sexta-feira, 2 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6090: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (6): Os dias da batalha de Guidaje, 20 e 21 de Maio de 1973

1. Parte VI dos dias da batalha de Guidaje, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:



Os Marados de Gadamael

e os dias da Batalha de Guidaje



Parte VI

Daniel de Matos

Os Dias da Batalha


20 de Maio


As flagelações sucedem-se dia após dia e praticamente todos os edifícios já sofreram danos. O nosso abrigo, qual cabeça de cogumelo pousada no chão, e muito poucos outros telhados são o que resta de construções por esburacar. Sem conseguir dormir, fumo mais um Português Suave e caminho ao longo das valas repletas de homens deitados no fundo. O dia rompe, preguiçoso. Avisto Marcelino da Mata, palma da mão direita para cima, quatro dedos a dobrarem-se e esticarem-se com intermitência, “toca a levantar”, assim acorda os homens que pernoitaram na mesma vala ziguezagueante que nós, só que lá no extremo oposto.

Ele e este seu Grupo já tinham estado connosco em Gadamael, (na altura, um grupo reduzido de dezasseis ou dezoito elementos), de lá saíram para uma Operação de que não tivemos informações. Só sei que lhes abri as armadilhas à saída da pista de aviação e, mais adiante, em Viana, para poderem passar. Seguiram acompanhados do guia Queba Mané, (que regressou sozinho quarenta minutos depois) em direcção a Gadamael Fronteira (daí em diante era chão da Guiné-Conacry). Não os vi carregados de mochilas e mantas, nem de bornais e rações de combate, acartavam apenas dois cantis de água cada um e cinturões pejados de armamento. Só voltaram à base passados três dias, onde um batelão os aguardava para os transportar, julgo que para Cacine. Era um grupo mítico de que se contavam estórias, inclusive as mais idiotas e macabras, tais como a de coleccionarem orelhas de inimigos abatidos ou apanhados, serem antropófagos, levarem apitos e desatarem a correr atrás do IN disparando e apitando ao mesmo tempo, etc.. Mas estas estórias (verdadeiras ou não, tão condenáveis como os actos, porém, que ficaram na História!) apenas se contavam para ilustrar a destreza destes homens, alguns deles evidenciando bastante juventude ainda, durante as operações mais secretas e bicudas para onde eram mandados.

Ouviram-se rebentamentos breves vindos de leste, alvitram-se bombas lançadas pela aviação nos arredores de Fajonquito. Quanto a nós, a partir de hoje veremos que consequências teve a Operação levada a cabo pelos Comandos Africanos e a destruição da base de Koumbamory, fosse ela total ou parcial. Será que vão reduzir-se os ataques?

Antes da investida dos Comandos e do bombardeamento da Força Aérea, o PAIGC dispunha no local das seguintes unidades: Corpo de Exército 199/B/70, com quatro Bigrupos de Infantaria e uma Bateria de Artilharia; Corpo de Exército 199/C/70, com cinco Bigrupos de Infantaria e uma Bateria de Artilharia; Grupo de Foguetes da Frente Norte, com quatro rampas; três Bigrupos de Infantaria, um Grupo de Reconhecimento e uma Bateria de Artilharia do CE/A/70, deslocadas de Sare Lali (zona leste); e um Pelotão de Morteiros de 120 milímetros.

O pessoal do Batalhão de Comandos arranca em direcção ao sul. Desloca-se a pé (em bicha de pirilau e sem viaturas), não podendo assim transportar nem os dez mortos resultantes dos confrontos de Koumbamory nem os vinte e dois feridos graves resultantes da Operação Ametista Real. Há outros homens que, com mazelas e ferimentos mais ligeiros não estão em condições de aguentar a marcha, ou de a consumar com segurança e ficam também em Guidaje.

Os dez corpos, cuja identificação mencionarei mais adiante, virão mais tarde a ser aqui sepultados. Não há notícia dos três desaparecidos em combate, cujos corpos ficaram tombados em território senegalês. Em toda a acção, os Comandos Africanos dispararam 26.700 munições de G3 e 4.600 de Kalashnikov (todas de 7,62mm), 292 granadas de lança-granadas foguete (6 e 8,9 cm), 71 granadas de RPG-2 e RPG-7, 195 munições de morteiro e 268 granadas de mão (ofensivas e defensivas).

Num terreno descampado do lado de lá da fronteira, três crianças de varapaus controlam de longe a numerosa manada que levam a pastar, o que há muito tempo não é habitual ver-se por ali, até porque existem áreas com mais e melhor verdura para o efeito.

Alguém sugeriu mais tarde que o PAIGC desconfiara que o Exército Português havia minado aquele corredor fronteiriço, para vedar a passagem. Dificilmente as NT conseguiriam colocar minas nesse terreno sem despertar a atenção dos vigias, que controlariam permanentemente os nossos movimentos. Na impossibilidade de enviar picadores para se certificar (ficariam ao alcance das nossas armas ligeiras), as vacas a calcorrear o terreno seriam a forma de o testar. Porém, nenhum animal foi pelos ares…

Não consigo recordar-me de quantas vezes terei ido à messe sentar-me e comer uma refeição. Primeiro, porque as horas do tacho são trocadas constantemente e tenho pouca sorte na escolha dos momentos de investida; segundo, porque enquanto duram alguns restos de rações de combate que o pessoal “anfitrião” sacou do armazém, aproveito-me da sua generosidade; terceiro, porque já começo a enjoar-me das salsichas de lata, só o cheiro me dá náuseas. Neste dia começa a faltar o pão, parece que já estão a racionar a farinha, vem uma pequena fatia na borda do prato de cada um e é o que há! E uma bernarda certeira no cocuruto do depósito de géneros arrasou as já de si insignificantes esperanças de um dia nos brindarem com rancho melhorado…

Bem, mas de sentir fome lembro-me perfeitamente (ou talvez não seja fome e apenas pensar que devo mastigar alguma coisa), e dirijo-me à messe, que desta vez está a servir refeições e cheia que nem um ovo. Olho para o fundo e calculo que deve ser naquele balcão que nos devemos servir, tipo self-service, do tal esparguete salsicheiro, prato do dia, não ao almoço e ao jantar, mas à hora de abertura que parece tirada às sortes.

É sabido que os graduados não usam divisas nem galões nos ombros quando partem em Operação, em virtude da ideia de que o inimigo pretende sempre aniquilar quem comanda, em primeiro lugar. Portanto, todos nós, quando saímos do COMBIS de manhãzinha deixámos nos cacifos essas identificações hierárquicas. Entro na messe e oiço um berro estridente, vindo de uma das mesas. Pelos cabelos brancos só pode ser de pessoal do quadro. Deduzo tratar-se do Comandante, e é de facto o Tenente-Coronel Correia de Campos que vejo apontar na minha direcção, de indicador em riste:

– “Adonde” é que você pensa que vai? Ponha-se lá fora imediatamente! Apresente-se primeiro e peça autorização para entrar!

Por decoro, não vou agora descrever o que balbuciei na altura, enquanto rangia os dentes, nem o que me apeteceu e estive mesmo para fazer… Recuei até à entrada da messe, ou refeitório, ou espelunca o lá o que era aquilo. Como não trazia quico não podia fazer continência, pus-me em sentido:

– Apresenta-se o furriel miliciano n.º 19711671, Daniel Rosa de Matos. V. Exa, meu Comandante, dá-me licença que entre?

– Entre! – respondeu sem me olhar, a boca cheia a mastigar o esparguete.

De pronto, virei as costas e saí. Confesso que o que queria mesmo era arremessar-lhe qualquer coisa às ventas, não sei bem o quê, o que apanhasse à mão de semear para lhe dar o troco do enxovalho. Só não o fiz porque alguém me puxou pelo braço e me disse “tem juízo pá, caga mas é no gajo, que é um xico de merda, e vem comer” e acabei por atacar mas foi a dose reduzida de salsicha, apesar do fastio. Sentei-me numa mesa corrida, – não muito distante da do Tenente-Coronel, – onde já estavam de prato vazio milicianos de outras unidades. O que me sussurrou os insultos ao Comandante e me arrastou para ir buscar o prato ao balcão, contou então certas histórias de atitudes que o homem teria tomado em Pirada, – e que não têm cabimento aqui, – e garantiu-me que se não havia whisky na messe era porque ele tinha açambarcado para o seu quarto as cerca de quarenta garrafas que há poucos dias constavam no inventário do depósito de géneros. É claro, os outros camaradas que estavam à mesa confirmaram tudo, puseram até os adjectivos no superlativo, mas nunca me convenci que não fosse mais um daqueles boatos que circulam sem se saber como nasceram. Nunca estivera cara a cara com Correia de Campos, aliás, ficara com boa impressão do homem desde que vi, ao longe, no meio da parada e durante uma flagelação, indiferente às granadas que caiam por perto, de pingalim (à Spínola) numa mão e de AVP-1 na outra, a dar ordens à Artilharia e às Armas Pesadas de como responder ao fogo. Agora, a atitude mentecapta que teve para comigo obrigou-me a mudar de opinião. Num quartel que, sob o seu comando, mais parecia já uma “Casa de Orates”, era assim que queria impor “respeito”? “Autoridade”? “Disciplina”? O que pode levar um indivíduo corajoso a revelar atitudes como estas, a coberto dos galões – de que outra coisa poderia ser?

