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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27230: Timor-Leste: passado e presente (32): a rendição dos japoneses foi há oitenta anos, foram-se embora, sem castigo, lá deixando mais de 40 mil cadáveres de timorenses, portugueses, australianos, holandeses...




Bandeira do Império do Sol Nascente: símbolo de terror no Pacífico, durante a II Guerra Mundial , e mais exatamente entre 7 de dezembro de 1941 e 2 de setembro de 1945 (data da rendição oficial e incondicional do Japão).  

Em Timor-Leste, invadido e ocupado desde 19 de fevereiro de 1942,  completamente isolados do mundo desde julho de 1943, sem telecomunicações, os habitantes  só souberam da notícia do fim da II Grande Guerra e do armistício em 1 de setembro de 1945 (!)... As tropas ocupantes só começaram a retirar da ilha a 6 de setembro (*).

Portugal recuperou a soberania da Timor, ao fim de três anos e meio de ocupação do território pelas tropas japonesas. Morreram perto de uma centena de portugueses, europeus e "liurais" (régulos timorenses, fiéis a Portugal), em combate, assassinados, vítimas de doença, ou desaparecidos no mato, sem falar das muitas dezenas e dezenas de milhares de timorenses anónimos (no mínimo, 40 mil).

O Governador, cap inf Ferreira Carvalho, rapidamente decidiu a reocupação da ilha, e o restabelecimento da autoridade portuguesa, o que foi feito em tempo tempo-recorde de 14 dias.


1. A ocupação japonesa de Timor-Leste, então colónia portuguesa, durante a II Guerra Mundial,  decorreu entre fevereiro de 1942 e setembro de 1945. Foi marcada por violência extrema, genocídio,  guerrilha, colaboração e imenso sofrimento para a população local (incluindo a pequena comunidade portuguesa, constituida por desterrados, missionários católicos, funcionários civis e escassos militares).

Apesar da neutralidade de Portugal durante a II Guerra Mundial, Timor-Leste tornou-se um campo de batalha estratégico no teatro do Pacífico, principalmente devido à sua proximidade com a Austrália (Dili ficava a c. 700 km de Darwin).

Passam, este mês, 80 anos desde o fim da guerra do Pacifico (7 de dezembro de 1941 - 2 de setembro de 1945). Os japoneses tiveram a infelicidade de ter um governo militarista e  totalitário e os timorenses o azar de ficarem na rota das suas loucas ambições imperiais de subjugar toda a Ásia e a Oceania...


 Ocupação de Timor-Leste na II Guerra Mundial (1942-1945)> Principais factos e datas


A invasão japonesa ocorreu na noite de 19 para 20 de fevereiro de 1942, com desembarque de cerca de 1500 soldados; ao mesmo tempo, a marinha e a força aérea nipónicas atacavam a parte ocidental da ilha, sob administração holandesa (a capital Kupang e outros pontos).

Logo a seguir, em 24 de fevereiro de 1942, foi introduzida a moeda militar japonesa como única com circulação legal em Timor. A administração civil portuguesa não foi formalmente deposta: era preciso salvar as aparências.  

O governador português e o seu escasso corpo de funcionários ficarm circunscritos à residência oficial em Díli após maio de 1942. Mas era uma administração fantoche. 

A resistência aliada, composta por australianos (Sparrow Force), holandeses, meia dúzia de ingleses, e civis, portugueses e timorenses,  continuou sob a forma de guerrilha nas montanhas. O apoio da população local está bem documentado, apesar dos focos de rebelião contra os portugueses (as  famigeradas "colunas negras", armadas ou toleradas pelo ocupante).

O interesse estratégico aliado pelo território irá, entretanto, diminuir e, a partir de fevereiro de 1943, a maioria dos comandos australianos foi evacuada.

 A ocupação terminou apenas após a rendição do Japão, em 2 de  setembro de 1945, e o regresso da administração portuguesa efetiva

A ocupação resultou em intenso sofrimento: houve peloo menos 40 mil mortos  entre timorenses e portugueses (cerca de 10% da população da época), devido a massacres, fome, doenças e trabalhos forçados.

Houve repressão violenta contra qualquer suspeita de apoio aos aliados, envolvendo represálias, torturas, fuzilamentos públicos e deportação em massa da população de Díli para o interior.


NBa resistência ao oocupante, destacou-se, de entre muitos outros,  a figura do régulo Aleixo Corte-Real (Dom Aleixo), fuzilado pelos japoneses em 1943 por ter colaborado com as forças aliadas e apoiado a população local. 

Envolveu-se também a comunidade portuguesa local, ora na resistência armada, ora tentando proteger a população timorense, apesar das ordens de estrita neutralidade vindas da metrópole. 

De entre os portugueses, resistentes, destaque-se  o tenente (e antigo administrador de Baucau) Manuel de Jesus Pires (durante anos e anos totalmente esquecido) (Foto à esquerda, com dedicatória manuscrita à "amiga Maria", e data de 6/3/1943, um ano antes de morrer, às mãos dos japoneses, no cativeiro; fonte: blogue Uma Lulik  > 10 de fevereiro de 2008 > Tenente Pires). (Julgamos que a Maria da dedicatória fosse a jovem esposa de Carlos Cal Brandão, o advogado, seu conterrâneo, do Porto, ali desterrado desde 1931.)

A maior parte das infraestruturas urbanas e povoados de Timor Leste foi destruída pelos combates e bombardeamentos aéreos: Díli sofreu mais de 90 ataques aéreos ao longo da ocupação, a maior parte da aviação aliada.

(i) Contexto e invasão aliada (1941)

17 de dezembro de 1941:

  • antecipando uma mais que provável invasão japonesa, e  para prevenir a instalação de bases japonesas, uma força de 400 comandos australianos e holandeses (e alguns ingleses) desembarca em Díli, contra a vontade e os protestos do governador português, Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho;
  • o objetivo era criar uma linha de defesa avançada e impedir que o Japão usasse a ilha como base para atacar a Austrália;
  • Lisboa protestou em vão, mas veementemente, contra esta violação da sua neutralidade (com mais veemência do que dois meses depois).

(ii) A invasão japonesa e o início da resistência  (1942)


19-20 de Fevereiro de 1942:

  • o Império do Sol Nascente, usando a presença aliada como pretexto para a invasão, lança um ataque massivo, de cerca de 1500 soldados em Díli, ocupando rapidamente a cidade;
  • o pequeno contingente aliado e as forças portuguesas (não mais do que  600 homens, no total, incluindo uma companhia de timorenses, mal armados, e enquadrados por meia dúzia de graduados metropolitanos) são rapidamente subjugados na capital.
  •  a marinha e aviação japonesas  bombardeiam  Kupang (Timor holandês) e noutros pontos estratégicos da ilha;


finais de fevereiro de 1942:

  • os soldados aliados sobreviventes, principalmente australianos da "Sparrow Force", recuam para as montanhas do interior da ilha;
  • com o apoio crucial da população timorense, que lhes fornecia comida, abrigo e informações,  iniciam uma mais que improvável campanha de guerrilha contra as forças nipónicas.

