sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7266: (In)citações (19): Africanização da guerra, tema para um colóquio a organizar pela Tabanca Grande, e pretexto para a efectiva reconciliação nacional (Nelson Herbert)

Guiné > Zona leste > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Uma coluna logística Bambadinca-Mansambo-Xitole... Em segundo plano, de pé, do lado esquerdo, vê-se o Cap Inf Carlos Brito... (a seu lado, o Fur Mil At Inf, José Luís Sousa, o nosso único madeirense). Em terceiro plano, é fácil de observar uma vitura civil, de cor vemelha, uma das muitas que se costumava alugar para transportar mantimentos e armamento e que eram enquadradas por viaturas militares e por tropas (em geral, da CCAÇ 12)... Quando chegámos a Contuboel , em Junho de 1969, os 100 soldados (operacionais), que integraram a CCAÇ 12 (na altura ainda, CCAÇ 2590), não falavam português... E o único soldado arvorado que chegou a 1º Cabo, ainda em 2009, foi o José Carlos Suleimane Baldé, o dedicadíssimo e delicadíssimo José Carlos, uma joia de rapaz,  com quem lidei bastante (era meu secretário particular, intérprete, cozinheiro, guarda-costas, e sobretudo amigo e camarada).  Tem hoje duas mulheres e deve andar perto dos 60 anos. Gostava muito de vir a Portugal. Não sei a sua história de vida, depois da independência. Vive em Amedalai, perto do Xime. Sei que o Beja Santos vai lá estar, para passat um bocado com alguns dos seus soldados do Pel Caç Nat 52 (1968/70). Oxalá o José Carlos consiga falar-lhe!

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados.


1. Comentário, com data de hoje, de Nelson Herbert ao poste P7253:

"Pessoalmente, fui sempre crítico, no meu círculo de relações (a CCAÇ 12), da 'africanização' da guerra colonial. Sabia que mais tarde ou mais cedo iria conduzir a uma tragédia..."

E o presságio, meu caro Luis Graca, infelizmente se vai confirmando na nossa Guiné!!!

Numa outra latitude, as consequências arrasadoras da "indigenização" da guerra não foram de todo distintas das experimentadas na Guiné!

"The Hmong, a Laotian tribal people, secretly aided the U.S. military during the Vietnam War. After South Vietnam fell and the war ended, the Hmong (pronounced "mung") who had worked with U.S. troops feared that the communist Vietnamese and Laotians would persecute them.The Hmong began coming to the United States in 1976"  # *

Os "Mung" e seus descendentes constituem hoje praticamente o grosso da comunidade vietnamita nos  EUA.

Coincidências à parte, o certo é que na hora da debandada... também os Estados Unidos foram impotentes na dissuasão ou contenção de irracionalismos e ódios latentes a cenários de guerra ...

Por conseguinte, meu caro Luis, esta sua sábia constatação tem tudo para servir de mote a um debate bem mais abrangente desta problemática ... Um debate que independentemente das emoções e ressentimentos que possa ainda suscitar ...anime uma abordagem,  a todos os niveis, das consequências (num e noutro lado) da africanização da guerra ...

Quiçá um tema para um colóquio (um contributo à reconciliação dos guineenses) promovido pelo blogue?!

Qual indelével "nódoa" na história recente daquele conturbado país, o impacto da "africanização" da guerra na Guiné se impõe ainda hoje, transversal a geraçõoes de guineenses !   Prova disso temo-lo num áspero e irado dialogo animado em tempos num blogue por dois jovens guineenses, por sinal orfãos... de trincheiras desavindas de um mesmo conflito...

O primeiro, herdeiro de um soldado comando africano fuzilado no dealbar da independência da Guiné, o segundo, alegadamente vitima de uma incursão dessa tropa de recrutamento local a uma base do PAIGC...

Mantenhas

Nelson Herbert (**)
Washington DC
USA
___________

# In Catholic Diocese of Green Bay's Catholic Charities Resettlement and Immigration Services, Wat Tham Krabok Assessment Team Report; Migration Policy Institute

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Notas de L.G.

(*) Tradução inglês / português:

"Os Hmong, minoria étnica [do sudoeste asiático,  Laos, Tailândia, Vietname, China...],  ajudaram  secretament os militares norte-americanos durante a Guerra do Vietname.  Após a queda do regime do Vietname do Sul  e com o fim da guerra,  os Hmong (pronuncie-se 'mung') que haviam trabalhado com as tropas dos EUA,  temerem que os comunistas, vietnamitas e laocianos, os viessem a perseguir. Daí terem começado a emigrar para os Estados Unidos em 1976".

(**) Vd. poste de 9 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7252: (In)citações (23): Branco, na volta! Branco, na volta!, repetia a Fatemá em 2005... Com a sua morte perde-se um elo de ligação com os portugueses que passaram pelo regulado de Contabane (José Teixeira)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7265: Estórias do Juvenal Amado (32): Carne para o quartel

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 10 de Novembro de 2010:

Caros Luís, Carlos, Briote, Maglhães e restantes atabancados
Uma pequena estória sobre as qualidades alimentares de Galomaro.

Até ali nunca tinha visto o bife ainda com patas.
Juvenal Amado


Estórias do Juvenal Amado (32)

A CARNE PARA O QUARTEL

Ao serem içados, os touros urravam, em pânico, abrindo muito as unhas e pondo-se a nadar no ar, por cima das nossas cabeças.
Nunca a vida lhe mostrara uma tão perfeita imagem do terror, sobre o abismo: os bois esticavam as patas, ameaçavam alar-se e sacudiam o corpo. E os olhos já de si globulosos, luziam dum volume metálico, ainda mais frios que dantes.
Trecho do Livro GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS de João Melo

O camarada José da Câmara falou de um episódio motivado pela necessidade de comprar gado de abate para o quartel. Nesse seu poste fala da pena, que os donos do gado sentiam quando o viam partir, traçando um paralelo entre ali e o que se passava na sua ilha, onde muitas vezes viu o gado ser exportado para Lisboa. Eram visíveis os mesmos sentimentos de perda nos olhos da pobre gente, que via assim o produto do seu trabalho, partir para um destino inexorável e sem outro possível futuro.

Também me lembrei de um tio meu, grande amante de carne de vaca, que resolveu criar uma para abater, encher a arca e assim saciar-se desse pitéu, quando lhe apetecesse.