No 25 de Abril de 1974, imagino que devido ao relacionamento que mantinha com Spínola, o Tenente-Coronel apareceu em Lisboa, à porta do Quartel do Carmo. Adelino Gomes (jornalista que estava a fazer a reportagem dos acontecimentos que viria a ser gravada em vinil e em cd), pergunta-lhe como estão as coisas e Correia de Campos retorquiu-lhe mais ou menos isto: se uma mulher grávida estiver a parir você pergunta-lhe se está com dores? A delicadeza da resposta caracteriza a sua personalidade. Passados estes anos, o episódio da messe pouco (me) importa, todos temos momentos de menor inspiração. Sem lhe querer mal algum, relatar agora o que se passou é já uma vingançazinha, como que a reivindicar para mim igual costela cabotina…


21 de Maio

Parece haver um abrandamento no ritmo dos ataques de artilharia de que somos alvos. Será provavelmente a primeira consequência da operação dos Comandos em Koumbamory, base que ainda há poucos meses recebeu seis dezenas de combatentes recém-formados na Argélia e em Cuba e é (era?) o principal ponto de abastecimento aonde os guerrilheiros se vão municiar. Mas já se fala em reposição de stocks! Diz-se que têm chegado ali camiões carregados com material vindo de Zinguinchor.

Num passado mais longínquo, Zinguinchor foi também relacionada com os colonos portugueses pelas piores razões, ao ser palco de tráfico de escravos com a cumplicidade “tuga”. Em 1836, o decreto de 10 de Dezembro aboliu as exportações de escravos em todos os territórios portugueses, mas isso não afectou os dois maiores traficantes dessa época: o antigo governador da Guiné e Coronel de Milícias, Joaquim António de Matos, e o Governador de Bissau, Caetano José Nozolini, comerciante mestiço, cabo-verdiano, marido e sócio de Nhara Aurélia Correia. Segundo a escritora Joana Ruas, que foi cooperante na Guiné-Bissau depois da independência e jornalista cultural do jornal Nô Pintcha (Avante, em português), creio que ao mesmo tempo que o jornalista português Daniel Reis (de A Bola) que também esteve no jornal, “Ziguinchor estava povoada por mestiços luso-africanos, grumetes e escravos, o chefe da feitoria vem de uma família mestiça, os Carvalho Alvarenga, ramo donde virá Honório Pereira Barreto, filho de um cabo-verdiano e de Rosa de Carvalho Alvarenga, a poderosa Rosa de Cacheu. Honório Pereira Barreto, sendo Governador da Guiné de 1835 a 1839, o número de escravos libertados nos 55 navios provenientes dali e apresados pelos cruzadores, fixou-se em cerca de 3.929”. Pois Honório Pereira Barreto (nascido no Cacheu a 24/4/1813, morre em Bissau a 26/4/1859), é o único negro (falso negro, por sinal) a figurar nas parangonas do sistema colonial: a sua pretensa fotografia aparece nas notas antigas do escudo guineense, nos selos emitidos pelos CTT, e tem inclusive um monumento majestoso, construído em sua memória. O regime aponta-o como o supremo exemplo do “portuguesismo” que pode haver num assimilado. Acontece é que o seu lado verdadeiramente negro, – digamos que, obscuro, – é o de, numa época em que o comércio de escravos está em extinção, consolidar no Cacheu um lucrativo comércio esclavagista! Que credibilidade pode ter entre os guineenses o poder exercido em Bissau ao longo do século e nos dias da guerra, cujo único monumento a um negro é erigido em memória do tal Honório?

Outra vez do lado senegalense da fronteira, um pouco mais distante do enfiamento do abrigo do Obus, nota-se uma invulgar movimentação de viaturas amareladas, bem ao alcance dos nossos olhos. Sabíamos da sua circulação, protegidas por blindados, numa estrada paralela à fronteira mas a cerca de dois quilómetros de distância. Mas assim tão perto… Pertenceriam às tropas do país vizinho ou à guerrilha? Tamanha concentração fez crescer o nervoso miudinho e, com maior ou menor fundamento, o receio de vir a concretizar-se o temido ataque ao arame. O nosso Cabo artilheiro, pelo sim, pelo não, apontou o Obus o mais paralelamente ao solo possível, a ponta do cano quase apoiada sobre a circunferência de bidões, “just in case”, gastaria o resto das munições fazendo tiro directo!

Corre o informe de que no enfiamento do quartel de Nema (Farim), estaria instalada uma porção descomunal de “turras”, provavelmente para reforçar a instalação de minas no itinerário para Guidaje. Mais lenha para queimar a nossa débil moral…

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. Os cinco primeiros postes da série de:

16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6000: Os Maradados de Gadamael (Daniel Matos) (1): Por onde andaram e com quem estiveram?

18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6014: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (2): Levar a lenha e sair queimado

20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6027: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (3): Os dias da batalha de Guidaje - Antecedentes à nossa chegada

24 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6041: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (4): Os dias da batalha de Guidaje, 15 a 18 de Maio de 1973

30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6069: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (5): Os dias da batalha de Guidaje, 19 de Maio de 1973

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6089: Os nossos regressos (21): No dia 1 de Abril de 1970, a CCAÇ 2381 finalmente despede-se em Parada Militar (Arménio Estorninho)

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 25 de Março de 2010:

Camaradas Carlos Vinhal e Co-Editores,
Faço votos de uma sã saúde e boa disposição.

Finalmente a 01 de Abril de 1970, a Parada Militar de despedida no Quartel dos Adidos, em Brá – Bissau.
Dia 1 de Abril de 2010 comemora-se a passagem do quadragésimo ano.

Há certas coisas na vida que são irreversíveis e tentava imaginar o que se passara, há quem lhe chame destino.

Antes de entrar no Navio, as imagens dos sítios por onde andei, gravadas na minha memória e sentia uma vontade de partir, tendo dito adeus Guiné, vou partir para junto dos meus e um dia hei-de voltar. Na descrição, o sentimento das palavras e imagens legendadas complementam-se.

Sendo a 03/Abr/70, a viagem de regresso no NTT Niassa e estando prevista a chegada para 09/Abr/70, na Estação Marítima de Alcântara, em Lisboa.


Parte 1

A sensação do regresso a casa dá-se aquando da Parada Militar, em Brá, e conjugando com o jantar de despedida, notando-se em quase todos a tomada de consciência e uma grande ansiedade (foto 1).
O tempo de comissão de serviço militar, obrigara-nos a uma forçada ausência familiar, alguns eram casados e com filhos, outros as paragens nos estudos e/ou nas carreiras profissionais. A partir de agora era a preparação de um mudar de vida, que teria uma forma de estar diferente e também perspectivando-se a reorganização da família.

Foto 1 > Bissau > Brá > Quartel do Adidos > 01/Abr/1970 > Parada Militar de despedida, na circunstância a CCaç 2381 “Os Maiorais,” apresentada pelo ex-Cap Mil Inf Eduardo Moutinho F. Santos e estando pela direita do Porta-Bandeira.

Do NTT Niassa saíra um forte buzinão, muitos vieram para o convés dar o último olhar de despedida, tirando fotos e/ou filmando, em que fixavam imagens para recordar (fotos 2 a 7). Saímos de uma guerra, em que a alma de uma forma geral ficara toda esfarrapada e há situações em que ainda hoje é difícil remendá-la.