(iii) A guerra de guerrilha e o apoio timorense (1942)



março - dezembro de 1942:

  • os comandos australianos, conhecidos como os "fantasmas de Timor", infligem pesadas baixas às tropas japonesas, sabotando as suas operações e linhas de comunicação;
  •  estima-se que mais de 1500 soldados japoneses foram mortos nesta fase, ao custo de apenas cerca de 40 baixas australianas;
  • a resistência não teria sido possível sem o apoio ativo dos timorenses: muitos serviram como guias, informantes, e carregadores (chamados "criados" pelos australianos); esta colaboração, no entanto, teve um custo terrível, pois os japoneses retaliaram brutalmente contra as aldeias que ajudavam os aliados.

agosto de 1942: 

  • os nipónicos lançam uma grande contraofensiva para esmagar a guerrilha, intensificando a violência contra os civis (e fazendo recurso às famigeradas "colunas negras", timorenses de um lado e do outro, arregimentados para espalhar o terror),

(iv) a  retirada aliada e o isolamento total (1942-1943)

dezembro de 1942 - fevereiro de 1943: 

  • face à insustentabilidade da situação, a marinha australiana realiza uma série de operações secretas para evacuar os seus soldados; a grande maioria dos comandos é resgatada, deixando a população timorense à mercê da brutalidade das forças de ocupação japonesas e dos seus colaboracionistas; 
  • as autoridades e cidadãos portugueses que não tinham sido evacuados foram, na sua maioria, internados em campos de concentração;

(v) O auge da ocupação japonesa e a fome (1943-1945)

  •  com a saída dos aliados, os japoneses consolidaram o seu controlo, impondo um regime de terror; civis timorenses foram executados, torturados e forçados a trabalhos pesados;
  • as forças japonesas confiscaram colheitas e gado para sustentar o seu esforço de guerra; o colapso da agricultura e da pecuária, combinada com os bombardeamentos aéreos aliados que visavam as posições japonesas nos anos seguintes, levou a uma fome generalizada que devastou a população.

(vi) O fim da guerra  (1945)

  • 6 e 9 de agosto de 1945:  bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaãqui;
  • 15 de agosto:  o  Imperador Hirohito anuncia a rendição incondicional do Japão, terminando a II Guerra Mundial.
  • 5 de setembro: o comandante das forças japonesas em Timor-Leste,  coronel Kaida Tatsuichi, encontra-se com o governador português interino para comunicar a rendição;
  • 6 de setembro;: os japoneses começam a retirar do território;
  • 11 de setembro: as forças japonesas em Timor rendem-se formalmente aos australianos em Kupang (capital da parte holandesa).
  •  a 27, chegam a Díli os avisos "Bartolomeu Dias" e "Gonçalves Zarco", e, dois dias depois, a 29, o aviso "Afonso de Albuquerque" e o T/T "Angola", vindos de Lourenço Marques, e ainda, a 9 de outubro, o vapor "Sofala", com tropas expedicionárias, novos funcionários e mantimentos.

Em resumo: 

  • a invasão de Timor demonstrou os limites da neutralidade  portuguesa e as ambiguidades ou fragilidades da diplomacia do Estado Novo durante o conflito;
  • a experiência da ocupação e resistência marcou profundamente a identidade timorense, sendo memória central da história do país e das relações com Portugal e a Austrália;
  • estes factos e datas  são unanimemente reconhecidos nas fontes académicas, relatos de sobreviventes e historiografia portuguesa, australiana e timorense, confirmando que ocupação japonesa foi uma das maiores catástrofes da história de Timor-Leste (infelizmente seguida, 30 anos depois, pela ocupação dos indonésios); 
  • embora os números exatos sejam difíceis de apurar, as estimativas indicam que entre 40 mil  e 70 mil timorenses (Ramos Horta fala em 40 mil)  terão morrido,  em resultado direto da ocupação e da violência, ou seja indireto, através da fome e das doenças (uma perda que representava entre 10% a 15% da população da época, um a proporção mais ou menos equiparável ao do genocídio praticado pelos indonésios, entre 1975 e 1999).

Vd. RTP Ensina > A ocupação  de Timor pelos japoneses (vídeo, 6' 01'')


(Pesquisa: LG / Blogue  + Assistente de IA (Gemini, ChatGPT, Perplexity)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)
 

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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 

(**) Vd. poste de:


14 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25941: Timor: passado e presente (21): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte XII: O regresso à Pátria e o fim do anátema de 'deportado' (pp. 102-107)

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27229: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (38): Filatelia da Guiné

1. Mensagem do nosso camarada João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 16 de Setembro de 2025:

Bom dia camaradas
Hoje envio as últimas fotos de selos da Guiné.
Depois passo a enviar outra série de objetos diferentes.

Desejo saúde para vós e vossas famílias.
Abraço
João Moreira




(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 11 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27210: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (37): Filatelia da Guiné

Guiné 61/74 - P27228: No 25 de Abril eu estava em... (41): Bissau, com mais seis "atiruenses" e uma metralhadora ligeira HK-21 a defender... a sede da PIDE/DGS (Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense, CSJD/QG/CTIG, 1973/74)



HK 21 (Fonte: Wikipedia / Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)




 
1. Mais uma crónica deliciosa do nosso "mano" Abílio, Magro e Valente (ou, melhor Valente Lamares Magro... Ou tão só Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG (Cacine e Bissau, mar 1973 / set 74). Foi repescada da sua série "Um amanuense em terras de Kako Baldé" (2013-2016). Tem 75 referências no nosso blogue. E é nosso  grão-tabanqueiro, com muita honra, desde 2013. Nasceu em Porlalegre, vive em  Rio Tinto, Gondomar.

Perguntei-lhe há dias como é que estava... Respondeu-me com o seu saudável humor bem português: 

"Cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas e a saúde a entrar nos eixos"....

Recorde-se que ele é o mais novo de seis irmãos que fizeram todos tropa e foram ao ultramar...  Formavam, o que ele chamava em 2013, a Companhia Magro: 

(....) "Quando inicio o CSM no RI 5, Caldas da Rainha, em abril de 1972, encontrando-se, nessa altura, a Companhia Magro assim distribuída: (i) Rogério Magro, que estivera em Angoka, e então na disponibilidade; Dálio Magro - Moçambique; Carlos Magro - Angola; Fernando e Álvaro Magro - Guiné; Abílio Magro - RI 5, Caldas da Rainha" (...)



No 25 de Abril eu estava em... Bissau, com mais seis "atiruenses" e um metralhadora ligeira HK-21,  a defender... a sede  da PIDE/DGS 

por Abílio Magro



No dia 25 de Abril de 1974, logo pela manhã, com uma molhada de documentos debaixo do braço, dirigi-me como de costume, à repartição que possuía o selo branco do CTIG (1ª ou 2ª, já n´~ao me lembro) a fim de o apor, nas assinaturas do brigadeiro Alberto da Silva Banazol, comandante do CTIG.

Esta repartição era chefiada por um major do SGE, já de meia-idade e de quem também já não me recordo o nome.

Eram talvez 9h30 da manhã, estava eu muito entretido a "trincar" o Banazol com o selo branco e entra o capitão Cirne (julgo que miliciano) e, virando-se para o major, de braços abertos e punhos cerrados "grita", mais ou menos em surdina:

− Vive la revolution, vive la revolution!

E continua:

 O Marcelo refugiou-se no Quartel da GNR, no Carmo, e está cercado pela tropa!

Claro que orientei logo as "antenas" para o capitão Cirne e aguardei o desenvolvimento da conversa, mas este deitou-me um olhar que transparecia alguma felicidade, mas algum receio também, e diz:

− Furriel ...!  − como quem diz:  Tem lá calma, pá,  e vê lá o que vais para aí espalhar!.

A conversa pareceu-me ter alguma consistência e como, umas semanas antes, tinha havido aquele episódio da coluna das Caldas da Rainha que avançara sobre Lisboa, fiquei intrigado e, na CSJD tratei de contar aos meus camaradas o que tinha ouvido e aguardar algum "feedback".

Nessa altura já o tal 1º sargento, a quem o major Lobão chamava de "Gebo", tinha terminado a comissão e tinha sido substituído por um 1º sargento que usava sempre chapéu de pala. Em 18 meses de Guiné, julgo nunca ter visto nenhum militar do Exército usar chapéu de pala.
 