Criou o animal, que se habituou a que ele fosse ao pé dele coçá-lo quando vinha da fazenda. O animal chamava-o e ele ia ao pé dele coçava-o e falava com ele. O resultado desta relação foi ter que o vender, pois não podia pensar em matá-lo e comê-lo.
Quem o conhecia, dificilmente esperaria uma atitude como a que tomou.

Mas a respeito de vacas, fui uma vez encarregue de ir buscar carne para o quartel de Galomaro.
Cheguei cedo ao local e comigo ia o Esteves e o Risinho*, cozinheiros, especialistas em Estilhaços com Bianda ao Chef, que eram servidos no restaurante Morte Lenta, senão ao almoço decerto ao jantar. Um prato tão afamado, que me fez estar muito tempo sem comer arroz fosse com o que fosse.

Era enorme a azáfama onde se misturavam as vestes tradicionais fulas com panos de cores várias, onde pontificavam rostos como o do Sekoturé e outros nacionalistas africanos, denunciando assim a proveniência dos tecidos como sendo da Guiné Conakri.

Pensava eu que já estaria a carne à nossa espera.
Engano meu, pois a vaca ou boi, pormenor que não me recordo agora, estava em pé aparentemente não desconfiando do que a esperava ainda.

De repente, num grande alarido o animal é deitado ao chão, atam-lhe as quatro patas num feixe e os olhos quase lhe saem das órbitas com o terror.
Seguidamente a cabeça, é lhe torcida até ficar com os cornos espetados no chão, obrigando o pescoço do animal a arquear sobre a pressão que um ajudante em peso, exerce sobre o queixo.
Não quero olhar mas não consigo desviar os olhos.

O magarefe aproxima-se com uma catana e o pescoço do animal é serrado em movimentos horizontais, primeiro a pele, depois a carne, as artérias, as goelas, tudo isto acompanhado de um sofrimento atroz, onde o corpo se contrai e pula de forma violenta mas sem apelo.

Por fim o animal resfolga já completamente degolado, cumpre-se assim a lei Islâmica em que se obriga à degola e sangramento total.
Se ao menos fosse de um golpe só!

Escondo-me atrás da Berliet, estou quase a vomitar.
Nunca mais voltei a presenciar semelhante sacrifício, mas tão depressa não comi carne de vaca e ainda hoje a como com alguma relutância, faço por não me lembrar deste episódio.

(*) O cozinheiro de alcunha o Risinho devia-a ao seu permanente riso causado por uma paralisia facial. Não tenho bem a certeza mas a deficiência adquiriu-a num acidente.
Natural de Setúbal, falava com paixão das caldeiradas de enguias de certa qualidade a que chamava eroses, que se encontram na região.
Faleceu depois do nosso regresso e sendo assim, o seu sorriso permanece eterno na minha memória.
Que esteja em paz.

Juvenal Amado

Na enfermaria com paludismo: o Aljustrel em primeiro plano; Esteves, o afamado cozinheiro, à direita. Eu estou ao fundo.

Mantimentos frescos

Mantimentos frescos prestes a esborracharem-se no chão
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7242: Blogpoesia (84): Por vezes... Regresso lá (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7005: Estórias do Juvenal Amado (31): Desse amor ficou só a nostalgia daquela idade

Guiné 63/74 - P7264: Blogpoesia (86): Alentejo, terra mãe (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa* com data de 7 de Novembro de 2010:

Boa noite Editor e Amigo Carlos Vinhal
Resolvi enviar um poema sobre o Alentejo, que se integra perfeitamente nesta altura do ano, em que se lança a semente à terra.
Se achar que deve publicar, é mais uma homenagem à terra que me criou.
Felismina Costa


Alentejo Terra Mãe

Terra mãe... nua, nesta época.
Terra, apenas lavrada... esperando a semente!
Terra amanhada pela mão do homem que te ama
Terra amada
Mãe da gente!...
Na dobragem estética do teu perfil perfeito
(mais alta, mais baixa)
Na cor.
Mais castanha, mais rosada, mais vermelha.
(No degradê até, de cores e alturas),
Tudo é luminoso!
Insultante de tão perfeito!...
Quem pode competir contigo?
Tu, que estas sempre linda todo o ano?..
Eu, queria como tu, brilhar à luz do sol!
Ser uma canção de embalar.
Uma música de encantar.
Um poema!
Terra da minha ternura.
Alentejana terra da lonjura
Onde sempre me senti em casa.
Cada pedra e cada tom
São tão perfeitos!
Cada som tão sublime!
A tua voz, é um afago.
É um lago
Onde brilham sem cessar
As estrelas cintilantes
E o luar!...


Agualva, 12 de Abril de 2006
Felismina Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7166: Blogoterapia (163): Recordações da infância (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7263: Blogpoesia (85): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (8) (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P7263: Blogpoesia (85): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (8) (Manuel Maia)

QUISERA EU... (8)

Por Manuel Maia*

Quisera ter regresso à mocidade,
e ver com outros olhos realidade,
do mundo de mudanças tão tardias...
Quisera analisar com atenção
a fauna e flora belas, mesmo à mão,
sem medos nem cautelas doentias...


Quisera na Guiné ver finalmente,
projecto dum futuro bem presente,
rasgando, par em par, os horizontes...
Aposta no Turismo e Agricultura,
transformaria a míngua em fartura,
servindo `inda outras áreas como pontes...


Quisera no país ver um processo,
capaz e retumbante de sucesso,
motor de arranque a impor o tal sistema...
Turismo e Agricultura, já vos disse,
assim mundo quisesse e permitisse
Guinéu viver aspiração suprema...


Já chega de intestinas vãs disputas,
de caos, destruição, fraternas lutas,
espaço à intolerância é já nenhum...
P`la guerra hipotecado não avança...
país que se quer rumo à abastança
carece sim de opção p`lo bem comum...


E essa opção aponta um só sentido
o dar de mãos, fazer país unido,
gerir, correctamente, a aposta certa...
Na Educação, sucesso a base assenta,
com formação, processo se apresenta,
e um novo sentimento então desperta...


É urgente, é necessário e expectável,
premente, obrigatório, indispensável,
o acordar dum povo adormecido...
A instrução e o pão, fundamentais,
(a insistência aqui nunca é demais...)
impondo ao dirigente, o dirigido...