Foto 2 > Bissau> Porto de Bissau> Base da Marinha> LDM e LDG> 1970;

Foto 3 > Bissau > Porto de Bissau> Base da Marinha > LFPs> 1970

Foto 4 > Bissau > Porto de Bissau> 1970 > Do Cais Pidjiguiti, vista para a Marginal, Edifícios Públicos e Restaurante/Bar “O Pelicano.”

Foto 5 > Bissau > Porto de Bissau > Cais Pidjiguiti, 1970 > Vista para a Marginal e Praça da Fortaleza da Amura.

Foto 6 > Bissau > Fortaleza da Amura, 1970 > Praça - Jardim e Fachada Principal da Fortaleza da Amura.

Foto 7 > Bissau > Fortaleza da Amura, 1970 > Fachada Lateral da Fortaleza (virada ao Porto), vimos canhões e metralhadora.

Contudo o navio afastou-se do Cais, ficando a Bombordo o Ilhéu do Rei, aí ancorando e aguardando por algo do qual não tive conhecimento. No primeiro dia, nem ao mais pintado escapara começando a haver algum incómodo com o enjoo.

Chegado o momento conveniente para zarpar, o Porto de Bissau ficara para trás, com rota pelo Canal do Geba e a devida entrada no Oceano Atlântico. Saímos de uma terra para a qual não pedimos para ali estar e ficara-nos a saudade (foto 8).

Foto 8 > NTT Niassa > No início da viagem de regresso > 03 de Abril de 1970. Um último olhar, não sendo fácil falar daquela terra e há sempre um sopro de saudade.


Parte 2 – A seguir as coisas complicaram-se nas camaratas, arejamentos inadequados, vomitados e exalação de odor repugnante, o balançar do navio que forçava aos que ali chegassem a ter sintomas de enjoo. Nos beliches aos acamados diziam-lhes que quando chegassem a terra tinham o médico para os tratar (No Algarve é a gozação do pescador “o marracho” para o montanheiro). Por antes viajar de barco, tive a precaução em me posicionar a meio do convés porque era a zona de menor balanço (fotos 9 a 11).

Foto 9 > NTT Niassa > No Convés e Amurada > Abril de 1970. Eu estou sentado acompanhado dos camaradas Alfredo Tomás e Leonel Valente da CCaç 2381.

Foto 10 > NTT Niassa> No Convés > Abril de 1970. Eu na imagem, para mostrar um monte de latas e o estado de conservação deplorável do equipamento que estava fora de actividade, oxidado e tapado com tinta já podre.

Por conseguinte seguiu-se o acumular das más condições sanitárias das camaratas, não havendo limpezas era uma imundice, que comentários “simplesmente desumano.” As idas às camaratas eram de uma forma geral esporádicas e só para ajudar os amigos e acamados, levando-lhes alimentos e ao mesmo tempo para controlar os pretensos.
Quando íamos aos balneários, ficávamos na expectativa de tomar um duche de água doce e aparecia a incongruência de água salgada, o “lux” não se adequava ao banho e o corpo ficava com salitre.
Relativamente à comida, era distribuída uma terrina para cada grupo de dez e comia-se com o prato na mão dispersando pelo convés.

Quando o NTT Niassa se afastou da costa africana seguindo o rumo do quadrante Norte, foi em parte do percurso acompanhado por um Navio da Marinha de Guerra.
O Niassa, chegara a navegar com vagas altas, em que ora adornava para estibordo ora para bombordo e assim como metia a proa a cortar as ondas, com o ir a baixo, depois lá acima e vice-versa, e nos porões era o ranger (choro) da estrutura dos reforços do casco.

Quanto aos passatempos: - Para nos localizarmos a grosso modo, “o nosso radar pessoal” tinha como referências as captações das emissoras dos rádios dos países do Continente Africano, das ilhas Canárias, da ilha da Madeira e por fim da Metrópole.
- Durante o dia pelo convés eram as conversas desgarradas, olhar para o mar e ver os seus atractivos, jogos de cartas da sueca, do rámy e à lerpa.
-Observamos golfinhos, grandes peixes - voadores, alcatrazes, barcos que estavam na faina da pesca e as ilhas Canárias.
Pela noite de um modo geral era a pretensão de ver cinema, mas houve avaria na máquina de projectar e “foi-se à vida.”

Foto 11 > Camaradas da CCaç 2381, eu, o 1.º Cabo Silva, Quarteleiro e Mecânico de Armas, o Soldado com o nome de guerra “O Coisinho” e o Soldado Corneteiro, Francisco Maria.

Aproximamo-nos da Metrópole ao anoitecer do dia 08/Abr/70, e começamos a avistar os relâmpagos do Farol do Cabo Sines. Mas haviam uns “conhecedores na arte de marear” e logo afirmaram que era o Farol do Cabo de S. Vicente, ao que lhes retorqui que não poderia ser, dado que esse dá uma série de três relâmpagos e o que viamos não dava. Sabia-o porque sendo meu hábito fazer comparação com o Farol de Alfanzina, no meu Concelho, sendo de categoria inferior e só dá uma série de dois relâmpagos.
No próprio Navio tive a preocupação do esclarecimento de um marinheiro, de qual o Farol que estávamos a ver e ele respondera que era o Farol de Sines, a seguir será o Farol do Cabo Espichel e por fim chegamos à Barra de Lisboa.

Assim foi, quando a noite ia alta chegamos defronte da Barra do Porto de Lisboa, entre o Farol de S. Julião e o Farol do Búzio, o navio sofre fortes balanços de proa/popa e de bombordo/estibordo, motivados pelas fortes correntes que se fazem sentir na barra do Tejo.
Fora aguardada a chegada do Piloto de Barra, porque compete a este conduzir a pilotagem do navio e a entrada no Porto. Depois navegou por debaixo da Ponte e fundeou no estuário (no Mar da Palha). Por fim quando já era dia, o navio desceu o rio Tejo, voltando a passar por debaixo da ponte Salazar, seguindo-se as manobras de acostagem e a atracagem na Gare da Estação Marítima de Alcântara.

Os militares desejavam de todo verem os seus, juntavam-se em grupos de conterrâneos, dependuram-se aqui e acolá, em tudo o que era possível e acenando com bandeiras, estandartes com escritos e outros meios. Fiz uma reportagem fotográfica muito completa da recepção ao contingente militar e apresento uma resenha de sequências de imagens (fotos12 a 19), dando a oportunidade para os meus camaradas de viagem e familiares, agora recordarem e penso que sejam únicas.
Os familiares e amigos dos militares, predispunham-se também para que melhor se identificassem, eram os acenos, os chamar uma "algaraviada" de e para lá.

Foto 12 > Porto de Lisboa > NTT Niassa > Sob a Ponte Salazar > 09/Abr/1970. Manobra de aproximação à Gare da Estação Marítima de Alcântara, o camarada com o pano é da CCaç 2381 e os outros são de diversas Companhias.

Foto 13 > Porto de Lisboa > NTT Niassa > Estação Marítima de Alcântara > 09/Abr/70 > Momento da tentativa de acostagem na Gare, com a emoção para visualização dos seus.

Foto 14 > Porto de Lisboa > Placa da Estação Marítima de Alcântara > 09/Abril/1970 > Multidão aguardando a chegada de Militares, em fundo a Ponte Salazar (25 de Abril)

Foto 15 > Porto de Lisboa> Placa da Estação Marítima de Alcântara > 09/Abril/1970 > Multidão aguardando a chegada de Militares, apresentando dísticos.

Foto 16 > Porto de Lisboa > Placa da Estação Marítima de Alcântara > 09/Abril/1970 > Multidão aguardando a chegada de Militares, apresentando dísticos.

Quanto a mim e aos meus familiares, não havia qualquer identificação, tornando-se difícil encontrarmo-nos. Como fui três vezes ao navio buscar os meus pertences, enquanto isso fazia guarda de permuta com outro camarada e dava uma volta pela zona. Mas tardava o desejado encontro, por isso já desesperado e não sabendo o que deveria fazer, eis que num ápice “Eureka” encontrei a minha namorada, ao mesmo tempo que ela me viu, apareceu a restante família. Tudo foi solucionado e houve um final feliz.

Por conseguinte se não me fiz entender sobre o cruzeiro de luxo e nos termos técnicos da arte de marear, peço imensa desculpa de tal ignorância porque sou montanheiro dos Salicos/Alfanzina, da Freguesia e Concelho de Lagoa, no Barlavento do Algarve.