O homem tinha mesmo queda para polícia e, tendo ouvido o meu relato, tratou logo de dizer:

 − Tenha cuidado com o que anda para aí a dizer, que ainda pode ter chatices.

Claro que eu traduzi para:

− Põe-te a pau que eu conheço uns gajos na PIDE e não tarda nada vais até Guiledje tomar conta daquilo sozinho!

Enfiei a viola no saco.

Entretanto o PIFAS  (Programa de Informação das Forças Armadas, julgo que era assim) dedicava-se à música sinfónica, o que fazia pensar que efetivamente havia qualquer coisa no ar, embora ainda se tivesse ouvido, nesse dia, um discurso qualquer do Ministro dos Negócios Estrageiros, o Dr. Rui Patrício. Mas, pasmem-se, também se ouviu, aqui e ali, alguma música do Zeca Afonso! Das mais suavezinhas, é certo, mas...

−Alto lá, que aqui há coisa!

Aguardávamos com alguma ansiedade pela hora do almoço, altura em que o PIFAS transmitia um serviço noticioso mais elaborado.
 
Na messe de Sargentos havia uma aparelhagem de som com várias colunas espalhadas pelo recinto:  bar, esplanada e sala de jantar.
 
Na sala de jantar as mesas eram para 4 pessoas e, embora não houvesse lugares marcados, os "habitués da casa" sentavam-se sempre nos mesmos lugares.

Numa mesa à minha direita, com outra de permeio, sentavam-se quatro camaradas sui generis, já que dois deles eram completamente fanáticos pelos seus clubes (um do Belenenses e outro do Sporting) discutindo constante e acaloradamente sobre futebol e, os outros dois, aguentavam impávidos e serenos.
 
O fanatismo era de tal ordem que, tanto um como outro, chegavam ao ponto de relatar com algum pormenor a vida dos futebolistas do seus clubes (onde e quando nasceram, onde moravam, que clubes representaram e em que ano, etc., etc.) numa demonstração de grande cultura futebolística.

Pois,  naquele dia 25 de Abril de 1974, à hora do almoço, quando toda a gente, em silêncio, aguardava com alguma ansiedade novas de Lisboa sobre o que por lá estaria a passar-se na realidade, estavam aqueles dois "fabianos" em acesa discussão acerca, provavelmente, da cor das cuecas que determinado jogador usou no jogo tal, marimbando-se completamente para o que se estava a passar na Capital do Império!

Nesse dia foram-se adensando as suspeitas de que algo de importante se estaria a passar em Lisboa. Aos poucos as notícias foram chegando, mas nada de oficial. Eram transmitidas de boca em boca e, nessa situação, não havia que fiar e continuava-se a combater no mato.

O brigadeiro Alberto da Silva Banazol estaria a banhos na ilha de Bubaque, mas tardava em aparecer.
O general Bettencourt Rodrigues nada dizia.

Começa a "boatice". Que houve um golpe de Estado liderado pelo gen Spínola..., que o gen Bettencourt estava contra..., que íamos ficar sem reabastecimentos de Lisboa..., etc., etc..

Baixou a qualidade da alimentação... Faz-se um levantamento de rancho... Fazem-se reuniões por tudo e por nada... A confusão é mais que muita...

O brig Banazol desaparece... O QG/CCFAG, a Amura,  é cercado e o gen Bttencourt, na manha~de 26 de Abril, é preso.

Em Bissau os estabelecimentos são pilhados... É reforçado o patrulhamento nas ruas... A sede da PIDE em Bissau corre perigo ...

Sou escalado para sargento de piquete e, à noite, põem-me uma HK-21 nas mãos e a respectiva fita de balas... Não sei o que hei-de fazer com aquilo... Mandam-me com mais 6 homens fazer segurança à PIDE/DGS... Eu sou amanuense, mas ninguém quer saber... Eu também já não quero saber... Só quero é que ninguém me chateie...

E lá vou eu!

Coloco o pente de balas ao pescoço e cruzo-o no peito, qual Pancho Villa liofilizado. Seguimos de Unimog em direcção ao objectivo, a sede da PIDE/DGS, em Bissau.

Lá chegados, havia que montar o dispositivo de segurança... Começam os problemas... Nas Caldas da Rainha tinha tido uma formação em HK-21 de cerca de ... 10 minutos e recordava-me bem de como colocar a arma com o tripé no chão, mas como se metia a fita, aí é que já era pior..., tinha-se-me varrido completamente.

Um homem nunca se atrapalha:
 
 Há aqui algum atirador?
 
− Eu sou!  − responde alguém.
 
 − Então monta lá isso e anda para aqui!


O equipamento estava montado no meio da ruela que passava por detrás da DGS. Havia agora que colocar estrategicamente o pessoal, e assim fiz:
 
 − Sentem-se aí nesse canto e façam pouco barulho... (estratégia para não espantar a caça).

Entretanto, como já me estava a dar o sono por ouvir ressonar, levantei-me e fui andar um pouco para perto da HK, não fosse alguém a "gamar", e vi uma caixa de papelão que me deu uma ideia genial!

A HK ali sozinha, montada no chão, não fazia muito sentido. Era conveniente pôr lá um homem a apontar para qualquer lado (o factor psicológico é muito importante nestas ocasiões). Como a arma me tinha sido entregue a mim, parecia-me óbvio que o homem seria eu. Mas eu sou pacifista e, além disso, tinha de me deitar no chão e ia sujar-me todo naquela terra barrenta.

Desfiz a caixa de papelão e fiz uma espécie de tapete que coloquei atrás da HK.. Chamei o atiruense  e disse-lhe para se deitar que a cama já estava feita.

E ali estava, em todo o seu esplendor, uma segurança com preocupações estéticas, de higiene e de conforto.

E foi neste quadro burlesco que a força que nos veio render nos encontrou, às 4 horas da madrugada, não se tendo registado qualquer incidente.

(Revisão / fixação de texto, título: LG)
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Nota do editor LG:


Guiné 61/74 - P27227: Memórias dos últimos soldados do império (5): os "últimos moicanos" - Parte II (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)

 


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > CCAÇ 2479 (1968/69) (futrura CART 11) > Centro de Instrução Militar (CIM) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... (mas bem podia  ter sido o Djassi desta história...).

 Foto (e legenda) : © Renato Monteiro (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1.   "Djassi, o ordenança", da autoria do Abílio Magro,  é outro testemunho sobre os últimos dias da nossa presença na Guiné. Faz parte da série "Um amanuense em terras de Kako Baldé" (de que se  publicaram  15 postes entre  janeiro de 2013 e março de  2016, e que estamos agora a revisitar). 

O título não deixa perceber, de imediato,  o drama, pungente,  relatado na segunda parte: o dos soldados do recrutamento local que foram abandonados à sua sorte. Como o Djassi, antigo operacional, que acabou a sua "carreira militar", incapacitado, nos serviços auxiliares,  como "ordenança" na CSJD/QG/CTIG.  E que  a partir de agosto fora obrigado a passar à "peluda"...

A cena passa-se em Bissau, já na segunda quinzena de setembro de 1974. Mas antes vamos ver o Abílio Magro, com "outro moicano", na azáfama, febril e ciclópica, de manhã à noite, de queimar todos os papéis (sensíveis) do seu serviço, em troca da vaga promessa do chefe, um tenente-coronel, de conseguirem chegar a casa uns dias mais cedo... 


Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG (Bissasu 1973/74)



Os "últimos moicanos" - Parte II

por Abílio Magro


Recorde-se que havia dois QG (Quartéis Generais) em Bissau;

  • QG/CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), instalado em  Santa Luzia,
  •  QG/CCFAG (Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné), na fortaleza da Amura.
Eu prestei serviço na CSJD (Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina) do QG/CTIG, em Santa Luzia.
 