Quisera cumprir sonho que acalento
p`ra estar lá no Saltinho o tal momento,
de ver apregoado macaréu...
Perder-me em pensamento no remanso,
das águas de bolanha no descanso,
olhar as aves, contemplar o céu...


Quisera eu reviver caça à gazela,
em noite bréu ver silhueta bela
escapulir por entre o arvoredo...
Aos tiros disparados pelo Ginja,
sem que nenhum sequer a peça atinja,
seguiu-se a angústia, a dúvida, o medo...


A zona era onde o IN circulava,
a cada vez que a tropa atacava,
flagelação intensa, intimidante...
naquele dia a sorte foi presente,
p`raquela meia dúzia "inconsciente",
alferes, sargentos, mesmo o comandante...

__________

Notas de CV:

(*) Manuel Maia foi Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74.

Vd. poste de 18 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6868: Blogpoesia (80): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (7) (Manuel Maia)

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7242: Blogpoesia (84): Por vezes... Regresso lá (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P7262: Estranha Noiva de Guerra, romance de Armor Pires Mota (1): Apresentação em Lisboa, 10/11/2010, na A25A (Parte I)


Lisboa > Sede nacional da Associação 25 de Abril (A25A) > 10 de Novembro de 2010 >  Apresentação do romance Estranha Noiva de Guerra (1ª ed, 1995), agora em 2ª edição, na Âncora Editora (2010, 151 pp.). Neste vídeo, Beja Santos lê excertos do romance (pp. 93/94), obra que ele considera uma obra-prima da literatura da guerra colonial e que,  inexplicavelmente, terá passado despercebida da crítica em 1995.  Num gesto nobre de Armor Pires Mota, os  direitos de autor desta edição revertem a favor dos Centros de Apoio à Inclusão Social, da Liga dos Combatentes. O preço de capa é 16 €.

'Estranha Noiva de Guerra' é a história de Bravo Elias, "um furriel que combate na Região do Morés.  Com ele segue Júlio Perdiz, um morto em combate que não será abandonado em campo de batalha (...). É nisto que surge nesta terra de ninguém uma rapariga dizendo: 'Mim ajuda branco, mim vai ajuda branco'. Chama-se Mariama e promete levá-los até Mansabá (...). Aqueles dois seres humanos levam a padiola do Perdiz, seguem esgotdaos, correndo todos os riscos, atravessando bolanhas fétidas, sujeitos a todas as inclemências da natureza (...).  A paixão entre Mariama e Elias desperta. Passa-se  pela região de Lala Samba, os jagudis voltam a atacar o finado, arrancam-lhe  os olhos, metade de uma orelha, o nariz. Aos tombos chegam a Cumbijã Sare, lavam o que resta do Perdiz. (...). A trama ganha novos contornos com a chegada de dois guerrilheiros (...) Segue-se um ataque a Mansabá, uma descrição como nunca encontrei na literatura da guerra colonial: o vigor da encenação, os sons, as imagens de sofrimento, as águas fores das correrias e dos rodopios. Duarnte o ataque os dois jovens guerrilherios do Morés matam Mariama. O apocalipse prossegue (...).  (Do prefácio de Beja Santos, pp. 11/12).


Vídeo (3' 12''): © Luís Graça (2010).Alojado em You Tube > Nhabijoes



O Rotary Clube de Oliveira do Bairro prestou o ano passado, em 9 de Maio, uma justa  homenagem ao escritor e jornalista Armor Pires Mota, que completou 50 anos de actividade literária.  Do jornal Soberania do Povo, de 6 de Maio de 2009 (completado por outras fontes na Net), seleccionamos algumas notas biobliográficas deste nosso camarada:


(i) Armor Pires Mota nasceu a 4 de Setembro de 1939, em Águas Boas, Freguesia de Oiã, concelho de Oliveira do Bairro;

(ii)  Estudou teologia, no Seminário de Aveiro, curso que abandonou em 1961;

(iii) Em 1960 editou o seu primeiro livro, Cidade Perdida;  

(iv) Ainda no seminário, dirigiu a Revista Semente;  publica igualmente poesias em jornais da região  (Jornal da Bairrada, Correio do Vouga e Soberania do Povo);



(v) Foi alferes miliciano, na Guiné (CCAV 488, 1965/67), com actividdae operacional na Ilha do Como e na  Região do Oio;

(vi) Durante a asua comissão foi publicando um diário de guerra no Jornal da Bairrada;

(vii) Essas crónicas foram depois, em 1965,  editadas em livro,  O Tarrafo;

(viii) Pouco tempo, a ex-PIDE proibiu o livro que tinha cruas descrições de guerra (napalm, bombardeamentos, combates, mutilações...);

(ix) Foi editor de Soberania do Povo em 1970 (num período de rejuvenescimento editorial, na época marcelista), saindo em 1973 e regressando em 1988;

(x) Publicou uma série de crónicas sobre as arbitrariedades dos Serviços Florestais, que deu origem ao livro O Préstimo a Caminho de Lisboa (1971);

(xi) Em 1974, tornou-se pequeno empresário, com a criação de um  empresa na Palhaça (Alferpa); em 1980, com o mesmo sócio e o encarregado geral, fundou a Trougal;

(xii) Continuou sempre a escrever... Dos seus livros do Ciclo de Guerra, cite-se:  Baga-Baga (poesia, Prémio Camilo Pessanha, em 1968), Guiné Sol e Sangue (1968, contos e narrativas), Tarrafo (crónicas vivas da guerra) (2ª ed., 1970),  O tempo em que se mata, o mesmo em que se morre (1974, poesia),  Cabo Donato Pastor de Raparigas (1991, contos), Estranha Noiva de Guerra (1ª ed., 1995;  2ª ed., 2010) e A Cubana que dançava flamenco (2008) (estes dois últimos romances);

(xiii) Foi chefe de redacção da revista Itinerário (Coimbra) e colaborou na Observador e na Panorama. Tem ainda colaboração no Jornal de Notícias, O Primeiro de Janeiro e outros.

(xiv) Dedicou-se à também investigação histórica e à escrita de monografias (a que ele chama o Ciclo da Terra); escreveu livros de poesia e de vivências bairradinas; tem vários inéditos para publicar e figura em quatro antologias: Contos Portugueses do Ultramar, Corpo da Pátria , Vestiram-se os poetas de soldadosEscritas e Escritores da Bairrada;

(xv) Está também no Dicionário dos Escritores e Poetas Luso-Galaicos e no VI Volume do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo IPLB; o número de livros publicados,  repartidos enter o Ciclod a Guerra e o Ciclo da Terra, ultrapassam já as 3 dezenas;

(xv) É sócio da Associação Portuguesa de Escritores e sócio-fundador da Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada (AJEB). A Câmara Municipal de Oliveira do Bairro atribuiu-lhe, em 2001, a Medalha de Mérito Cultural.