Com cordiais cumprimentos para todos os Editores do Blogue
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas,
CCaç2381 “Os Maiorais”

Fotos e legendas: © Américo Estorninho (2010). Direitos reservados
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5857: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (4): Operação Grande Ronco (2)

Vd. último poste da série de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6082: Os nossos regressos (20): A impressionante chegada a Figo Maduro na noite de 22 de Março de 1972 (António Tavares)

Guiné 63/74 – P6088: Actividade da CART 3494 do BART 3873 (4): Parte 4 (Sousa de Castro)


1. O nosso Camarada Sousa de Castro (*), que foi 1º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74, enviou-nos a quarta parte da actividade desenvolvida pela sua Companhia, com data de 30 de Março de 2010, dando continuidade às mensagens publicadas nos postes P5965, P5986, P6019 e P6045:
ACTIVIDADE DA CART 3494 DO BART 3873 NO TEATRO DE O. P. GUINÉ (5)

DEZEMBRO1971 a ABRIL 1974

Este texto foi elaborado a partir do livro:
BART 3873 “HISTÓRIA DA UNIDADE” CART 3492 – CART 3493 – CART 3494
NA GUERRA CONSTRUINDO A PAZ
(autor desconhecido)

6º FASCICULO

SETEMBRO 1972

30. SITUAÇÃO GERAL

- Mês de relativa acalmia para a zona do XIME, sem no entanto de voltarmos a ser perturbados com uma flagelação.

31. TERRENO

- No período não se verificaram alterações. A pluviosidade, aliás escassa, conserva a vegetação luxuriante.

32. INIMIGO

a) Sub-Sector do XIME
- Em 16 de pelas 20,40 horas o Aquartelamento do XIME foi flagelado durante 10 minutos, na direcção GUNDAGUÉ BEAFADA, sem com consequências.

b) Conclusões
O XIME sofreu nova acção de guerrilha, com vem sendo habitual.
No actual período, bem como nos demais, o adversário opta pela confrontação indirecta com as nossas tropas (minas e flagelações), revelando por tal razão algum receio em fazer-lhes frente directamente.

Panorâmica do XIME - 1972

33. POPULAÇÃO

- Soube-se por intermédio de interrogatórias que o inimigo força as populações a darem apoio em géneros alimentícios e em pessoal para transportes.

Numa tentativa de subverter a etnia FULA, nossa aliada tradicional, a «VOZ DA REVOLUÇÂO» exerce acção psicológica sobre os FULAS, enquanto rapta e saqueia, através dos seus guerrilheiros, os aldeamentos que nos são fiéis, pretendendo acelerar a manobra subversiva. Contudo a dita etnia mantém-se firme e digna da total confiança, globalmente falando.

34. NOSSAS TROPAS

a) Acções e Operações mais importantes
- Realizaram-se 29 acções, abarcando 76 Grupos de Combate. Eis a de maior alcance:

- Acção «GARLOPA 3» por 03 Grupos de Combate da CART 3494, 03 da CCAÇ 12, 20º Pel Artª, 01 heli-canhão, 01 DO-27. Consistiu em patrulhamento e emboscada na zona XIME/MADINA COLHIDO/ESTRADA DA PTA DO INGLÊS/POIDON. As nossas tropas foram atacadas 02 vezes no espaço de meia hora, sofrendo 01 ferido ligeiro.

b) Conclusões
- A energia e a prontidão com que as NT reagiram aos ataques no desenrolar da acção «GARLOPA 3» comprovam a sua agressividade em ocasiões em que a sua capacidade de combate é experimentada.

c) Alterações do dispositivo
- O esquema não foi modificado.

7º FASCÍCULO

OUTUBRO 1972

35. SITUAÇÃO GERAL
- A área do XIME continuou a muito conturbada, porém os resultados obtidos pelo inimigo contam-se praticamente nulos.

36. TERRENO

- A altura do capim rouba visibilidade, dificultando a actividade das Nossas Forças o que é típico da estação das «chuvas», prestes a atingir o seu termo

37. INIMIGO

a) Sub-Sector do XIME
- No dia 17 durante 05 minutos o Aquartelamento do XIME volta a ser flagelado sem resultados.

Pessoal das TRMS CART 3494 - XIME 1972

38. NOSSAS TROPAS

a) Acções e Operações mais importantes
- No dia 03 das 13,00 horas às 18,00 horas foi a acção «GARO 9» por 02 GRCOMB da CART 3494 e 03 da CCAÇ 12 em patrulhamento à região do XIME/GUNDAGUÉ BEAFADA/PTA VARELA. Não houve contactos, nem se observaram vestígios do inimigo.

A Operação «DIA FESTIVO» de 19 a 21, a cargo da CART 3493 a 01 GRCOMB (+), 02 da CART 3494, 03 da CCAÇ 12,PEL’s Mil 241,242, 243 e 201, GEMIL’s 309 e 310 (Grupo Especial de Milícia), PEL’s CAÇ NAT 52, 54 e 63, PEL REC DAIMLER 3085 e apoio aéreo de heli-canhão. Traduziu-se a operação em segurança afastada de BAMBADINCA, nada acontecendo de anómalo.

b) Conclusões
- Primeiramente salienta-se o elevado efectivo no conjunto das duas aludidas iniciativas das Nossas Forças, depois o facto de não ter pressentido o inimigo, facto este que predomina no complexo geral da actividade operacional, ao longo de todos os períodos.

8º FASCÍCULO

NOVEMBRO 1972

39. SITUAÇÃO GERAL

- Numa visão ampla, pode afirmar-se o incremento da actividade Inimigo com o começo da época «seca» que lhe permite uma maior mobilidade.

Foto do ex. Cap. Artª Pereira da Costa - XIME 1972
(Coronel Artª na reserva)

40. TERRENO

- A pluviosidade resultante da mudança de estação provoca, em pouco tempo, o crescimento abundante de vegetação.

41. INIMIGO

a) Sub-Sector do XIME
- Nos dias 07 e 25 o XIME é flagelado, respectivamente 10 e 15 minutos. Na 2º vez ardeu a morança do chefe da tabanca, único acidente ocorrido.

No dia 14 a A/D de AMEDALAI é atacada cerca de 20 minutos.

Não houve mortos nem feridos, mas arderam 05 moranças.

42. NOSSAS TROPAS

a) Acções e Operações mais importantes
- Acção «GUARIDA 4» por 03 GRCOMB da CART 3494 com patrulhamento e emboscada na região de XIME/PTA VARELA, sem qualquer contacto.

b) Conclusões
- Novamente se destaca a falta de contactos com o inimigo que tem vindo a optar à distância e implantação de minas contra as Nossas Tropas.

9º FASCÍCULO

DEZEMBRO 1972

43. SITUAÇÃO GERAL

- Principalmente na ocasião das festividades do Natal e Ano Novo a actividade Inimiga costuma avolumar-se. Porém, contra as expectativas, nenhum Aquartelamento das NT nem A/D foram flagelados ou atacados.

A circulação na estrada XIME/BAMBADINCA foi sobressaltada pela emboscada à segurança diária que ali é garantida.

A navegação do R. GEBA voltou a ser objecto de pressão, traduzido no ataque à BOR.

44. TERRENO

- A vegetação continua a oferecer uma paisagem desprovida da profusão de arbustos verdejantes, entrecortada por vestígios de queimadas.

45. INIMIGO

a) Sub-Sector do XIME
- Em 01 pelas 07,30 horas o grupo especial de «BAZOOKAS» de COLUNA DA COSTA e o bigrupo de MAMADU TURÉ e PANA DJATA emboscaram na PTA COLI o 1º Grupo de Combate da CART 3494 que garantia a segurança ao tráfego da estrada XIME/BAMBADINCA.

A emboscada foi conjugada com o accionamento de 02 minas comandadas à distância. As NT sofreram 02 feridos graves e os guerrilheiros 02 capturados, perdendo uma pistola, 01 espingarda automática, 01 L.G. Fog. (Lança Granadas Foguete) e 02 granadas de origem soviética. É a segunda acção deste tipo que se desencadeia no lugar (a primeira verificou-se em 22ABR72), desde que o BART 3873 iniciou a sua comissão.

Em 30 pelas 08,30 horas um grupo inimigo não estimado flagelou a BOR e o Rebocador em (XIME 3D4-54), PTA VARELA, causando 02 feridos às NT.

01DEC1972 - XIME

b) Conclusões
- O P.A.I.G.C. (Partido Africano Independência Guiné e Cabo Verde) optou pelas acções directas envolvidas no impedimento do tráfego terrestre e fluvial, transgredindo assim a tendência normal dos ataques à distância lançados sobre as nossas bases.

