Os Marados de Gadamael
e os dias da Batalha de Guidaje
Parte VI
Daniel de Matos
Os Dias da Batalha
20 de Maio
As flagelações sucedem-se dia após dia e praticamente todos os edifícios já sofreram danos. O nosso abrigo, qual cabeça de cogumelo pousada no chão, e muito poucos outros telhados são o que resta de construções por esburacar. Sem conseguir dormir, fumo mais um Português Suave e caminho ao longo das valas repletas de homens deitados no fundo. O dia rompe, preguiçoso. Avisto Marcelino da Mata, palma da mão direita para cima, quatro dedos a dobrarem-se e esticarem-se com intermitência, “toca a levantar”, assim acorda os homens que pernoitaram na mesma vala ziguezagueante que nós, só que lá no extremo oposto.
Ele e este seu Grupo já tinham estado connosco em Gadamael, (na altura, um grupo reduzido de dezasseis ou dezoito elementos), de lá saíram para uma Operação de que não tivemos informações. Só sei que lhes abri as armadilhas à saída da pista de aviação e, mais adiante, em Viana, para poderem passar. Seguiram acompanhados do guia Queba Mané, (que regressou sozinho quarenta minutos depois) em direcção a Gadamael Fronteira (daí em diante era chão da Guiné-Conacry). Não os vi carregados de mochilas e mantas, nem de bornais e rações de combate, acartavam apenas dois cantis de água cada um e cinturões pejados de armamento. Só voltaram à base passados três dias, onde um batelão os aguardava para os transportar, julgo que para Cacine. Era um grupo mítico de que se contavam estórias, inclusive as mais idiotas e macabras, tais como a de coleccionarem orelhas de inimigos abatidos ou apanhados, serem antropófagos, levarem apitos e desatarem a correr atrás do IN disparando e apitando ao mesmo tempo, etc.. Mas estas estórias (verdadeiras ou não, tão condenáveis como os actos, porém, que ficaram na História!) apenas se contavam para ilustrar a destreza destes homens, alguns deles evidenciando bastante juventude ainda, durante as operações mais secretas e bicudas para onde eram mandados.
Ouviram-se rebentamentos breves vindos de leste, alvitram-se bombas lançadas pela aviação nos arredores de Fajonquito. Quanto a nós, a partir de hoje veremos que consequências teve a Operação levada a cabo pelos Comandos Africanos e a destruição da base de Koumbamory, fosse ela total ou parcial. Será que vão reduzir-se os ataques?
Antes da investida dos Comandos e do bombardeamento da Força Aérea, o PAIGC dispunha no local das seguintes unidades: Corpo de Exército 199/B/70, com quatro Bigrupos de Infantaria e uma Bateria de Artilharia; Corpo de Exército 199/C/70, com cinco Bigrupos de Infantaria e uma Bateria de Artilharia; Grupo de Foguetes da Frente Norte, com quatro rampas; três Bigrupos de Infantaria, um Grupo de Reconhecimento e uma Bateria de Artilharia do CE/A/70, deslocadas de Sare Lali (zona leste); e um Pelotão de Morteiros de 120 milímetros.
O pessoal do Batalhão de Comandos arranca em direcção ao sul. Desloca-se a pé (em bicha de pirilau e sem viaturas), não podendo assim transportar nem os dez mortos resultantes dos confrontos de Koumbamory nem os vinte e dois feridos graves resultantes da Operação Ametista Real. Há outros homens que, com mazelas e ferimentos mais ligeiros não estão em condições de aguentar a marcha, ou de a consumar com segurança e ficam também em Guidaje.
Os dez corpos, cuja identificação mencionarei mais adiante, virão mais tarde a ser aqui sepultados. Não há notícia dos três desaparecidos em combate, cujos corpos ficaram tombados em território senegalês. Em toda a acção, os Comandos Africanos dispararam 26.700 munições de G3 e 4.600 de Kalashnikov (todas de 7,62mm), 292 granadas de lança-granadas foguete (6 e 8,9 cm), 71 granadas de RPG-2 e RPG-7, 195 munições de morteiro e 268 granadas de mão (ofensivas e defensivas).
Num terreno descampado do lado de lá da fronteira, três crianças de varapaus controlam de longe a numerosa manada que levam a pastar, o que há muito tempo não é habitual ver-se por ali, até porque existem áreas com mais e melhor verdura para o efeito.