(xvi) É um homem simples e solidário, que ama e ajuda a sua terra e os seus conterrâneos: Foi fundador do Grupo Desportivo e da Associação de Melhoramentos de Águas Boas, exerceu cargos na Comissão de Melhoramentos e Centro Social de Oiã, fez parte da Comissão Fabriqueira de Oiã e da Comissão de Obras da Capela de Águas Boas.




O Beja Santos (à esquerda) prefaciou e apresentou a obra...


Aspecto da mesa, presidida pelo dono da casa, Ten Cor Ref Vasco Lourenço...

Lisboa > Rua da Misericórdia nº 95 > Sede nacional da Associação 25 de Abril (A25A)  > 10 de Novembro de 2010 >18h30: Apresentação do romance de Armor Pires Mota, Estranha Noiva de Guerra, 2ª ed. (Âncora Editora, 2010, 151 pp.; Col  Guerra Colonial. Preço de capa: c. 15 €. A primeira edição é de 1995, Editorial Notícias)

Na mesa, presidida por Vasco Lourenço, pode ver-se da esquerda para a direita: (i) Beja Santos (apresentador da obra,  escritor, membro da nossa Tabanca Grande, em véspera de partir para a Guiné,  em "romagem de saudade"); (ii) Armor Pires Mota, o autor, ex-Alf Mil da CCAV 488, Mansabá, ilha do Como, Bissorã e Jumbembem, 1963/65 (*); (iii) Vasco Lourenço, presidente da A25A; (iv) Baptista Lopes, o editor (Âncora); e (v) Serafim Lobato, antigo fuzileiro, jornalista e agora responsável pela Colecção Guerra Colonial, da Âncora Editora .

Assistiram à sessão mais de 4 dezenas de pessoas, quase todos eles antigos combatentes, mas também amigos e familiares do Amor Pires Mota, "gente da Bairrada" que vive em Lisboa... Reconheci, entre outros, o Manuel Barão Cunha, coronel na reforma, DFA, escritor, autor de Tempo Africano (4ª ed., 2010); José Talhadas, antigo fuzileiro, autor de Memórias de um Guerreiro Colonial; os membros do nosso blogue Humberto Reis, José Martins, Belarmino Sardinha, Belmiro Tavares e Carlos Silva (além de eu próprio e o Beja Santos)...

Tive o prazer de conhecer pessoalmente o autor de Tarrafo, Armor Pires Mota, a quem voltei a endereçar o meu convite para integrar a Tabanca Grande, bem como o Serafim Lobato, com quem já em tempos havia trocado e-mails, e de quem já publicámos um ou dois postes.

(Continua)

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Nota de L.G.:

(*)  CCAV 488: Mobilizada pelo RC 3, partiu para a Guíné em 17/7/1963 e regressou a 12/8/1965. Esteve em Bissau, Ilha do Como, Jumbembém e Bissau. Comandantes: Cap Cav Fernando Manuel Lopes Ferreira; Cap Cav Manuel Correia Arrabaça; Ten Cav Lourenço de Carvalho Fernandes Tomás. Pertencia ao BCAV 490 ( (Bissau, Ilha do Como e Farim, 1963/65), comandado pelo Ten Cor Cav  Fernando José Pereira Marques Cavaleiro. Restantes companhias:  CCAV 487 (Bissau, Ilha do Como, Farim, Bissau); CCAV 489 (Bissau, Mansabá, Ilha do Como, Cuntima, Bissau).

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)


Sintra > Azenhas do Mar > Setembro de 1977 >  O Adilan, com as suas queridas “maninhas”, dez anos depois de vir da Guiné para Portugal... Fará 50 anos no dia 12 de Janeiro de 2011. E a nossa Tabanca Grande, nesse dia,  quer-lhe cantar os "Parabéns a Você!"...


1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, enviou-nos, com data de 5 de Novembro de 2010, a seguinte mensagem:Camaradas,

Envio-vos um texto e fotos, sobre um menino balanta-mané, o JM, meu "familiar" desde 1967, quando o trouxe da Guiné e que hoje ronda os 50 anos de idade (estou mesmo velhote!).
Tentei que o relato não fosse tão extenso mas não consegui. Aliás, o tema tem bem por onde se pegar e se desenvolver.
Mas este relato limita-se a dar uma ideia do porquê da vinda do menino para Portugal e suas peripécias, do ambiente familiar que encontrou, do seu regresso à Guiné em 1978, do encontro com seus pais e do seu regresso a Portugal, onde reside atualmente.
As fotos são minhas. Não sei se acham interessante a formatização do texto do Apêndice com selos da Guiné-Bissau. Fi-lo porque este texto é quase todo composto por excertos de correspondência por mim recebida, vinda do meu JM. [ O texto que se publica segue o novo acordo ortográfico. EMR]
ADILAN, nha minino... Ou como se fica com um menino nos braços (1ª Parte)

Texto e fotos: © Manuel Joaquim (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
Introdução
Durante a chamada Guerra do Ultramar (1961/74) diversas crianças vieram para Portugal, trazidas por militares em fim de comissão. Eu fui um dos que o fez e sou dos que acham que algumas destas ações são parte da história da guerra. De certeza que a minha o é. Vejamos:
Guiné, Janeiro de 1966: Este meu menino foi capturado com cerca de quatro anos, passando a conviver, no ambiente militar de Bissorã, com a CCaç 1419/ Bcaç 1857. E acabou por entrar na minha casa em 1967. Ainda cá mora.
Para contar o que se passou com nha minino (o meu menino) fui, por ele, posto à vontade. Não desvendo a sua naturalidade e, do seu nome, ficam as iniciais JMSC. É óbvio que poderá ser reconhecido por quem de mais perto lidou com ele, em Portugal e na Guiné, mas não quero facilitar o acesso à sua identidade.
Irei centrar-me em períodos ou momentos da sua vida, para mim importantes. Não irei inventar e empolar mas recordar acontecimentos e emoções. Confio na minha memória que, neste caso, tem sido muitas vezes ativada, de há 43 anos para cá.