46. POPULAÇÃO

- Embora o Partido se tenha vindo a esforçar pela conquista das populações, há sintomas neste final de 1972 de que a adesão incondicional e total é meta inatingida.

Um categorizado chefe, JOÃO BERNARDO VIEIRA (NINO), em visita de inspecção, bateu nalguns guerrilheiros, alegando que os maus tratos infligidos à população a levavam a apresentar-se às Autoridades Nacionais.

Ora este pequeno conflito espelha que o P.A.I.G.C. não controla os civis como desejaria e daí o recurso a métodos violentos que são sempre o derradeiro expediente.

47. NOSSAS TROPAS

a) Acções e Operações mais Importantes

- Acção «GERMANO 2» de 01 pelas 07.20 horas até às 13,00 horas do mesmo dia pela CART 3494 a 03 GRCOMB e apoio de 01 parelha de FIAT’s em reconhecimento da base de fogos e trilhos de retirada IN na emboscada na PTA COLI.

- Operação «GUARDEAR 2» de 18 pelas 06,00 horas a 19 até 18,00 horas a cargo do Pel Rec DAIMLER 3085, 01 GRCOMB da CCS, 03 da CCAÇ 12, 02 da CART 3493, 02 da CART 3494, pel’s Caç Nat 52 e 54, pel’s Mil 201, 203, 241, 242, 243,Gemil 309 e apoio aéreo de 01 heli-canhão, em segurança próxima e afastada a BAMBADINCA.

- Acção «GUARIDA 9» das 12,00 horas às 18,00 do dia 30 por 02 GRCOMB da CCAÇ 12 e 01 da CART 3494 em reconhecimento da base de fogos e retirada no ataque à BOR e REBOCADOR na PTA VARELA. Esta força era comandada pelo comandante do BART 3873, Cor, Art. ANTÓNIO TIAGO MARTINS. Antes o 20 PEL ARTª bateu a zona e a F.A.P. lançou-se na perseguição dos rebeldes.

Em nenhuma das acções acabadas de resumir, incluindo a operação, se travaram contactos.

b) Conclusões
- Uma vez mais se observa a ausência de contactos nas iniciativas empreendidas pelas NT e a rapidez dos meios aéreos, quando a eles se recorre, em actuação combinada com as forças terrestres:

Na «GERMANO 2» a FAP compareceu ao chamamento minutos depois, o que se repetiu no dia 30 em perseguição dos atacantes da BOR e REBOCADOR.

(Continua)

Um abraço Amigo,
Sousa de Castro
1º Cabo Radiotelegrafista da CART 3494/BART 3873

Fotos: © Sousa de Castro (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

25 de Março de 2010 >
Guiné 63/74 – P6045: Actividade da CART 3494 do BART 3873 (3): Parte 3 (Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - P6087: Notas de leitura (86): A Lebre, de Álvaro Guerra - a intervenção da tolerâcia numa escrita que escapou à censura (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2010:

Queridos amigos,
É sempre bom voltar a reler quem escreve bem.
Aguardo esperançadamente que um dos nossos tertulianos me possa emprestar a obra que ainda falta fazer a recensão, “O Capitão Nemo e eu”.
E agora volto aos poetas nacionalistas que acreditaram no Portugal Império.

Um abraço do
Mário


A invenção da tolerância numa escrita que escapou à censura

Beja Santos

“A Lebre” é um dos primeiros romances de Álvaro Guerra (Prelo Editora, 1970), pertence ao conjunto de obras de marcada influência neo-realista e do nouveau roman, onde pontificaram Alain Robbe-Grillet e Nathalie Sarautte. Importa recordar que Guerra se sentia devedor de Alves Redol (também ele de Vila Franca de Xira) e que a sua estadia em Paris, depois de ter combatido na Guiné, o abriu ao estilo solto, fragmentário de diferentes narrativas que oferecem ao escritor e ao leitor diferentes possibilidades de entendimento da realidade. “A Lebre” é mais uma novela e goza da cumplicidade de uma ampla abertura ao neo-realismo não escolástico e às composições desse novo romance que marcou a literatura europeia entre os anos 50 e os anos 70.

Basta atender ao arranque da obra: “Era belo, como quem guardava muito de uma infância não pura mas indefesa, beleza ainda próxima do sono da criança, de costas, cabelos negros espalhados na almofada branca, braços abertos em anglo recto, mãos fechadas, ainda indecifrável beleza de começo e separação”. E segue-se um longo período, tal como encontramos nas obras anteriores, uma cavalgada de sentimentos, descrições, homens, animais e coisas em trepidação. As personagens são senhores da terra, com respeitáveis pergaminhos, gente disposta a tudo para que a tradição não se perca. Lemos e recordamos “Barrancos de Cegos”, de Alves Redol, e “O Delfim”, de José Cardoso Pires, obras incontornáveis da década de 60. A estes senhores da terra, tradicionalistas, respeitadores da ordem estabelecida, segue-se a geração mais jovem, indiferente a tais valores, pronta para as transgressões. Como pano de fundo, numa linguagem irrecusavelmente antropomórfica, uma caçada à lebre, perto de Monte Vau: a tragédia dos humanos e dos animais vai cruzar-se. Naquela lezíria a caminho do Alentejo chocam-se destinos como o de Inês, filha de Mário Bernardes que tem por amante Miguel Diogo Meireles, o dono da coutada e António seu filho. Inês vai para Paris e aí terá uma relação amorosa com Sekou, um guineense. Custa a crer que a censura não se tenha apercebido da carga explosiva e indecorosa destes conteúdos, mesmo tratados com cuidados cabalísticos. Inês pergunta a Sekou quando é que ele vai libertar os seus irmãos, ele está apto a lutar por uma terra nova, “encontrando-se em trânsito acidental pelas capitais antigas, cumprindo o instrutivo mas dogmático circuito Pequim – Praga – Paris até à tal nova terra onde chegará armado e com duas ou três recordações de factos e gente que, na verdade, não lhe pertencem pois que de seu terá ainda o que há-de estar na mira da sua espingarda ou no lugar onde a mina será dissimulada”. O sacrilégio maior é que António anunciou ao senhor da terra que não irá à guerra, aquela que a ordem estabelecida cauciona lá longe. A geração da ordem está a entrar em pânico: uma branca que se entrega a um preto, um filho de linhagem que recusa os deveres da guerra.

Os parágrafos com vida interior encadeiam-se, a trama desvela-se como se tivesse um fio condutor de tragédia grega, os humanos estão tensos, os galos também, começou a batida. O filho vai desaparecer a caminho de Paris, sente-se abandonado por Deus, mesmo sabendo que há filhos de gente amiga e conhecida que se espalhou pela Suécia, Genebra e Argel.

Na caçada, um dos mais belos galgos não percebe as artimanhas da lebre, esbarronda-se contra o arame farpado, fica cega e condenada a morrer. Miguel entra no seu Lancia, mete o revólver no porta-luvas, atira-se à estrada, o crime do filho e da cabra da amante que dorme com um preto não ficarão impunes. Próprio do nouveau roman, Álvaro Guerra antecipa e recua, empola os discursos interiores, sumaria os estados de tensão, arredonda-os ao maior denominador simples. É um permanente vaivém entre Monte Vau e Paris, no meio uma caçada à lebre e um carro que se irá estampar entre Salamanca e Valladolid, Miguel não chegara ao seu destino e antes a lebre dera provas de astúcia condenando o galgo: “Agora sim, o instinto da lebre será a sua salvação – ei-la que se furta, enfim, sob o arame farpado, no último momento, como se não lhe bastasse escapar e precisasse também de vingar-se. Na perseguição cega que o assombra, Scorpian II - «Os arames! Os arames!», «Aquele cão vai matar-se!» - choca de frente com as pontas aguçadas que lhe rasgam a pele e carne, lhe furam os olhos, vergastam o peito, o envolvem em dor e sangue, de modo que o ganido lhe sai da goela como um urro e logo tomba num inútil debater-se contra o irremediável, de veias subitamente abertas esguichando o espesso líquido quente, uma das patas dianteiras suspensa, vertical, presa naquilo que lhe estilhaçou tendões e nervos treinados para correr e ganhar, um uivo prolongado e agudo, forçando a terra numa urgência de para dentro dela entrar...»”.

Esta a escrita de Álvaro de Guerra, há um pouco da Guiné, de que a censura não se apercebeu. Uma escrita que prenuncia outras obras muito belas que vieram depois.