Alguém sugeriu mais tarde que o PAIGC desconfiara que o Exército Português havia minado aquele corredor fronteiriço, para vedar a passagem. Dificilmente as NT conseguiriam colocar minas nesse terreno sem despertar a atenção dos vigias, que controlariam permanentemente os nossos movimentos. Na impossibilidade de enviar picadores para se certificar (ficariam ao alcance das nossas armas ligeiras), as vacas a calcorrear o terreno seriam a forma de o testar. Porém, nenhum animal foi pelos ares…
Não consigo recordar-me de quantas vezes terei ido à messe sentar-me e comer uma refeição. Primeiro, porque as horas do tacho são trocadas constantemente e tenho pouca sorte na escolha dos momentos de investida; segundo, porque enquanto duram alguns restos de rações de combate que o pessoal “anfitrião” sacou do armazém, aproveito-me da sua generosidade; terceiro, porque já começo a enjoar-me das salsichas de lata, só o cheiro me dá náuseas. Neste dia começa a faltar o pão, parece que já estão a racionar a farinha, vem uma pequena fatia na borda do prato de cada um e é o que há! E uma bernarda certeira no cocuruto do depósito de géneros arrasou as já de si insignificantes esperanças de um dia nos brindarem com rancho melhorado…
Bem, mas de sentir fome lembro-me perfeitamente (ou talvez não seja fome e apenas pensar que devo mastigar alguma coisa), e dirijo-me à messe, que desta vez está a servir refeições e cheia que nem um ovo. Olho para o fundo e calculo que deve ser naquele balcão que nos devemos servir, tipo self-service, do tal esparguete salsicheiro, prato do dia, não ao almoço e ao jantar, mas à hora de abertura que parece tirada às sortes.
É sabido que os graduados não usam divisas nem galões nos ombros quando partem em Operação, em virtude da ideia de que o inimigo pretende sempre aniquilar quem comanda, em primeiro lugar. Portanto, todos nós, quando saímos do COMBIS de manhãzinha deixámos nos cacifos essas identificações hierárquicas. Entro na messe e oiço um berro estridente, vindo de uma das mesas. Pelos cabelos brancos só pode ser de pessoal do quadro. Deduzo tratar-se do Comandante, e é de facto o Tenente-Coronel Correia de Campos que vejo apontar na minha direcção, de indicador em riste:
– “Adonde” é que você pensa que vai? Ponha-se lá fora imediatamente! Apresente-se primeiro e peça autorização para entrar!
Por decoro, não vou agora descrever o que balbuciei na altura, enquanto rangia os dentes, nem o que me apeteceu e estive mesmo para fazer… Recuei até à entrada da messe, ou refeitório, ou espelunca o lá o que era aquilo. Como não trazia quico não podia fazer continência, pus-me em sentido:
– Apresenta-se o furriel miliciano n.º 19711671, Daniel Rosa de Matos. V. Exa, meu Comandante, dá-me licença que entre?
– Entre! – respondeu sem me olhar, a boca cheia a mastigar o esparguete.
De pronto, virei as costas e saí. Confesso que o que queria mesmo era arremessar-lhe qualquer coisa às ventas, não sei bem o quê, o que apanhasse à mão de semear para lhe dar o troco do enxovalho. Só não o fiz porque alguém me puxou pelo braço e me disse “tem juízo pá, caga mas é no gajo, que é um xico de merda, e vem comer” e acabei por atacar mas foi a dose reduzida de salsicha, apesar do fastio. Sentei-me numa mesa corrida, – não muito distante da do Tenente-Coronel, – onde já estavam de prato vazio milicianos de outras unidades. O que me sussurrou os insultos ao Comandante e me arrastou para ir buscar o prato ao balcão, contou então certas histórias de atitudes que o homem teria tomado em Pirada, – e que não têm cabimento aqui, – e garantiu-me que se não havia whisky na messe era porque ele tinha açambarcado para o seu quarto as cerca de quarenta garrafas que há poucos dias constavam no inventário do depósito de géneros. É claro, os outros camaradas que estavam à mesa confirmaram tudo, puseram até os adjectivos no superlativo, mas nunca me convenci que não fosse mais um daqueles boatos que circulam sem se saber como nasceram. Nunca estivera cara a cara com Correia de Campos, aliás, ficara com boa impressão do homem desde que vi, ao longe, no meio da parada e durante uma flagelação, indiferente às granadas que caiam por perto, de pingalim (à Spínola) numa mão e de AVP-1 na outra, a dar ordens à Artilharia e às Armas Pesadas de como responder ao fogo. Agora, a atitude mentecapta que teve para comigo obrigou-me a mudar de opinião. Num quartel que, sob o seu comando, mais parecia já uma “Casa de Orates”, era assim que queria impor “respeito”? “Autoridade”? “Disciplina”? O que pode levar um indivíduo corajoso a revelar atitudes como estas, a coberto dos galões – de que outra coisa poderia ser?