Nha minino > Maio/1967 > No dia seguinte à sua chegada a Portugal

Uma explicação: Adilan é o nome original (balanta-mané) de JMSC. Quando tratei do registo da criança nos serviços competentes de Bissau já todos tinham esquecido o seu nome, ela incluída. Só mais tarde, uns onze anos depois, se voltou a saber como se chamava em pequenino. Por fim, e vale o que vale: vou falar de alguém muito querido que me trata por padrinho e que é irmão das minhas filhas e tio dos meus netos (tratamento familiar mútuo).
1. A causa
Bissorã, 11/ 01/ 1966. Ordem operacional para a CCaç 1419: "limpeza” da tabanca de C., trazendo a sua população para Bissorã. Ao meu grupo de combate cabe-lhe ficar em casa, aguardando o dia seguinte com a missão de organizar a recolha de toda a gente na ponte (destruída) sobre o rio Blassar, limite transitável da estrada Bissorã/Barro.
Ao início da manhã estamos no local. Segurança montada, espera-se. Até que se percebe no horizonte um movimento ondulante, tipo cobra gigante de cor indefinida, que vai ganhando forma à medida que se aproxima: sobressaem mulheres e crianças, animais diversos, alguns deles trazidos à corda, esteiras, utensílios domésticos, tudo misturado com soldados e milícias. Eles aí vêm mas não se ouve qualquer ruído.
Passam-se uns minutos e já se ouve a cobra a rastejar pelo caminho de aproximação. O barulho aumenta progressivamente e, ao dar-se o encontro, o obstáculo gerado pela falta da ponte faz a cobra dissolver-se numa mancha ruidosa, alargada e desordenada, a dirigir-se para as viaturas estacionadas no outro lado do rio (seco). Na confusão da subida para as viaturas, a algazarra de soldados e milícias contrasta com a indiferença e a resignação (ou medo disfarçado?) dos deslocados. Lá se vai arrumando tudo, com alguma dificuldade, e a coluna põe-se em marcha.
Chegados a Bissorã, ala que se faz tarde! Esvaziam-se as viaturas, a tropa vai para o aquartelamento e o povo... fica no chão, embrulhado na tralha trazida e agarrado aos animais, sem controlo aparente. Nem a milícia, que por ali ronda, parece interessada naquela gente. Talvez esteja a controlar, deve estar a cumprir missão específica. Passeio mais uma vez o olhar pelo aglomerado humano e, de repente, dou comigo a pensar: “Não há homens aqui? Só vejo um!"... No meio das mulheres e crianças está um homem, já meio velhote, com ar de perdido ou de inseguro, todo encolhido, calado. “... não conseguiram trazer mais nenhum homem da tabanca? Que estranho!... que se lixe, quero lá saber! Vamos lá mas é arrumar isto!” (as viaturas).
2. A surpresa
Assunto arrumado, dirijo-me a casa. Sim, casa. Os furriéis e 2ºs sargentos da CCaç 1419 estão aboletados numa vivenda, situada fora do aquartelamento e em ótimo estado de conservação, onde também funciona a enfermaria e posto de socorros da Companhia, no que terá sido a área comercial do edifício. Ao entrar pelo pátio das traseiras vejo um grupo todo excitado, como que formado em meia-lua, virado para uma parede. – O que é isto? – Eh pá, o Sarrico trouxe este puto do mato!
Aproximo-me e vejo um pretinho franzino, três/quatro anitos, junto à parede. Reparo no 2º sarg Sarrico, veterano da guerra em Angola, à volta do menino a tentar fazê-lo falar, sem resultado. Chama um miúdo balanta que por ali anda, para servir de intérprete. Nada. Do menino nem um pio mas vê-se que está a tremer, com os olhos arregalados e inquietos. A sua cor é indefinida, talvez acinzentada, a pele está cheia de manchas esbranquiçadas.
Nisto aparece o furriel enfermeiro, repara no aspeto da criança e faz logo um diagnóstico rápido, sentenciando:
– Olhem, ponham-no debaixo da torneira! Ele precisa de uma boa barrela!
– Ponham-no “preto!” – grita alguém da meia-lua.
Há gargalhadas dispersas. Junta-se ao grupo o 1º sarg Lageira, olha, informa-se, sussurra um sincopado “coi... ta… di… nho!” e interpela o enfermeiro:
– Oh Santos, não tens nada para estas coisas da pele? Olha como o puto está!
O Santos deve ter dito que sim e o Sarrico põe a mão na torneira que está na parede da casa, a um metro do solo e por cima da cabeça do miúdo, preparando-se para o lavar. Ao abri-la, o pretinho começa a chorar, aos berros, quando vê a água a jorrar sobre si. E, sempre a chorar, é lavado da cabeça aos pés.
O miúdo está a acalmar, parece. O Sarrico tenta de novo usar o intérprete, com expressões do tipo «não tenhas medo», «ninguém te faz mal», e pergunta-lhe o nome. E não é que o garoto responde? Com uma voz encolhida, deve ter dito Adilan. Sarrico : “Dila?” Intérprete: “A.. .dí… lan!” Sarrico: “pois, Dila”. E quanto ao nome, não se passa daqui. Ficou a dúvida.
(Obs.: Hoje consigo lembrar esta cena, com o nome Adilan incluído, por razões que aparecerão adiante no texto. Mas, na altura, toda a gente esqueceu o seu nome original, inclusive ele próprio. Não admira, é o resultado de ter passado a ser reconhecido por 'Sarrico' e assim ficar a ser chamado.)

Voltemos ao banho de torneira. Está o garoto, lavado e mais calmo, a começar a responder ao intérprete quando aparece o Santos, todo pressuroso, com um grande frasco na mão, cheio do tal produto que faz bem à pele:
– Vamos lá a isto!