Pude ler “A Lebre” graças à amabilidade do nosso camarada Manuel Joaquim. Continuo à espera que uma outra alma caridosa me empreste o último livro de Álvaro de Guerra que fala da Guiné: “O Capitão Nemo e eu”. Quem o possui, faça favor de dar sinal de vida.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6083: Notas de leitura (85): Vestiram-se os Poetas de Soldados, antologia de Rodrigo Emílio (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6086: Ser solidário (63): Gente feliz... com lágrimas: a Cadi e a sua filha, a Maria Alice do Cantanhez (Pepito / Luís Graça)












Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 6 de Março de 2010 > O Pepito e o Domingos Fonseca, da AD - Acção para o Desenvolvimento, fez a entrega pessoal de roupinhas enviadas pelo correio (!) pela Alice de Lisboa para a Alice do Cantanhez, a filha da Cadi, nascida a 17 de Janeiro último, neta de Abdul Indjai,  antigo guerrilheiro do  PAIGC (onde foi fuzileiro), e bisneta de um antigo militar que serviu o Exército Português em Macau durante a II Guerra Mundial.

Fotos: © Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento (2010). Direitos reservados


1. O subtítulo deste poste (Gente feliz... com lágrimas) é roubado, com a devida vénia,  ao título homónimo de um romance (1988) do  nosso ilustre camarada  açoriano João de Melo, furriel miliciano enfermeiro em Angola, na CART 3449 (1971/74), experiência que já o tinha levado a escrever Autópsia de um mar entre ruínas (1984), seguramente um das obras de referência da já vasta literatura da guerra colonial.

Conheci a Cadi (ou melhor, conhecemos, a Alice, a Júlia, o Nuno Rubim e eu) por ocasião da nossa visita ao sul da Guiné, no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008). Tinha o ar de pequena gazela frágil, meiga, carente de afecto... Estava grávida. Essa história já aqui foi contada:


Cadi, de seu nome.
Amorosa.
Uma ternura.
Uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
apascentando na orla da bolanha.
Era nalu.
Vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
com direito a pensão
ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
em Iemberém,
no início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
das crianças africanas,
quando vêem uma Mulher Grande, branca. (...) (*)

A Cadi caíu nas boas graças das nossas senhoras, adoráveis, amorosas e maternais: a Júlia Rubim, a Alice Carneiro, a Isabel Levy Ribeiro, esposa do Pepito... Vivia em Farim do Cantanhez. Uns meses depois, em meados de 2008, viemos a saber que ela tinha estado  às portas da morte. E que  perdera o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses (Nuninho, em homenagem ao capitão fula, o Cor Art Ref Nuno Rubim). Como eu escrevi na altura: "Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil"...

Valeu-lhe na altura a solidariedade dos novos amigos, Júlia e Nuno Rubim (dois seres humanos de eleição!), bem como do jovem Moisés Caetano Pinto, o Tino, que trabalha para a AD, a ONG do nosso amigo Pepito (**). A Júlia e o Nuno proporcionaram à Cadi os cuidados médicos de uma clínica privada, em Bissau, sem o que muito provavelmente teria morrido, juntamente com o seu neném...

Em 2010, a Alice e eu mantivemos alguns contactos telefónicos com a Cadi.   Em Dezembro de 2009, o João Graça, médico  e músico, está de férias na Guiné (com uma semana de voluntariado em Iemberém, no Centro de Saúde Materno-Infantil, local) (***). Na sua bagagem, levava roupas, um telemóvel e algum dinheiro para a Cadi. Recomendaram-lhe que  só fizesse a entrega no último dia da sua estadia em Iemberém...

Espantosa coincidência, o João vai observar em Iemberém uma jovem grávida que virá a descobrir um ou dois dias depois ser a Cadi. Na conversa possível com alguém que mal fala o português, o João ficou a ser o nome do futuro cidadão guineense:
- Si for menino, será Luís... Si for minina, será Maria Alice - esclareceu a grávida, de sete meses...
- Estranho, são os nomes dos meus pais... - lá pensou ele, para os botões da sua bata branca...

Ao fim da tarde, o João está a telefonar-nos, em plena Iemberém, a relatar o seu primeiro dia... Diz-nos que ainda não  encontrara a Cadi, ou melhor, ainda não sabia quem era nem como encontrá-la... Sugerimos-lhe que perguntasse a alguém...
- A Cadi é aquela que te vai servir o pequeno almoço todos os dias...

A Cadi estava ali mesmo, por detrás dele.. Trabalhava agora na estrutura hoteleira da AD, em Iemberém, servindo à mesa. A família vivia em Farim do Cantanhez, onde o João irá uma manhã, muito cedo, com os guias, para observar um dos grupos de daris (chimpanzés) que circulam pelo Parque Nacional do Cantanhez. Conheceu o pai (***) e também a avó da Cadi...

O João que acabara de observar  a Cadi como médico, ganhou um nova amiga...Na altura, a grávida parecia estar de boa saúde e o bebé também, embora com riscos de nascer prematuramente.  Umas semanas depois,  soubemos que a Cadi  tinha  parido uma moça (como se diz no Alentejo), a que pôs o nome Maria Alice... Data de nascimento: 17 de Janeiro de 2010. 

A madrinha portuguesa, Alice Carneiro,  aproveitou as facilidades concedidas pelos CTT portugueses e pela AD para mandar as primeiras roupinhas para a Alice do Cantanhez... Mandou duas caixas, pelo correio (tarifa:  2,98 € por caixa até 2 quilos/ endereço postal: AD - Acção para o Desenvolvimento, Caixa Postal 606, Bissau, República da Guiné-Bissau).

E a verdade é que dois dias depois (!) a encomenda chegava ao destinatário... O Pepito, simpaticamente, fez questão de nos dizer que entregava pessoalmente a encomenda à Alice do Cantanhez logo que fosse em trabalho a Iemberém...

A 6 de Março, o Pepito mandou-nos um mail, com fotos em anexo:


Luís: Estou a regressar do sul onde entreguei à Alice de Cantanhez as roupas que vocês mandaram. A Cadi delirou e agradece muito. Regressou a Farim,  toda satisfeita.  Seguem 10 fotos em 2 emails. Tenho mais noticias dos bloguistas que te irei enviar. Abraços, Pepito.

Respondi na volta do correio:

Pepito: Não imaginas a alegria da Alice de Lisboa ao saber notícias de (e ver pela primeira vez a) Alice do Cantanhez, que ela já assumiu como afilhada!... Recebemos a tua surpresa, com emoção, são estas pequenas coisas da vida que também nos dão alegria e satisfação. Da tua parte foi um gesto muito bonito, que nos tocou muito, fazeres questão de ir pessoalmente a Iemberém entregar a encomendazinha... Estou também grato ao Domingos, tenho que lhe mandar uma lembrança, um dia destes (Ele gosta de ler ?).

Olha, Pepito, a Alice de Lisboa quer que a Alice do Cantanhez aprenda a falar a e a escrever bem o português para ser uma grande mulher e uma cidadã orgulhosa da sua terra e ela poder comunicar com ela e com a mãe... Está disposta a em pagar-lhe a escolinha, em Farim ou em Iemberém. Mas até lá é preciso que a Alice se torne forte e saudável... Gostávamos de saber algo mais sobre a  Cadi (que mal fala o português, ao telefone, o João deixou-lhe um telemóvel...), o marido, a família da Cadi, em especial o pai, antigo combatente...

Descobri também há dias um antigo soldado meu, o José Carlos Suleimane Baldé, que foi meu intérprete, guia, guarda-costas, cozinheiro, confidente e amigo, e que eu ajudei a fazer a 4ª classe!!! Vive em Amedalai, a seguir ao Xime, na estrada para Bambadinca... Já lhe publiquei um poema, e ele escreve bem, tem uma letra bonita... Há uma jurista do Tribunal de Contas, a Dra. Maria Odete Cardoso, que se corresponde com ele... Se alguém da AD passar por lá, vê se sabes notícia dele...

 Um abração do Luís. Chicorações da Alice e do João e da Joana.