No 25 de Abril de 1974, imagino que devido ao relacionamento que mantinha com Spínola, o Tenente-Coronel apareceu em Lisboa, à porta do Quartel do Carmo. Adelino Gomes (jornalista que estava a fazer a reportagem dos acontecimentos que viria a ser gravada em vinil e em cd), pergunta-lhe como estão as coisas e Correia de Campos retorquiu-lhe mais ou menos isto: se uma mulher grávida estiver a parir você pergunta-lhe se está com dores? A delicadeza da resposta caracteriza a sua personalidade. Passados estes anos, o episódio da messe pouco (me) importa, todos temos momentos de menor inspiração. Sem lhe querer mal algum, relatar agora o que se passou é já uma vingançazinha, como que a reivindicar para mim igual costela cabotina…
21 de Maio
Parece haver um abrandamento no ritmo dos ataques de artilharia de que somos alvos. Será provavelmente a primeira consequência da operação dos Comandos em Koumbamory, base que ainda há poucos meses recebeu seis dezenas de combatentes recém-formados na Argélia e em Cuba e é (era?) o principal ponto de abastecimento aonde os guerrilheiros se vão municiar. Mas já se fala em reposição de stocks! Diz-se que têm chegado ali camiões carregados com material vindo de Zinguinchor.
Num passado mais longínquo, Zinguinchor foi também relacionada com os colonos portugueses pelas piores razões, ao ser palco de tráfico de escravos com a cumplicidade “tuga”. Em 1836, o decreto de 10 de Dezembro aboliu as exportações de escravos em todos os territórios portugueses, mas isso não afectou os dois maiores traficantes dessa época: o antigo governador da Guiné e Coronel de Milícias, Joaquim António de Matos, e o Governador de Bissau, Caetano José Nozolini, comerciante mestiço, cabo-verdiano, marido e sócio de Nhara Aurélia Correia. Segundo a escritora Joana Ruas, que foi cooperante na Guiné-Bissau depois da independência e jornalista cultural do jornal Nô Pintcha (Avante, em português), creio que ao mesmo tempo que o jornalista português Daniel Reis (de A Bola) que também esteve no jornal, “Ziguinchor estava povoada por mestiços luso-africanos, grumetes e escravos, o chefe da feitoria vem de uma família mestiça, os Carvalho Alvarenga, ramo donde virá Honório Pereira Barreto, filho de um cabo-verdiano e de Rosa de Carvalho Alvarenga, a poderosa Rosa de Cacheu. Honório Pereira Barreto, sendo Governador da Guiné de 1835 a 1839, o número de escravos libertados nos 55 navios provenientes dali e apresados pelos cruzadores, fixou-se em cerca de 3.929”. Pois Honório Pereira Barreto (nascido no Cacheu a 24/4/1813, morre em Bissau a 26/4/1859), é o único negro (falso negro, por sinal) a figurar nas parangonas do sistema colonial: a sua pretensa fotografia aparece nas notas antigas do escudo guineense, nos selos emitidos pelos CTT, e tem inclusive um monumento majestoso, construído em sua memória. O regime aponta-o como o supremo exemplo do “portuguesismo” que pode haver num assimilado. Acontece é que o seu lado verdadeiramente negro, – digamos que, obscuro, – é o de, numa época em que o comércio de escravos está em extinção, consolidar no Cacheu um lucrativo comércio esclavagista! Que credibilidade pode ter entre os guineenses o poder exercido em Bissau ao longo do século e nos dias da guerra, cujo único monumento a um negro é erigido em memória do tal Honório?
Outra vez do lado senegalense da fronteira, um pouco mais distante do enfiamento do abrigo do Obus, nota-se uma invulgar movimentação de viaturas amareladas, bem ao alcance dos nossos olhos. Sabíamos da sua circulação, protegidas por blindados, numa estrada paralela à fronteira mas a cerca de dois quilómetros de distância. Mas assim tão perto… Pertenceriam às tropas do país vizinho ou à guerrilha? Tamanha concentração fez crescer o nervoso miudinho e, com maior ou menor fundamento, o receio de vir a concretizar-se o temido ataque ao arame. O nosso Cabo artilheiro, pelo sim, pelo não, apontou o Obus o mais paralelamente ao solo possível, a ponta do cano quase apoiada sobre a circunferência de bidões, “just in case”, gastaria o resto das munições fazendo tiro directo!
Corre o informe de que no enfiamento do quartel de Nema (Farim), estaria instalada uma porção descomunal de “turras”, provavelmente para reforçar a instalação de minas no itinerário para Guidaje. Mais lenha para queimar a nossa débil moral…
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. Os cinco primeiros postes da série de:
16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6000: Os Maradados de Gadamael (Daniel Matos) (1): Por onde andaram e com quem estiveram?
18 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6014: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (2): Levar a lenha e sair queimado
20 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6027: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (3): Os dias da batalha de Guidaje - Antecedentes à nossa chegada
24 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6041: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (4): Os dias da batalha de Guidaje, 15 a 18 de Maio de 1973
30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6069: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (5): Os dias da batalha de Guidaje, 19 de Maio de 1973