Bissorã > Janeiro/1966 > Eu, na varanda da habitação dos sargentos da CCaç 1419
O enfermeiro dirige-se ao miúdo e passa-lhe a tintura pelo corpo todo. A cena torna-se patética. Com o corpo a arder, o garoto grita que nem um desalmado tentando soltar-se; alguns dão gargalhadas, outros têm um sorriso amarelo, parecendo incomodados. Eis senão quando o menino solta-se mesmo e, aos saltos que nem um cabrito, investe contra a meia-lua humana, aos berros, assustado com o que está a sentir. Parece pedir socorro. Tem razão o 1º Lageira, com o "coitadinho" de há pouco. Mas o menino não consegue fugir e, qual passarinho entre as mãos do seu captor, vai acalmando a um ritmo lento parecendo estar a tomar conta, pela primeira vez, do ambiente que o rodeia.
As conversas cruzam-se. Discute-se o acontecimento. Até que se ouve o sarg Sarrico dizer que vai cuidar da criança. Não digo nada mas o caso incomoda-me: o menino foi retirado à força da sua comunidade e, ainda por cima, numa ação de reordenamento populacional. Por onde andarão seus pais ou outros familiares?
Com a decisão do Sarrico a criança fica a viver na nossa casa. Por incrível que pareça, passados poucos dias já parece outro, a sua pele brilha num castanho claro, ele e o Sarrico parecem já ser amigos, fazem lembrar o filme “O Garoto de Charlot“. Mas esta situação só durou pouco mais de um mês.
(Obs.: Hoje sei que seus pais fugiram, deixando o filho para trás porque estava afastado deles, em companhia de outro garoto mais velho, a “trabalhar”, assustando a passarada que está sempre cheia de fome ao alvorecer. Foi apanhado de surpresa por alguém que não mais o largou. O seu companheiro conseguiu fugir.)
3. O acidente
Bissorã, 20/ 02/ 1966. Meio da tarde. Uma mulher da tabanca, com problemas no parto, precisa de ser evacuada para Bissau. Vem um helicóptero. O piloto diz ter visto um grupo suspeito, na estrada Bissorã/Bula, que lhe pareceu estar em reunião. Tal informação gera uma ordem de saída para se verificar e atuar conforme. Foi dada ao grupo de combate do sarg Sarrico.
Está um calor sufocante. O Sarrico tem a mania de andar no mato com uma granada de fumos. Não sabemos porquê. Talvez tenha medo de se perder; ele adora fotografar e é frequente vê-lo de máquina fotográfica nas mãos durante as operações. Hoje, para cúmulo, tem a granada num bolso das calças, sem arejamento. Distração ou inconsciência?
Pois é. Ao aguardar a saída, ao sol direto, a granada rebenta-lhe no bolso : PÔFF!... Queimaduras muito graves nos dedos das mãos, no baixo ventre e noutros locais alcançados pelos espirros do material químico. Aparece-nos em casa, pelo seu próprio pé a caminho da enfermaria, e uma espécie de fiozinhos de vapor branco evolam-se saindo dos farrapos do camuflado, das zonas do corpo atingidas... até da G3! Socorro possível e imediato, evacuação para Bissau. Segue-se Lisboa (HMP) e... salvou-se! Mas a morte andava por perto, não esperou muito tempo para o levar.

Final da tarde. Naquela falsa calma dorida e angustiante, alguém pergunta:
– Eh pá, e o puto? Que é que se faz com ele?.

Bem, fala-se por falar, trocam-se olhares, encolhem-se ombros e ninguém assume nada. O puto está sem o seu protetor e é precisa uma solução, de e para o imediato. Que não demora muito. Alguns soldados levam-no para a caserna, batizam-no de Sarrico, e lá ficam com ele.
Os meses vão passando, a convivência corre bem mas o miúdo é livre de frequentar a rua e a tabanca. Parece que “é de todos e não é de ninguém”. Não é mascote. Vejo-o, uma vez por outra, nos pequenos bandos de crianças que, de lata na mão, esperam pelas sobras do rancho. Não precisa de comida, quer é brincar e participar nas movimentações da miudagem. Mais dia menos dia, penso, será recuperado totalmente por alguém da família. Chego a estranhar isto não ter ainda acontecido.
4. A “emboscada”
Bissorã, finais de Outubro/66. Oito meses são passados desde o acidente que vitimou o 2º sarg  Sarrico. É alterada a disposição no terreno das forças militares do BCaç 1857 e, assim, a CCaç 1419 sai de Bissorã e vai para Mansabá. Que bela prenda, para final de comissão!
Nas vésperas da mudança, a sociedade civil local organiza um convívio para agradecer o trabalho da Companhia durante os 12 meses que permaneceu em Bissorã. Foram convidados os oficiais, os sargentos e algumas praças. Bom ambiente, muitas bebidas, bons petiscos e, com coisas destas, pouco tempo é preciso para se esquecer a razão das despedidas. Às tantas, alguém me convoca:
– Meu furriel, há para ali pessoal que quer falar consigo. Pedem p´ra ir lá.
Estranhando o despropósito do momento e da hora, bem noturna , lá vou até à porta.
– Oh nosso furriel, um favor, veja se convence o nosso capitão a deixar levar o Sarrico c´a gente p´ra Mansabá! É que ele não autoriza, já fizemos tudo e... nada! Veja lá se o convence!
Tento dizer-lhes que o capitão lá terá as suas razões... assunto complicado... não deve ser possível levar o miúdo... Mas, perante tanta insistência, não resisti:
– Está bem, estejam descansados que eu vou tentar! Esperem aí!
Pego num uísque e por ali fico bebericando, conversando e aguardando a oportunidade de cumprir o prometido. Falo com alguns camaradas sobre o assunto mas ninguém está ali para pensar nisso! O ambiente está animado, barulhento e... ,para mim, há uma resposta a dar ao pessoal que espera lá fora. Vamos lá!
Qual mensageiro da plebe castrense, já envolto em vapores etílicos, um bocado leve no andar e de fala um pouco entaramelada, lá vou eu ao encontro do capitão. De chofre, sem rodeios, em voz bem alta:
– Meu capitão, por que não deixa ir o Sarrico c´os soldados p´ra Mansabá? Estão pr´ali quase a...
Nem me deixa acabar. Com a voz ainda mais alta que a minha, atira logo:
– Oh meu caro Manuel Joaquim, responsabiliza-se por ele?
Pimba!!!... que grande martelada na tola! Inesperadamente, em décimas de segundo, os meus neurónios excitados pelo álcool (anestesiados?) devem ter decidido eu dizer, de imediato:
– Responsabilizo, pois!
O capitão, talvez surpreendido com tal resposta, engasga, pigarreia e... :
– Então está bem! Se assim é, o rapaz fica ao seu encargo a partir de agora!
– Com certeza, meu capitão! Vou já avisar o pessoal!
E não houve mais conversa! Meia volta e lá vou eu para a porta da rua ter com a malta, um pouco zonzo com o que me está a acontecer:
– Podem levar o Sarrico! A partir de agora está por vossa conta... e minha!!!
– Eh!.. bestial !!! Obrigado!!!
Caem-me em cima festejando e voltam para a caserna, rua fora, festejando... eu volto à sala para festejar, digo a alguém “ já me f... ! ” e agarro mais um uísque para me ajudar a digerir o assunto.