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Notas de L.G.:

(*)  Vd. poste de 24 de Setembro de 2008 > Blogantologia(s) (II) - (72) Nasceu e morreu um pretinho da Guiné [Luís Graça]



(***) O pai da Cadi, Abdú Indjai,  nalu, é um "combatente da liberdade da pátria", guerrilheiro do PAIG, desde 23 de Janeiro de 1963. Nasceu em 1947, em Farim de Cubucaré. O seu pai, avô da Cadi, esteve ao serviço do exército português em Macau, possivelmente durante a II Guerra Mundial. Publicaremos em breve a "biografia" que nos foi enviada pelo Pepito.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Guiné 63/74 – P6085: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (31): Perfeito. Um sítio onde possa ver o céu!


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66) e enviou-nos uma mensagem (a 31ª), com data de 29 de Março de 2010:

Camaradas,

Depois de uma longa ausência, justificada por estar, ou melhor, continuar em variadas frentes - avô itinerante, jornalista, blogger (já passei as 9.000 páginas visitadas em 7 meses... no meu blogue) e sei lá que mais - volto ao vosso contacto, com uma história de vida.

Uma história que começou há muito tempo - na guerra, na Guiné - e continua nos nossos dias com outras armadilhas.

Porque também na vida real, principalmente depois dos 60, há "caminhos" onde se corre o perigo de encontrar (e pisar) minas A/P. E ficar sem uma perna, amarrado a uma cama e/ou a uma cadeira de rodas.

Todos nós, ex-Combatentes, "rapazes" que começamos a estar "fora da garantia", corremos riscos idênticos ao do protagonista da história que hoje vos envio.

É uma fase difícil do "campeonato" da vida. Apesar dos exemplos à nossa volta julgo que ninguém está preparado. Se acontecer é muito importante ter família e amigos por perto.

O PERFEITO
Um sítio onde possa ver o céu!
E se quem o diz é um preso, no primeiro dia de liberdade após o cumprimento de uma longa pena de prisão, percebe-se a intenção e a força do adjectivo.
Mas “Perfeito” pode ser também um apelido, embora não seja vulgar.
Conheci na minha vida militar um soldado com esse apelido.
António Araújo Pinto Perfeito era um militar da C.Caç. 675 com quem convivi de perto durante cerca de dois anos, na Guiné.
Colaborou comigo num “jornal de parede” que fizemos na Companhia na altura do primeiro Natal passado em Binta, sede da “quadrícula” que nos calhou em sorte nos longínquos anos 60.Mais propriamente entre Julho de 64 a Abril de 66.
O Perfeito era um soldado com o “nariz empinado” que falava sem medo com patentes superiores à sua.
Alfacinha de gema tinha algum “complexo de superioridade” que, entre os seus pares, não lhe granjeava grandes simpatias.
Como qualquer militar que se “preze” acabou a sua passagem pela vida militar com um castigo e um louvor. A “porrada”, perfeitamente estúpida, valeu-lhe a despromoção de 1º. Cabo a Soldado, por não ter respondido satisfatoriamente a um pergunta do Comandante da Unidade, Coronel Paletti, sobre umas peúgas que estavam penduradas num banco perto da casa da guarda!!!
Esta história pode ser estranha e surreal a quem não andou na tropa. Para quem foi militar sabe perfeitamente que isto, ou pior, pode acontecer num dia de azar…
Curiosamente soube desta história hoje, dia 28 de Março de 2010, pelo meu amigo Belmiro Tavares, que foi Alferes Miliciano na mesma C.Caç. 675.
Tinham passado poucas horas em relação à visita que fizemos à casa do Perfeito, no Bairro da Encarnação, em Lisboa.
O Perfeito está muito doente. Está acamado e recupera de uma operação recente. Devido a diabetes amputaram-lhe uma perna. Estava com uma máscara para lhe auxiliar a respiração quando o visitámos no seu quarto. O seu aspecto era impressionante – pela magreza e pela exagerada dilatação das suas narinas.
Depois dos cumprimentos iniciais pediu a sua mulher para lhe tirar a máscara para poder conversar com os seus amigos da tropa: o Tavares, o Figueiredo e o cronista.
Surpreendeu-me o facto de as suas primeiras palavras serem a respeito do Benfica e da sua satisfação em relação à vitória do dia anterior sobre o Braga. Conversámos algum e tempo e, obviamente que, à distância no tempo, fomos ter, sem dificuldade à evocação do nosso “jornal de parede” dos velhos tempos da Guiné. O Perfeito até se recordava do tema do seu artigo: “O boato é crime”.
Disse-nos como passava os dias: a dormitar e a ver televisão. Já se levantava e ia, de cadeira de rodas, para outros compartimentos da sua casa.
- E não vais até ao jardim, perguntei.
Por enquanto não, porque não posso apanhar frio.
Despedimo-nos ao fim de algum tempo porque era hora de almoço.
Fiquei um pouco para trás pois queria dar um abraço ao Perfeito. Não consegui evitar umas lágrimas que, infelizmente “contaminaram” a boa disposição (aparente) do Perfeito.
A mulher acompanhou-me à porta.
O Tavares e o Figueiredo já estavam a entrar no carro.
- Ó Oliveira custa-te a andar, perguntou o Tavares.
- Custa-me, pá, respondi. - Estou feito num “oito”…
Cá fora estava um dia de sol. Parece que finalmente íamos ter Primavera.
Desejei sinceramente que o Perfeito, dentro em breve, pudesse vir até ao seu jardim.
A um sítio onde possa ver o céu.

Um grande abraço e votos de boa Páscoa.

Até breve e até sempre,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

10 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5799: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (30): Força Carlos

Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


1. Mensagem de José Câmara* (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 25 de Março de 2010:

Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais um pouco do meu passeio pela Mata dos Madeiros.
A Páscoa de 1971 deixou-me marcas bem vivas. Tenho pena, sim, de no meu álbum de recordações não haver fotos alusivas aos acontecimentos desse dia.
No contexto da história também uso algum palavreadao que, ao tempo, era tabú nos Açores. A intenção é relatar o que então se passou.

Um abraço amigo para ti e para todos os camaradas,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (16)
Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros


Para os militares da CCaç 3327 a Páscoa, a festa religiosa mais importante do calendário litúrgico do povo açoriano, passada na Mata dos Madeiros foi diferente. Ali, no meio do mato, o cordeiro pascal seria protagonizado pelo Furriel Miliciano Fernando Pedro Ramos da Silva, que passaria à classe de sargentos milicianos casados.

Não consituíu surpresa que, a meio da tarde do dia de Páscoa de 1971, o Comandante da Companhia Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, um homem culto e humanista, mandasse regressar os dois Pelotões que se encontravam no mato. Para ele, a Páscoa tinha que ser partilhada em família, e a CCaç 3327 já o era; também havia que celebrar o casamento do Furriel Miliciano Fernando Silva do 2.° GComb.

O nubente, sorridente, surgiu do mato acompanhado por muitos amigos. Vinham todos vestidos da mesma cor, com adornos de todos os gostos (fossem eles morteiros, metralhadores, granadas e outros tais), perfumados com o suor de alguns dias, e cheiinhos do pó da terra que lhes servia de leito desde que chegaram à Mata. Tanto assim era que se se passasse a unha na pele, lá ficava um sulco parecido com os regos feitos pelos arados nas terrinhas dos Açores.

José Câmara no seu belo, arejado, solarengo e confortável escritório da Mata dos Madeiros.

A messe improvisada que também foi inaugurada nesse dia, e nunca mais foi usada, cujo ar condicionado era proporcionado pelos buraquinhos entre as folhas de palmeira, serviu de palco a estas celebrações da Páscoa e Casamento por Procuração.

Depois do almoço melhorado (se bem me recordo bacalhau com grão), seguiram-se os discursos, atentamente escutados pelos presentes. O mais aguardado era, sem dúvida alguma, o do Fur Mil Fernando Silva. Estoicamente, com aquele seu ar de bébé sorridente, enfrentou a plateia formada pelos seus camaradas, e botou palavra:

- Porra, eu aqui a ração de combate e ela lá, a comer bolo!

Os camaradas maravilhados com aquele longo e corajoso discurso desataram aos vivas, aos bravos, às palmas e às palmadinhas nas costas do nubente. Ninguém queria perder esta ocasião única na história da CCaç 3327, e desejar a melhor das luas-de-mel ao feliz noivo. A emoção era forte. Em algumas caras viam-se correr algumas lágrimas.

Passada a euforia e a emoção do momento, os chefes de mesa, homens experientes nestas coisas de casamentos elegantes, abriram as portas brancas de um frigorífico a petróleo que por ali tinha sido montado. Por detrás delas estavam as dançarinas que iriam deliciar os presentes.

Aleluia!