No tempo em que por ali andei (1973/74), o primeiro era comandado pelo brigadeiro Alberto da Silva Banazol e depois pelo brigadeiro Galvão de Figueiredo; o segundo pelo general Spínola e depois pelo general Bettencourt Rodrigues.

Em agosto de 1974 na CSJD tínhamos um ordenança, o Djassi, soldado nativo que aparentava ter já ultrapassado os 30 anos de idade e que, enquanto operacional, fora gravemente ferido, tendo-lhe sido retirado um pulmão e integrado nos serviços auxiliares. Estava ali colocado para efectuar pequenas tarefas relacionados com aquele Serviço.

O Djassi apresentava invariavelmente um semblante carregado e raramente esboçava qualquer sorriso, denotando, porventura, algum sofrimento pelo seu débil estado de saúde, mas era um indivíduo afável, educado, disciplinado e prestável. Dava gosto lidar com ele. Nunca o vi aceitar com azedume qualquer tarefa, oficial ou particular, que se lhe solicitasse.

Nessa altura, agosto de 1974, já muitas companhias tinham abandonado os seus quartéis no mato e regressado à Metrópole, e outras encontravam-se estacionadas em Bissau a aguardar igual destino.

Por essa razão, estavamos assoberbados com papelada decorrente do "fecho de contas" daquelas companhias,  o que indiciava que nós, os do "ar condicionado", seríamos talvez os últimos a "abandonar o barco".
 
A situação era confusa. Sabíamos que iríamos abandonar a Guiné, mas não sabíamos como, nem se o faríamos definitivamente, nem quando.

Começou a correr a informação de que a partir de finais de agosto não seriam autorizadas férias a ninguém. Ora, eu e o meu camarada Silva,  do Barreiro, nessa altura já os mais "velhinhos" da CSJD, com excepção do tenente-coronel e  do major, estávamos há já mais de um ano sem gozar férias e começámos logo a tratar da papelada para o efeito.
 
Lá viemos de férias em meados de agosto e, entretanto, o "êxodo" continuava e com maior cadência.

Findas as férias, regressámos à Guiné dois dias  depois da data em que foi reconhecida a independência por parte de Portugal - 10 de setembro de 1974.

As patrulhas na cidade eram efetuadas pela PM (Polícia Militar),  conjuntamente com elementos do PAIGC, muitos estabelecimentos tinham encerrado, a tropa que ainda restava era composta de "piras" (ou "piriquitos"), oriundos das companhias mais recentemente chegadas à Guiné.

Na CSJD só o tenente-coronel e o major não tinham ainda sido substituídos, os bens escasseavam, na messe de sargentos só se encontravam "piriquitos", etc., etc.... Ou seja: eu e o Silva estávamos completamente deslocados e, se não tivéssemos tido a estúpida ideia de meter férias naquela altura, teríamos certamente regressado definitivamente, sem necessidade de desembolsar os "pesos" que nos custou a viagem.

Logo tratámos de, junto do tenente-coronel, dar conhecimento da nossa "triste" situação e efetuar o "choradinho" adequado.
 
Fomos então incumbidos de queimar todo o arquivo morto da CSJD que ocupava totalmente uma daquelas pequenas vivendas tipo colonial e que era composto por processos instaurados desde o tempo em que ainda não havia guerra na "Província", após o que poderíamos "meter os papéis" para regressar à Metrópole...

A tarefa impunha alguma responsabilidade e cuidado pois não podia ficar qualquer fração de papel por arder, o que, nos processos mais volumosos, nos obrigava quase a arrancar folha por folha.

Ali estivemos quinze dias a queimar papel que, quando amontoado, nos obrigava a remexê-lo com um pau para que não se apagasse e, no fim de cada dia, só abandonávamos o local quando existissem apenas cinzas.
 
De quando em vez, um ou outro processo despertava a nossa curiosidade pelos objetos de prova que continha e cheguei mesmo à tentação de desviar alguns, mas o desejo de regressar a casa depressa e bem, falava mais alto.

A nossa vontade em terminar a tarefa o mais rapidamente possível era tanta que logo que o sol dava sinais de vida, lá íamos nós p'ra "incineradora" e um dia tivemos a sorte de nos cruzarmos com o ten-cor que, talvez sensibilizado pela nossa madrugadora atividade, nos mandou chamar para que "metêssemos a papelada para bazar dali".

A tarefa ainda não estava terminada, mas o ten-cor, face à nossa proficiência e empenho, achou por bem mandar para lá alguém mais "piriquito" e nós lá regressámos à Metrópole quinze dias depois de lá termos vindo no final das férias.

E foi numa deslocação a Bissau para, no mercado negro, "despachar" os últimos pesos que tinha comigo (na messe de sargentos de Santa Luzia já nada havia para comprar),  que encontrei o Djassi, já civil, e que me interpelou de uma maneira agressiva como nunca imaginei que fosse capaz, confrontando-me com a situação para a qual o Exército Português o tinha atirado e dando-me a entender que, naquele momento, para ele, eu era o representante daquele Exército e exigia-me explicações que eu não lhe podia dar.

  Furriel, eu fui ensinado a respeitar a bandeira portuguesa desde que nasci, andei muitos anos no mato a lutar por Portugal, fui ferido várias vezes, fiquei sem um pulmão, sou português, sempre me considerei português!
 
E prosseguindo:

E agora, dão-me dinheiro e vão-se todos embora?!... O que vai ser de mim?!... O que é que o PAIGC vai fazer comigo?!

Naquele momento senti-me envergonhado por ainda pertencer ao Exército que abandonara à sua sorte o exemplar militar português que era o Djassi.
 
Emudeci e não me recordo de lhe ter dirigido grandes palavras de conforto para além de um lacónico: 

− Calma, vai correr tudo bem!...

Cabisbaixo e algo deprimido, retirei-me do local, mas confesso que, minutos depois, o egoísmo veio ao de cima e já só pensava nas "voltas" a dar no sentido de embarcar com destino à Metrópole o mais depressa possível.

Quando, tempos depois, já na Metrópole, comecei a ouvir os noticiários sobre os fuzilamentos de antigos militares portugueses da Guiné, muitas vezes me veio à memória (e continua a vir quando se fala no assunto) o exemplar militar Djassi e questiono-me sobre o destino que teria tido e se os capitães de Abril (na altura no poder) não teriam podido fazer mais por aqueles que combateram ao nosso lado.

Há muito que tinha em mente falar sobre o Djassi, ordenança da CSJD/QG/CTIG, mas como tenho o hábito de salpicar a minha "prosa" com tiradas pseudo-humorísticas (está-me no sangue), tenho alguma dificuldade de escrita para assuntos mais sérios como este. 

Dispus-me agora a fazê-lo, reconhecendo, no entanto, que este episódio era merecedor de uma escrita mais adequada ao fim a que me propus: 

− Prestar uma sentida homenagem a todos os "Djassis" da Guiné-Bissau!