Lembro-me bem da saída de Bissorã, bem cedo. Pouca gente na rua, uns acenos tímidos, quase indiferença. É exceção um pequeno núcleo a protestar quando passa por ele a viatura onde segue o Sarrico. Fico surpreendido pois não imaginava tal oposição. Afinal, o miúdo tem família ali em Bissorã! E, ainda por cima, a reinvindicá-lo!
Quem diria, estava sinalizado pela família e ninguém me disse nada?! ... “ merda p`ra isto!”...
Sinto um certo mal-estar. O ruído, ou melhor, a razão daquele protesto incomoda-me: “Olha no que eu me meti! ... F...-se! ”
Lá vou matutando, inseguro e aborrecido, até Mansoa. Aqui, e a caminho de Mansabá, começo a medir verdadeiramente o problema que arranjei e que tenho de resolver!...
Sem saber como, e de um momento para o outro, fico com um menino nos braços, literalmente!

Mansabá > 1967 > Contraluz
5. A decisão
Mansabá, Novembro / 1967. O Sarrico fica a viver com os soldados, a tempo inteiro. Não quero interferir, pois eles gostam dele e tratam-no muito bem. E há também um pequeno grupo responsável pelo seu bem-estar. Do meu lado sucedem-se algumas conversas com o capitão, à procura de uma possível saída para resolver o meu problema.
Passa-se o tempo e nada, nem sim nem sopas. Depois de tudo o que aconteceu, só vejo uma solução para resolver o caso, ética e moralmente aceitável para mim. É levar o garoto para Portugal.
Decisão tomada, vou informar o capitão e, para grande surpresa minha, ouvi-lhe um “não esperava outra coisa”! A seguir, dirijo-me à caserna e dou a notícia aos cuidadores:
– Está resolvido, vou levar o Sarrico comigo para a metrópole! Tratem-no bem, digam-lhe que irei tomar conta dele e que vai gostar muito de estar comigo. Quero que me veja como seu protetor, como a sua segurança quando vocês o deixarem.
Com esta minha decisão há, de novo, festa na caserna. E eu sinto-me confortado, pacificado.
Os dias passam. Não sei o que vai na cabeça do, agora, nha minino. É um menino muito bem tratado por todos. Para já quero que me veja como uma espécie de figura mágica que o pode proteger. Vê-me de longe, não me aproximo, de vez em quando calha trocarmos olhares, deve sentir o carinho do meu olhar, talvez.

Mansabá > 1967 > Vista, de dentro do quartel, de parte da tabanca (W). Em 1º plano nota- se a cobertura de um abrigo

Mansabá, Abril de 1967. Passaram-se cinco meses. É preciso regularizar a situação civil do Sarrico e preparar a sua viagem para Lisboa, prevista para o fim do mês. Vou a Bissau: (i) registá-lo com um nome cujas iniciais são JMSC (cada uma delas corresponde também à inicial de outros nomes: o meu, de meu pai, da sua tabanca natal, de quem o capturou); (ii) autenticar um Termo de Responsabilidade sobre a criança; (iii) obter autorização da PIDE para a viagem; (iiii) comprar a respetiva passagem marítima. Tudo resolvido, regresso a Mansabá. «O Sarrico vai c´a gente!», grita-se na caserna.

Mansabá > 1967 > Regresso das tarefas agrícolas, ao fim da tarde

Bissau, finais de Abril /1967. Adeus Mansabá, olá Bissau! Matam-se saudades das ostras e doutros petiscos (nos três primeiros meses de comissão a CCaç 1419 esteve colocada em Bissau). O dia do embarque aproxima-se. Vai-se à procura de roupa para o menino que fica todo boneco, uma beleza. O pessoal rejubila. E é nesta altura, nas compras, que tenho o que se pode chamar um verdadeiro primeiro contacto físico, afetivo, com o balantinha-mané mas durante pouco tempo, o tempo das compras. Só lhe volto a tocar em Abrantes.

6. Portugal
Lisboa, 9 de Maio de 1967. Cais da Rocha: o UIGE despeja a carga, a alegria anda estampada nos rostos dos militares, de seus familiares e amigos.
Menos efusivo do que antes imaginava, desço as escadas do navio e vou ao encontro da namorada. Um pouco depois nha minino passa junto de nós, todo apinocado e acompanhado por alguns soldados. A minha futura sogra exclama “Olha ali um pretinho tão giro!”.
Digo com alguma indiferença “irão vê-lo muitas vezes” e vejo que não me percebem. É que eu não disse nada a ninguém! A ninguém mesmo!
Segue-se a viagem de comboio para o RI 2, em Abrantes. Só aqui, na hora das despedidas, acontece a entrega do menino. Lágrimas e abraços a selar o momento. Assiste um amigo de Pombal que ali está de carro para nos recolher, a mim e a outro militar lá da terra. A surpresa é grande quando percebe que há mais um passageiro, e que passageiro!
A caminho de Pombal, a primeira paragem é na minha casa, numa aldeia chamada Casal Novo. Minha mãe está sozinha: meu pai está em França, meu irmão mais novo também e o outro irmão está em Moçambique, já recuperado de ferimentos em combate, a cumprir os meses finais de comissão na cidade da Beira. (Como a mãe deve ter sofrido com dois filhos na guerra, em simultâneo durante mais de um ano, e um outro fugido em França!)
Alegria a rodos, vamos todos casa adentro. Saltam um chouriço e uma garrafa de vinho, o menino é motivo de conversa mas não diz uma palavra. Está sentado numa cadeira, hirto, afastado da mesa, como que olhando para o vazio. Vêm as despedidas, sai-se para a rua mas ele ficou onde estava. Minha mãe, que ficou à porta, nota a falta da criança e exclama: “Então não levam o menino?!!!”.
Ficam como que assarapantados com a pergunta mas, de imediato, lhes digo: “Não lhe disse nada!” e para ela: “O menino fica comigo!”. Fica de boca aberta, não quer acreditar, e há mais uns minutos de conversa motivada pelas circunstâncias.
Ao reentrar, verifico que ele está sentado no mesmo sítio. Olha-me calmamente, agora sinto que me olha mesmo! Espantam-me a calma e a confiança que aparenta. Belo trabalho dos soldados, só pode ser. Tentamos conversar. O seu português é tosco mas lá nos entendemos.
Vamos comer mais alguma coisa enquanto minha mãe vai recuperando da surpresa e do espanto. Depois, o sono vem depressa ao seu encontro e já não acordou antes de ser levado para a cama. Minha mãe quer perceber o que aconteceu para ter, assim, um menino em casa. E que menino! A conversa prolonga-se.
Acordo, bem tarde, no dia seguinte. Estavam os dois, no quintal, a tratar das galinhas e doutra bicharada. “Maravilha!, sucedeu química entre eles!” – penso. E diz a minha mãe:
– Queres saber? Logo de manhãzinha fui chamar as vizinhas: “querem ver a prenda que o meu Manel me trouxe da Guiné?” Olha, vieram a correr e abri-lhes a porta do quarto, só se via uma bola preta, assim a cara, com duas coisas mais claras, assim os olhos, e elas não sabiam o que era! Abri um pouco as cortinas da janela para verem melhor e nem imaginas como ficaram! Ele estava acordado, muito quietinho de olhos arregalados, só com a cabeça fora dos lençóis!
Bela cena! Começo a sentir-me bem, verdadeiramente.

