Tabanca Grande (aqui está ao alcance de um clique):


Data - segunda, 7/11/2022, 10:45

Assunto . Publicação da série "Enfermeiros... Com Cruz de Guerra"... Parte IX 


Caro Luís, bom dia desde o deserto (*).

Em primeiro lugar, espero que continues a recuperar da tua saúde física e que uma melhor mobilidade te dê mais conforto no teu quotidiano.

Em segundo lugar, dar-te conta de que esta outra (e nova) "comissão de serviço" está a ser diferente das anteriores, uma vez que já não existem impedimentos de circular por efeito da pandemia. Esta situação em muito tem contribuído para a inexistência de um plano de actividades, uma vez que a cultura (a que aqui predomina) é que tudo pode mudar de um momento para outro.

Em terceiro lugar, aproveito para te enviar mais um fragmento - o IX - da série dos "Enfermeiros", concluído ontem entre o almoço no "Mercado do Peixe", em Abu Dhabi, e o Jantar mais aligeirado, como manda a minha nutricionista.

Fica bem, e até breve.

Com um grande abraço de amizade,
Jorge Araújo + Maria João.

2. Nova menssagem, com data de hoje, às 7h12:


Já vi o poste que publicaste hoje relacionado com as minhas novas experiências... Obrigado.

Porque as duas fotos dizem pouco sobre o que é o novo Mercado do Peixe de Abu Dhabi, inaugurado no passado dia 26 de Julho de 2022, portanto há quatro meses, tomei a iniciativa de te enviar mais algumas, caso queiras incluí-las nesse texto.

É de referir que esse novo Mercado tem 44 bancas de venda e limpeza do peixe, onde em cada uma existe uma vasta montra de espécies, como se pode confirmar nas imagens anexas, e que ocupam todo o espaço central do edifício. 

O pescado/marisco pode ser adquirido directamente pelo consumidor ou, em alternativa, pode escolher um dos oito restaurantes existentes ao seu redor, que o prepara ao gosto de cada um. Quer isto dizer que cada restaurante serve o pescado/marisco existente no mercado que, depois, é grelhado em espaços próprios existentes no complexo. Cada utente/consumidor pode, ainda, comprar o peixe/marisco e mandá-lo grelhar nos locais reservados para esse efeito.

Boa semana para todos, com saúde. Jorge Araújo.









EAU > Abu Dhabi > Mercado de peixe...


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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 13 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23612: Tabanca dos Emiratos (10): regresso às aulas e retoma dos trabalhos (es)forçados... (Jorge Araújo, Abu Dhabi)