(Revisão / fixação de texto, título: LG)
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Nota do editor LG:

Último poste da série > 17 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27225: Memórias dos últimos soldados do império (4): os "últimos moicanos" - Parte I (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27226: Historiografia da presença portuguesa em África (497): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1941 (53) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
1941 é o ano da chegada do Capitão Ricardo Vaz Monteiro e no final do ano dá-se a visita do Ministro das Colónias, Francisco Vieira Machado. Folheados todos os números destes boletins de 1941 há um indisfarçável e discreto silêncio sobre as dificuldades em que se vive na colónia, já se referiu que há legislação do Governo Central, foram tomadas medidas impeditivas ou dissuasoras de andar a vender alimentos a todo e qualquer país. Se acaso o leitor se recorda do que aqui se escreveu nos relatórios do chefe da delegação do BNU da Guiné por esta época, as dificuldades foram múltiplas, indiferentes a quem fazia guerra (a África Ocidental Francesa ficou até muito tarde na órbita do Governo de Vichy, e seguramente Salazar dera ordens para não haver qualquer tipo de afrontamento), contrabandeava-se de um lado para o outro; O que julgo mais interessante nesta documentação é o processo disciplinar ao engenheiro Afonso Castilho, tão sinuoso e prestável a tão diversas inspeções que até me parece que há clamorosas semelhanças com as práticas da justiça no nosso tempo. É por isso que peço ao leitor que leia com a devida atenção as acusações, as respostas e a sentença.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1941 (53)


Mário Beja Santos

O ano vê partir o Governador Carvalho Viegas, fica como encarregado do Governo Armando Augusto de Gonçalves Morais e Castro e, logo no Boletim Oficial n.º 8, de 24 de fevereiro é criado o Parque Dr. Vieira Machado, no mesmo Boletim Oficial cria-se a Biblioteca Pública da Guiné, estipula-se que todas as publicações de caráter oficial irão dar entrada nesta biblioteca, bem como todos os documentos manuscritos de peculiar interesse político, histórico, topográfico, militar, missionário, etnográfico, náutico, administrativo, económico, existentes nos arquivos oficiais da colónia.

Mas é bem interessante, até porque se trata de uma novidade referir este Parque Dr. Vieira Machado, o assunto é apresentado no suplemento n.º 10 ao Boletim Oficial n.º 6, em que 15 de março:

”Há, na Colónia, espécies zoológicas e até botânicas cuja conservação e propagação muito interessam, sob o ponto de vista comercial, científico e turístico. Ao governo da Colónia cumpre defendê-las e evitar a sua extinção.

Sendo a Guiné zona essencialmente agrícola, costumado o indígena a incendiar, por comodidade própria, o capim; estando habituado a mudar-se frequentemente e, sobretudo, sendo-lhe necessário alargar, de ano para ano, a zona de cultivo, mercê da pobreza de terreno, sucede vir desaparecer as florestas e, com elas, espécies de flora e fauna que interessam à riqueza da colónia;
É criado o Parque Dr. Vieira Machado na área da circunscrição civil de Buba, que fica sobre a superintendência da Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas, Florestais e Pecuários. A área do parque é de 16.700 hectares.

É expressamente proibida qualquer atividade humana dentro do parque, o traçado de estradas, cortes de árvores ou arbustos, caça, pesca e construção de habitações, mesmo de carater provisório, exceto os destinados à guarda do parque.”


No suplemento ao n.º 24, do Boletim Oficial n.º 12, de 21 de junho, vemos publicada a relação dos 40 maiores contribuintes das áreas fiscais dos concelhos de Bolama e Bissau. O destaque vai para António Silva Gouveia, Lda, Sociedade Comercial Ultramarina, Comapnhia Agrícola e Fabril da Guiné, Societé Commerciale de l’Ouest Africaine, Banco Nacional Ultramarino, Nouvelle Societé Commerciale Africaine, Compagnie Française de l’Afrique Occsidentale. Mas também encontraremos António Gomes Brandão e Manuel Pinho Brandão, a Sociedade Agrícola do Gambiel e a Sociedade Arrozeira da Guiné.

Voltamos agora aos processos disciplinares, este tem muito que se diga. Consta do suplemente ao n.º 37 do Boletim Oficial n.º 20, de 15 de setembro. Prende-se com o acórdão referido no processo disciplinar mandado instaurar ao chefe da Repartição Técnica dos Serviços de Obras Públicas, Agrimensura e Cadastro, da Colónia da Guiné, engenheiro Afonso de Castilho.

O Governador Carvalho Viegas enviara ao ministro das Colónias, em março de 1939, um ofício confidencial a que juntara documentos e cópias que lhe foram remetidas não se sabe por quem, nem quando nem de onde, neles se faziam graves acusações ao diretor das Obras Públicas. O ministro mandou instaurar um processo e suspendeu imediatamente do exercício das suas funções o dito senhor.

Foi nomeado instrutor que deduziu a seguinte acusação a Afonso de Castilho:

a) Não fiscalizou a construção de um pontão em betão armado, designado Cascunda-Jabadá, que por suas indicações escritas em maio de 1938 fora construído por um condutor sem habilitações profissionais suficientes, resultando o desmoronamento parcial, logo após a inauguração;

b) Não procedeu à reparação de um pilar avariado da ponte General Carmona, apesar de ter verba inscrita para esse fim na distribuição de fundos para o ano de 1938;

c) Descurou a fiscalização da empreitada para a construção do Observatório Meteorológico do Aeroporto de Bolama, apesar de repetidas participações dos agentes da fiscalização contra o empreiteiro, intervindo só raras vezes e sem energia, apresentando-se no fim o edifício concluído com grandes defeitos de construção;

d) Não procurou impedir com o seu conselho e autoridade especial que fosse alterado o projeto da obra anteriormente citada, quando já a meio do mais de andamento da construção, o que motivou o aumento de despesas;

e) Promoveu e impôs a subordinados seus a receção provisória da obra anteriormente citada, sem de facto estar concluída, obtendo que fosse paga ao empreiteiro sem o despacho devido do sr. governador…

E deduz ainda mais acusações.

Na resposta a estas acusações, Afonso de Castilho começa por descrever o ambiente técnico e psicológico que caracterizava os Serviços das Obras Públicas da Colónia da Guiné, quando chegou à colónia, em março de 1938, logo adiantando que o Quadro Técnico das Obras Públicas era constituído naquele tempo por dois condutores; fez várias diligências para melhorar a situação relativa à falta de pessoal e apõe um dado surpreendente: entre 1924 e 1936 houve 19 diretores das Obras Públicas, dos quais só 7 eram engenheiros. A pouca permanência – só 5 excederam um ano de exercício – dos chefes de direção dos serviços, a falta de competência técnica oficial da maioria, a ausência de uma orientação permanente e eficaz, tudo contribuiu para a pouca eficiência dos serviços e fraca fiscalização das obras. O arguido defendeu-se dizendo que tinha de lutar com péssimos hábitos de trabalho, com deficiências de aquisição e falta de pessoal.

Posto este preâmbulo respondeu concretamente aos assuntos. Não vou molestar o leitor com o corrupio das respostas, mas vale a pena ouvir o que ele declarou.

Quanto à alínea a), as reparações dos pontões de Cascunda-Jabadá, encarregou o chefe de secção, o condutor Francisco Cardoso da Silva Pimenta, que não cumpriu as ordens e instruções do seu chefe, foi desleal para com ele e profissionalmente incompetente; argumentou que dentro das possibilidades fiscalizou a obra e se mais eficaz não foi deveu-se a ter de elaborar naquele espaço de tempo cinco importantes trabalhos de gabinete, não podendo por isso deslocar-se;
quanto à alínea b), não havia verba alguma para a reparação da ponte General Carmona, não teve qualquer responsabilidade no que é acusado, a ruína do pilar e a sua defeituosa construção é anterior à data que entrou em funções;
quanto à alínea c) declarou que durante o segundo trimestre de 1938 houve um conjunto de circunstâncias que impediram a sua saída frequente de Bissau, etc., etc.

Instruído o processo e inquiridas as testemunhas, o instrutor concluiu que o engenheiro Afonso Castilho cometera as seguintes faltas disciplinares:

a) Mandara construir um pontão em betão armado sem observação das prescrições regulamentares;

b) Descorou a fiscalização de uma empreitada de construção de um edifício num valor de 492 contos, que foi terminada com grandes defeitos e erros de administração;

c) Não verificou com cuidado o caderno de encargos de uma empreitada para a colocação de janelas e persianas no edifício, aceitando como bom um oferecimento em importância quase dupla do real valor da obra, etc., etc.