Eram todas loirinhas, fossem elas Sagres ou Cucas. Em corridinho saltaram para as mesas improvisadas, chocando umas nas outras. O tilintar dos seus adornos espicaçavam a nossa curiosidade, e aquele "pop" do abrir a boca soava a beijos mandados com a palma da mão, e faziam crescer água na boca. Aquelas meninas evoluíam nuas, frescas, jorrando suor em bica (tal era o calor) por todos os poros. Retorciam-se em velúpias de prazer todas as vezes que lhes tocávamos, para desaparecerem por encantos, todas as vezes que as beijávamos. Eram beijos de paixão contida, sôfregos de dias sem pinga.

José Câmara: na Mata dos Madeiros o visual adaptava-se à medida do tempo ali passado

De repente todos se calaram. A realidade voltava ao presente. Na face de alguns daqueles meninos ainda rolavam algumas lágrimas rebeldes. Ali, ao nosso lado, estava a guerra.

O Fernando Silva tinha que dar continuidade à sua missão. Tinha que voltar para o desconhecido, para a mata, para a segurança nocturna afastada. Vi-o caminhar com o seu grupo.

Dizem as más-línguas do tempo, que o jovem noivo cometeu o pecado de adultério durante a noite. Não se sabe ao certo o que o levou a cometer tamanho sacrilégio.

Agarrado à sua amante de ocasião, a G-3, entre suspiros, ais e velúpias de prazer a que não era alheio a ajuda do mel deixado pelas formigas, mosquitos, e outros picantes e trepadores, o Fernando lá ía atraiçoando a sua jovem esposa, que ainda comia bolo em Lisboa, perante o olhar maroto e complacente da lua que pairava sobre a Mata dos Madeiros. O barro vermelho da Mata era testemunha silenciosa dos orgasmos prazenteiros da sua traição.

Nunca se soube, se a jovem esposa perdoou o facto de ter sido, assim, repudiada na sua noite de núpcias.

No dia 13 de Abril de 1971 escrevi uma carta à minha madrinha de guerra. Foi assim que me referi a esta história:

"Tivemos uma jantarada especial, pois houve um casamento por Procuração de um Furriel da minha Companhia. Um casamento que nós jamais poderemos esquecer... discursos... e algumas lágrimas à mistura.
Enfim, este foi o meu Domingo de Páscoa. Saudade e nada mais."


Infelizmente, e após a nossa comissão, nunca mais tive contacto com o Fernando Silva. Dele apenas sei que viveu durante alguns anos na Póvoa de Santo Adrião.

José Câmara
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6067: (Ex)citações (53): As tropas Pára-quedistas preparavam-se para a guerra como para uma cerimónia em Parada (José da Câmara/Hoss)

Vd. último poste da série de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6018: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (15): Um erro de periquitos e o piar dos nossos camaradas

Guiné 63/74 - P6083: Notas de leitura (85): Vestiram-se os Poetas de Soldados, antologia de Rodrigo Emílio (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Sou um sortudo, já tenho as obras do Cristóvão de Aguiar, amanhã falo de A Lebre do Álvaro Guerra e depois tenho o Álamo Oliveira em cima da mesa.
É impressionante o número de escritos de açorianos (José Martins Garcia, Cristóvão de Aguiar, Álamo Oliveira... mas há mais).
Aos poucos, vai-se clarificando esta literatura pródiga da guerra da Guiné.
Uma agradável surpresa! E que venha um especialista proceder à respectiva antologia.

Um abraço do
Mário


Vestiram-se os poetas de soldados

Beja Santos

“Vestiram-se os Poetas de Soldados, Canto da Pátria em Guerra”, é o título da antologia seleccionada e prefaciada por Rodrigo Emílio, sem dúvida um dos poetas neofascistas portugueses mais importantes. A antologia foi apresentada no dia 1 de Junho de 1973, data da abertura do polémico 1.º Congresso Nacional dos Combatentes que, como escreve Riccardo Marchi em “Império, Nação, Revolução, As Direitas Radicais Portuguesas no Fim do Estado Novo (1959 – 1974)” (Texto Editores, 2009), foi o último grande evento em que participaram os nacionais-revolucionários. Rodrigo Emílio insinua que há uma apreensão que lavra no espírito de todos os combatentes “só à simples ideia de que possa coincidir este acontecimento de confraternização com um período de desonra para o país”. Como é do conhecimento de todos, os neofascistas já estavam, ao tempo, em total desavença com Marcelo Caetano e a sua política federalista. Para eles, o Portugal eterno era irrevogável. A antologia intercala poemas de Fernando Pessoa, António de Navarro, Miguel Torga, Pedro Homem de Mello, Natércia Freire, Goulart Nogueira, Fernando Guedes e Couto Viana, alguns deles nomes sonantes do nacionalismo, com poesia de expedicionários apoiantes do ideal do Portugal eterno, aqueles que se sentiam unidos pelo princípio intransigente de que o Império atravessava oceanos e ia até Timor. Rodrigo Emílio (1944 – 2004) foi alferes em Moçambique e deixou uma obra poética assinalável, um misto de nacionalismo e de futurismo, recorrendo frequentemente à sátira e a imagens contundentes. A selecção orienta-se pelo verso épico, os poetas soldados glorificam a gesta do império, dizem-se prontos a morrer por ele. Logo Jorge Silveira Machado, alferes miliciano que combateu na Guiné em 1963 e foi ferido em campanha:

Deixámos tudo sobre o cais
Mas tudo veio connosco e muito mais
No silêncio descobri a hora exacta
de recolher os frutos
e o silêncio que ganhei no chão
– que um homem quando morre e quando mata
ainda tem alguns minutos
de ganhar a paz na própria mão

Só conta a hora em que se rasga a estrada
mesmo que o inimigo a tenha já cercada

a hora de soltar o fogo e criar vida
a hora de soltar a morte e vê-la erguida
à nossa volta
a hora de cerrar os dentes sobre o inimigo



Armor Pires Mota, aqui sobejamente referenciado também viu em letra de forma lançado o seu protesto:

Basta!

Ah, não me gritem, não! o que a vida é,
que dói a vida, mil vezes suja e gasta,

vós que sois heróis à mesa do café
num comodismo vão de chá-canasta.

Vinde: a bandeira está de pé!
Rasgai os pergaminhos velhos da vossa casta!



E noutro poema:

– Irmãos, quem não souber ser eterno até ao fim,
Rasgue já a bandeira, não venha atrás de mim!...



João de Matos e Silva, foi também alferes miliciano, a sua épica irmana com a de todos os outros:

Na luz incandescente que se alteia,
cai desprezado o rito da batalha.
E no estretor da morte em agonia,
desfaz-se em sombras o clarão do dia
e cala-se a metralha.
Este é o tempo, sim. Este é o tempo...
Vem da penumbra a luz surgindo embora.
Soam clarins na mata-desta-hora
que o medo não desterra.
Sinal de quase paz
num tempo que é de guerra.



De Almeida Matos, outro combatente na Guiné:

Jovem ainda, loiro de ilusões
olhar onde morava a luz do céu,
mas decidido e forte, a dar lições,
de coragem e nobreza. Assim morreu.



José Valle de Figueiredo foi um dos ideólogos do neofascismo português. Como escreveu Riccardo Marchi, o seu nome aparece associado a diferentes publicações como as revistas de 57, Cidadela e Itinerário (o livro “Vestiram-se os Poetas de Soldados” é uma edição da Cidadela) e irá comparecer, tal como Rodrigo Emílio no 1.º Congresso dos Combatentes. Combateu igualmente na Guiné, de 1967 a 1969. Temos finalmente Luís Sá Cunha, que combateu na Guiné de 1969 a 1971 e cuja lírica acarreta um aviso premonitório:

Ficou-me por destino
ser memória
da vontade que com outros pereceu
– Só o Passado se vê no espelho
da História,
sempre o Presente em presença
de si se esqueceu.
Que a Pátria Inteira
viva.
O resto, nada importa.
Que só não podemos ser
em nossas vidas
as ruínas vivas de uma Pátria Morta!


Antes desta antologia, Pinharanda Gomes coordenara “O Corpo da Pátria, antologia poética sobre a guerra no Ultramar, 1961 – 1971” (Editora Pax, Braga – 1971). Desses poetas da frente que estiveram na Guiné falaremos mais tarde.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6070: Notas de leitura (84): O Pé na Paisagem, de Filipe Leandro Martins (Beja Santos)