O instrutor, depois de averiguar estas faltas disciplinares, entendeu que faltava apurar da incompetência profissional de Afonso de Castilho e submeteu o assunto à apreciação do ministro das Colónias. Foi então nomeado um outro engenheiro, Abílio Adriano Aires, para ir inspecionar sobre o aspeto técnico a Repartição das Obras Públicas da Colónia da Guiné. Elaborou relatório, demonstrou que as afirmações feitas pelo Governador Carvalho Viegas, acerca de pontes, pontões e coisas de engenharia não estavam certas e eram contrárias ao que ensina a ciência da especialidade. 

Que quanto ao pontão de Cascunda-Jabadá a responsabilidade era do condutor Pimenta, que o que se passou na construção do farol da Ponta de Barel fora semelhante ao que se sucedera na reparação do pontão Cascunda-Jabadá, a responsabilidade era do condutor Pimenta; que quanto à reparação de um pilar arruinado da ponte sobre o rio Corubal, a ponte General Carmona, era seu entendimento que o engenheiro Castilho fizera muito bem em não gastar dinheiro na reparação daquele pilar porque toda a ponte estava em ruína. E, em jeito de conclusão, entende que deve ser aplicada a pena de aposentação compulsiva a Castilho.

Agora o mais interessante desta história é que foi elaborado novo relatório pelo inspetor Carlos Henrique Jones da Silveira veio propor que o arguido fizesse a pena no máximo de 120 dias de suspensão. Consumadas as inspeções, e propostas de pena, o processo transitou para o Conselho Superior de Disciplina que propôs o máximo de 120 dias de suspensão. Se tudo isto não é matéria kafkiana dentro dos labirintos da justiça, prefiro não me pronunciar não só sobre os termos da acusação, tudo com base em boatos e rumores e porventura cartas anónimas, às justificações dadas pelo arguido que, no fim de contas revelam que diferentes serviços da administração eram pura ficção, e que o calibre das decisões quanto às penas é suficientemente elástico, vai desde a reforma compulsiva até à amenidade de suspensão de 120 dias. São assim ínvios os caminhos da justiça…

Anúncio da chegada do ministro das Colónia, Francisco Vieira Machado, à Guiné, dezembro de 1941
O adeus à capital de Bolama, no Natal Bissau já será capital
O ministro chega a Bolama
O ministro junto do monumento à pacificação de Canhabaque
Receção ao ministro das Colónias, Guiné, 1941
Jovens Papéis em tempos de fanado, Safim, imagem retirada da revista Império, 1951
Mapa de povos da região dos rios Gâmbia e Grande, cerca do século XVII

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 10 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27205: Historiografia da presença portuguesa em África (496): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, finais de 1940, princípios de 1941 (52) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27225: Memórias dos últimos soldados do império (4): os "últimos moicanos" - Parte I (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)





Guiné > Região do Oio > Mansoa >9 de setembro de 1974   > Uma foto para a história: o ex-fur mil op ersp / ranger, Eduardo Magalhães Ribeiro,. hoje nosso coeditor, CCS/BCAÇ 4612/74 (Mansoa, abr - out 1974), a arriar a bandeira verde-rubra, na presença de representantes do PAIGC (incluindo a viúva de Amílcar Cabral) e de autoridades militares do CTIG.


Foto (e legenda): © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

1.   "O Prisioneiro da Ilha das Galinhas", da autoria do Abílio Magro,  é uma das crónicas "divertidas" da série "Um amanuense em terras de Kako Baldé" (de que se  publicaram  15 postes enter janeiro de 2013 e março de publicada em 2016, e que estamos agora a revisitar). 

O título é enganador: o "prisioneiro" personifica aqui, metaforicamente falando, o "último dos moicanos"... 

A cena passa-se em Bissau, em finais de setembro de 1974, com os últimos militares portugueses a fazerem  a "comissão liquidatária" do império (a destruir papéis, a arrumar caixotes, a deitar fora a tralha da guerra, a transferir serviços, a fazer as malas para regressar a casa, a beber as últimas "basucas", etc.).

 Faz sentido republicar agora,  na efenéride dos 51 anos, esta história na série "Memórias dos últimos soldados do império" (*)

A República da Guiné-Bissau já tiha sido reconhecida por Portugal, "de jure et de facto", em 10 de setembro. O brigadeiro graduado Carlos Fabião, último governador e comandante-chefe,  ainda era, até 14 de outubro desse ano, formalmente, o representante do Governo português, do território. 

Sabe-se que  no dia 14 de Outubro, pelas 3 da manhã, o comandante-chefe Carlos Fabião partiu do aeroporto de Bissalanca, juntamente com os comandantes do CTIG, da Zona Aérea, do seu Estado-Maior (onde se encontrava também o seu CEM, Henrique Gonçalves Vaz) e os oficiais da Comissão Coordenadora do MFA na Guiné. Este voo representou o penúltimo contingente das nossas tropas, e não o último. 

No aeroporto encontravam-se representantes do PAIGC em Bissau, nomeadamente Juvêncio Gomes, Vítor Monteiro, Constantino Teixeira, Paulo Correia e Silva Cabral (nome de guerra, "Gazela").

O então comodoro Vicente Manuel de Moura Coutinho de Almeida D´ Eça tinha passado a ser, entretanto,  a partir de 14 de Outubro, à uma hora, o  comandante de todas as forças dos três Ramos presentes no TO da Guiné.  

Na manhã do dia 14 de outubro realizou-se a entrega do Palácio do Governo, tendo assistido a esta cerimónia o comodoro Vicente Almeida d' Éça, em representação do Governo Português (segundo Jorge Sales Golias, este foi o último acto oficial antes da retirada de todas as Forças Portuguesas) (**)

O comandante das Forças Terrestres a embarcar foi o coronel de infantaria António Marques Lopes: este sim o último contingente militar a abandonar o TO da Guiné, no T/T Uíge,  em 15 de outubro (chegado a Lisboa, a 20; nele veio também o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro) (*).


2. Recordemos a cronologia desses últimos dias do Império, no que diz respeito à Guiné... Garantida a independência pela Lei n.º 7/74, o período (de 30 de julho a 15 de outubro de 1974) foi caracterizado por "ausência significativa de pressão política ou militar", destacando-se no entanto, as seguintes acções mais relevantes (estamos a citar a CECA- Comissão para o Estudo das Campanhas de África) (***)

(i) desmobilização, até final de agosto,  das forças de recrutamento local, que lutaram a nosso lado contra o PAIGC, razão pela qual o seu desarmamento e desmobilização constituíram período crítico na fase final da nossa permanência na Guiné;

(ii) a retirada das nossas forças do teatro de guerra, sua concentração em Bissau e transporte das últimas unidades para Lisboa, em 15 de Outubro;

(iii) neste período, o potencial relativo de combate das NT  relativamente às do PAIGC era-nos desfavorável, pelo que se tornou necessário gerir o evoluir da situação com o maior tacto político e militar, garantindo sempre o máximo possível de segurança para as nossas tropas.

Recorde-se as datas-chave:;

  •  26 de agosto, em Argel, assinatura do acordo entre o Governo Português e o PAIGC para a independência da Guiné-Bissau, tendo-se assentado nos seguintes pontos essenciais: (a) independência em 10 de setembro de 1974; (b) retirada das Forças Armadas Portuguesas até 31 de outubro; (c) cessar fogo "de jure" desde a mesma data;
  • de 4 a 9 de setembro, chegada a Bissau de vários membros do Governo e responsáveis do PAIGC; no dia 9, chegou também o primeiro contingente militar do novo Estado;
  • 10 de setembro, em Lisboa, cerimónia formal de reconhecimento da independência da Guiné-Bissau por Portugal;  na mesma data, em Bissau, iniciava-se a transferência dos principais serviços públicos para a responsabilidade da administração do novo Estado;
  • 15 de outubro, retirada dos últimos contingentes das forças militares portuguesas estacionadas em Bissau; regresso nos TAM e no T/T Uíge e navios da marinha;
  • no total, regressaram a Lisboa cerca de 23.800 combatentes do efectivo metropolitano.

  Os nossos "cronistas" desse tempo são o Eduardo Magalhães Ribeiro, o Albano Mendes de Matos e... o Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina (CSJD),  QG/CTIG, março 1973/ setembro 1974).  

O Abílio Magro também  um dos últimos "moicanos" (leia-se: soldados do império), tendo regressado  a caso em fins de setembro, nos TAM. O ten cor Albano Mendes Matos, a 14, também de de avião. O Eduardo, a 15, no T/T Uíge.

O Abílio Magro é o nosso grão-tabanqueiro nº 600, tendo ingressado formalmente no blogu em 13/1/2013. Tem 73 referências.




Os "últimos moicanos" - Parte I

por Abílio Magro


A azáfama fazia lembrar uma tarde de fim de feira numa qualquer terra do interior de Portugal, onde as embalagens vazias de cartão se amontoam ao lado de cada tenda e os feirantes se apressam a recolher os artefactos e produtos não transacionados para, na madrugada seguinte, regressarem à estrada e ocupar novamente as “montras” numa outra feira qualquer.

Estávamos em finais de setembro de 1974 e o recinto da “feira” era a pequena “parada” defronte do edifício do QG/CTIG.

Com efeito, havia muita movimentação de pessoas e bens e o asseio parecia ter sido algo descurado. Notava-se algum nervosismo e pressa em fazer malas. Lembrava o término de um qualquer período de férias de Agosto no Algarve em que havia necessidade de andar lesto, a fim de se evitar as longas filas de trânsito das estradas algarvias daqueles tempos.

As entradas e saídas do Quartel-General eram constantes e respirava-se, efetivamente, um fim de feira com desfazer de tendas. A grande maioria das Unidades Militares que tinham estado sediadas no interior do território, já tinha regressado à Metrópole e era agora chegado o momento dos últimos “moicanos”, nomeadamente os militares metropolitanos que se encontravam presos na Ilha das Galinhas.

A pequena Ilha das Galinhas, com apenas 50 km² de área,  é uma das oitenta e oito ilhas que compõem o Arquipélago de Bijagós. Durante o período colonial funcionou nesta ilha uma prisão, designada por "Colónia Penal e Agrícola da Ilha das Galinhas".

Esta colónia estava destinada, essencialmente, a presos políticos, incluindo elementos do PAIGC, alguns dos quais ali estariam em trânsito para a prisão do Tarrafal (Ilha de Santiago, Cabo Verde).

Os prisioneiros andavam soltos pela ilha e a maioria trabalhava na bolanha (cultivo de arroz) e nas plantações de ananás e mancarra (amendoim) que havia pelo campo.

Nos finais de setembro de 1974, um desses prisioneiros, militar metropolitano, andava por ali no recinto da “feira” do QG/CTIG a aguardar não se sabia muito bem o quê.

Fazia-se acompanhar por um corpulento macaco-cão que segurava por uma trela de corrente de aço.
Este “prisioneiro à solta” apresentava uma tez bastante avermelhada, indiciando excesso de sol recente (ou algum excesso de aguardente) e trajava de um modo demasiadamente informal para um militar naquele local; camisa, calções e sapatos de ténis militares. Na cabeça, sempre descoberta, ostentava uma farta cabeleira arruivada e encaracolada e, nas pernas e coxas, várias tatuagens “pornográficas” a necessitarem de “bolinha vermelha”.

Era de poucas falas e parecia andar por ali apenas com o intuito de desafiar “altas patentes”, digo eu.

Com efeito, dava-me um certo gozo ver majores, tenentes-coronéis, coronéis, etc., que entravam ou  saíam do QG, depararem-se com aquela figura acompanhada do “seu animalzinho de estimação” e, pasmados, fitando o “moicano”, receberem em troca um olhar ostensivamente desafiador que os desarmava por completo e os “aconselhava” a prosseguir o seu caminho, o que faziam sem pestanejar.

Com muito custo lá conseguimos chegar à fala com o “moicano” e, segundo recordo, ele aguardava autorização para trazer o “companheiro” para a Metrópole, mas, confrontado com a nossa convicção de que isso não seria possível, logo afirmou que “então cortava o pescoço ao símio!”

Eram dias de muita rebaldaria e, lá fora, na estrada que passava em frente ao QG/CTIG, era constante o movimento de negros alombando para suas tabancas “troféus de guerra” diversos, tais como: colchões, frigoríficos, aparelhos de ar condicionado, etc.

Alguns capitães conduziam jipes bastante “mal-tratados” que avariavam constantemente e era vê-los a empurrar a “sucata” com a ajuda de um ou outro militar…

Enfim, imagens vivas do fim do Império Colonial Português!

Uns dias depois é chegada a hora do meu regresso a casa e lá estava no aeroporto de Bissalanca o “moicano”, sem macaco. Viajou connosco e disse-nos que o tinha matado (??).

Abílio Magro

(Revsião / fixação de texto, título: LG)


2. Na altura,  o editor LG tinha deixado o seguinte comentário no  poste P15618;


Há algo de pungente na tua descrição, tão singela, ingénua e ao mesmo tempo tão realista e quase cinematográfica dos últimos dias de Bissau... São pinceladas, são apontamentos, são "flashes", são pequenos detalhes de uma atmosfera, única, a da véspera de se partir, definitivamente, para casa e deixar atrás a tralha da História, e as ruínas de uma guerra, que vai, contudo, continuar a arder em lume brando...

Acho que, quem como tu, foi um dos últimos guerreiros do império, mesmo tendo sido um honestíssimo e patriótico amanuense, não mais poderia esquecer esses últimos dias, essas últimas horas...

O teu "prisioneiro da ilha das Galinhas" é um "boneco" bem apanhado!... Estou a imaginar a cara de desagrado, confusão e impotência dos nossos "maiores" (tenentes coroneis e majores) ao tropeçar, à portas do QG, com o teu "moicanho"... Mas todos foram, "chefes e índios", tristes figurantes do filme em que os "tugas" sairam de cena... daquela parte de África aonde justamente tinham sido os primeiros, dos europeus, a chegar, em meados do séc. XV!...

Obrigado, mano Magro, por mais este delicioso naco de prosa!..

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016 às 22:04:00 WET 
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(...) Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da actividade operacional: Tomo II - Guiné - Livro III (1.ª edição, Lisboa, 2015), pp. 420/423-

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27224: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (11): O Soldado Castro

1. Mensagem do nosso camarada do Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (,Tite e Fulacunda, 1968/69), com data de 5 de Setembro de 2025:

Desta vez, relato uma das implicações para que, durante 22 meses, não pude gozar férias por ter sido punido com detenção cumprida no mato.

Um abraço.
J.Caldeira


O SOLDADO CASTRO

Nunca percebi porque, sendo eu apenas um simples furriel, menos que sargento, tivesse que assumir funções que pertenceriam a oficiais ou, na sua ausência, a sargentos.

 Em mais um regresso de Nova Sintra, comandando uma força de cerca de 30 homens, na qual se incluía o soldado Castro que até era da secção do sargento Faria, também integrante da força, sofremos uma emboscada. Mas antes o Faria tinha oferecido o cantil de aguardente ao Castro e, este, não se fazendo rogado, bebeu talvez em quantidade razoável. Ficou grogue e, durante o tiroteio, resguardou-se debaixo de umas raízes de embondeiro e por lá adormeceu. Tropa fandanga.

No final da emboscada, reunido o pessoal, certifiquei-me de que não tinha havido danos pessoais e, após comunicar com a sede do batalhão, certifiquei-me de estávamos todos e mandei prosseguir. 

Passadas duas horas fui informado de que faltava o Castro. Pensei logo o pior. Que talvez estivesse morto ou ferido e que, por eu nem sequer o conhecer - estávamos há muito pouco tempo na Guiné e ele nem pertencia à minha unidade - não tinha dado pela sua falta. O Faria também não. Nova comunicação para o batalhão a informar da falta de um elemento.

 Recebo ordens para prosseguir e informaram que pessoal da companhia de Nova Sintra, por estar mais perto do local da emboscada, iria procurá-lo. Mas não o encontrou. 

Quando acordou, ainda sob o efeito da cachaça, dando pela nossa falta, caminhou errante para Nova Sintra. Chegou lá no dia seguinte. Foi um heli buscá-lo para Tite. E eu tive um processo disciplinar que resultou em castigo de dois dias de detenção que vim a cumprir fora do quartel, a caminho de Bissássema.

Como não podia deixar de ser, estes processos são demorados e só vim a saber da minha punição uns meses depois. Precisamente no dia 2 de Maio, data do meu aniversário. 

Até foi giro. O capitão presenteou-me com uma lembrança, um álbum para fotografias e a nota de culpa.

Quanto ao Castro, por remorso tentou dar um tiro na boca e eu fui chamado para o impedir. Não me foi difícil convencer do seu erro, mas sei que ficou marcado para sempre.

 Uns anos mais tarde, fui chamado para ser sua testemunha num processo em que pedia uma pensão de reforma, que lhe foi concedida por incapacidade motivada por stress de guerra. Perdi-lhe o rasto, mas gostava de reencontrá-lo.
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Nota do editor

Último post da série de 8 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27195: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (10): Ataque à Tabanca de Feninquê

Guiné 61/74 - P27223: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Adenda II: serviço de "guarda de honra" ao tribunal militar



Guiné > Bissau > Antiga Av da República > Edifício da administração civil onde funcionavam os tribunais (civil e militar) > c. 1917/73 >  Hoje é sede do Supremo Tribunal de Justiça da República da Guiné-Bissau >  Foto do álbum do José Romãoex-fur mil at inf, CCAÇ 3461 / BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, e CCAÇ 16, Bachile, 1971/73.


Foto (e legenda): © José Romão (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 




Carlos Filipe Gonçalves, nosso antigo camarada na Guiné (foi fur mil amanuense, Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74), é uma figura bastante conhecida no seu país, Cabo Verde: radialista, jornalista, escritor, etnomusicólogo... Natural do Mindelo, vive na Praia. É autor, no nosso blogue, da série "Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo)", de que se publoicaram 9 poestes mais uma adenda (*)

 
1. Manda-nos agora um comentário ao poste P27222  (**):

Data - 16 set 2025 14:22

Assinto - Comentário ao poste do Abilio Magro

Olá, caro, amigo:

Começo a me recompor do choque (***), vou tentando voltar à normalidade. Obrigadíssimo pelo teu apoio, naquele momento difícil no passado mês de Agosto. Na Guiné, dizem: mês de Agosto, mês de desgosto! Isso numa alusão ao Massacre de Pidjiguiti em 1959! Pois é, desde que vivi entre 1973 e 1975 que fiquei com esse horror ao mês de Agosto… talvez agora, um trauma.

Olha, vi o post do amigo e companheiro Abílio Magro (**), não resisto e fazer um comentário, que segue abaixo:

Em Bissau, após a minha chegada, ao QG/CTIG, talvez meio e mês depois, fui escalado para esse serviço,  “Guarda de Honra”, num julgamento no Tribunal Militar em Bissau que decorreu, no Palácio da Justiça ou o edifício que funcionava como tal, ali perto da Igreja (julgo um pouco abaixo) do lado direito da Avenida principal, que ia desembocar na Praça do Império, hoje, Praça dos Heróis Nacionais em Bissau. 

Recordo, era um julgamento de guineenses que tinham sido presos por ligações à guerrilha, logo eram vulgarmente chamados «turras». 


O «protocolo» era o mesmo descrito pelo Abílio Magro, só que a mim deram-me na arrecadação uma pistola Walther, os soldados eram todos guineenses, acho, do recrutamento local, levaram G-3. 

O serviço de Guarda de Honra durou apenas um dia, o julgamento é claro continuou, pois havia outros na escala para esse serviço. Quando começou, ouvimos o início, acusações em “apresentar arma”, mas depois, só lá ficaram dois soldados de sentinela dentro do tribunal; o resto, ficava cá fora e de hora em hora iam render os que estavam na sala. 

Por isso, recordações sobre acusações não ficaram, pior ainda, nunca mais me interessei, depois daquele dia de calor intenso, durante o serviço no Tribunal em Bissau.

Já agora, me lembro, que havia uma série de serviços e escalas, que se faziam pelo uma vez, para além escalas que cumpríamos uma vez por mês: 

  • Guarda (na entrada principal do QG em Santa Luzia); 
  • Piquete (ronda nocturna no bairro de Cupelon oi Pilão);
  • Guarda da PIDE (parte traseira). 

Para além destes, pelo menos a mim, coube apenas uma vez, ser nomeado «escrivão» num processo em que estava envolvido um guineense, que foi capturado no mato, logo acusado de ajudar o IN. Estava preso, ali pelos lados de Brá, numa prisão de um quartel que já não me lembro o nome. 

Quando chegamos lá, numa tarde, eu, escrivão, e o alferes inquiridor, encontrãmos os presos a jogar futebol! O encarregado da prisão, que era cabo-verdiano, ficou surpreso com a nossa chegada. Apitou logo, o jogo parou e começou logo a contagem de quantos eram os presos! 

E explicou-nos: "Temos de estar sempre atentos, pois se um deles fugir, sou o responsável!"

 Voltaram todos para as celas, ficou apenas o preso, que fomos interrogar. Não durou muito tempo, pois o alferes fez a leitura das declarações que estavam no auto e o preso confirmou tudo. Logo, foi rápido, assinámos e fomos embora.

Já agora, recordo, o primeiro serviço de «guarda de honra» que fiz, foi no dia 1 de Dezembro de 1972, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, Missa, no Dia da Restauração. 

Fiquei espantado, com a presença de um grande número de altas patentes, de tenente-coronel para cima!!! Felizmente tudo correu bem; para mim foi a primeira vez que entrava naquele monumento, vi o túmulo de Luís de Camões.

Forte Abraço, vida e saúde

Carlos Filipe Gonçalves

Jornalista Aposentado

(Revião / fixação de texto: LG)

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Notas do editor LG:


(*) Vd. postes de:

16 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26924: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Adenda I: Kalú de Nhô Roque e a sua "circunstância"

13 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26917: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - X (e última) Parte : a guerra de nervos nos últimos seis meses


(**) Vd poste de 15 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27222: Humor de caserna (212): Dura lex sed lex!...Guarda de Honra ao tribunal millitar (Abílio Magro, ex.fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, 1973/74)


(***) Vd- poste de 9 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27104: In Memoriam (558): Dúnia Ivone Ramos Gonçalves (1976-2025), filha do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, CefInt / QG / CTIG, Bissau, 1973/74): o funeral é amanhã, às16h00, no Cemitério da Várzea, Praia, Cabo Verde