Pombal > Casal Novo > Maio/1967 > Os primeiros passos de corrida para o domínio do espaço da aldeia
7. A integração
Situada perto de Pombal, Casal Novo é aldeia pequena mas a notícia da chegada de um pretito da Guiné espalha-se facilmente para lá da aldeia. Será conveniente fazer algum tipo de apresentação social e, para o efeito, nada melhor que aproveitar a missa dominical.
Assim, a 14 de Maio e à saída da missa, lá estou no largo da igreja paroquial de Santiago de Litém com o meu pequenino JM. A apresentação é um sucesso, para mim e para ele. Muito seguro de si, pose empertigada, é alvo de grande curiosidade.
Aproveito a ocasião e vou apresentá-lo ao pároco, que fica encantado. Interessa-me motivá-lo para me ajudar na integração social da criança. Vem à baila a educação religiosa e, logo ali, fica decidido que o menino será batizado.
Resolvo comunicar ao padre a minha intenção de realizar, na igreja local, o meu casamento. Aponto para finais de Agosto. E surge a ideia, que até é do padre: por que não realizar o casamento e o batizado na mesma altura? Acho interessante, ótimo mesmo, mas preciso do acordo da noiva (que veio a concordar).
Para criar vínculos familiares combinou-se que meu pai seria o padrinho de batismo e a noiva seria a madrinha. E em 20 de Agosto de 1967, a seguir ao meu casamento, realiza-se o batizado do menino JMSC. E assim ficamos todos seus padrinhos, diretamente ou por afinidade.



Pombal > Santiago de Litém > Agosto/1967 > Um casamento e um batizado, três meses após a chegada da Guiné

Após o casamento vou morar para Rio de Mouro (Sintra) e deixo o menino com meus pais. Já está decidido, ficará com minha mãe (meu pai trabalha em França) e em Outubro irá frequentar a escola da aldeia.
É a melhor solução pois, sendo eu professor titular de um lugar de escola perto da Figueira da Foz (não consegui transferência atempada para a área de Lisboa, onde a esposa trabalha), será difícil tomar conta do miúdo.
Assim a maior parte dos nossos fins-de-semana, durante o ano letivo, irá passar-se na minha casa paterna. E, para ajudar, nota-se uma enorme empatia entre ele e a agora “madrinha”, a minha mãe.
Na escola a integração é rápida, torna-se um dos melhores alunos, desde a primeira classe. Assim, no ano seguinte, apesar de eu ficar colocado na Amadora, opta-se pela sua não mudança de escola.
Na aldeia é muito querido por toda a gente e, nos seus tempos livres, é vê-lo a participar em pequenas tarefas rurais, as mais diversas, tanto nas da sua casa como nas dos vizinhos. Esta situação dura quase quatro anos e termina pelo Natal/1970, quando meus pais resolvem viver juntos em Paris.

Agualva-Cacém, 1971. Em Janeiro, o JM vem viver comigo. O afastamento da aldeia não esfria as relações com seus habitantes pois grande parte das suas férias escolares futuras será lá que a passa, participando ativamente na vida social local.
A chegada dele coincide com o aumento da família. A uma menina com dois anos e meio está quase a juntar-se uma outra. Nasce um mês depois. Ele é o seu “irmão mais velho” , elas assim o vêem e ele assim o sente. Elas são as suas “manas”.
E temos agora um rapaz prestes a entrar na adolescência, num ambiente totalmente diferente, tanto familiar como social.
Segue o percurso escolar sem sobressaltos de qualquer espécie até ao 25 de Abril. Mais cedo do que eu pensava, e na sequência da Revolução de Abril que o apanha com 13 anos, ele começa a prestar muita atenção ao que se passa na Guiné.
É verdade que sempre tentei criar nele laços afetivos com o seu país natal, ajudando-o a criar e a manter um sentimento de pertença às suas gentes e a um espaço que é seu por nascimento, mas não lhe tinha notado nenhum interesse especial no assunto.


Agualva > Cacém > No carnaval de 1973 > Com a madrinha, passeando as “manas”

8. O regresso
A independência da Guiné-Bissau é para ele uma coisa normal, estava preparado para tal. Sente-se bem com o facto. Há muito tempo que lhe venho dizendo para não menosprezar os estudos pois poderiam ser importantes para vir a ajudar, um dia, o seu país, assim mesmo, o seu país.
Os anos vão passando e a Guiné-Bissau torna-se um chamariz irresistível. Devo ter contribuído para isso, não medindo as palavras para elogiar seu povo e suas belezas naturais, o aroma e o sabor dos frutos, o paladar de um bom chabéu; para recordar o faiscar furioso dos relâmpagos com o ribombar ensurdecedor dos trovões, os cheiros fortes, mesmo excessivos, da floresta húmida e os suaves aromas vindos da savana seca no cacimbo da madrugada; para referir a beleza de um batuque, os sorrisos das crianças e a dignidade dos velhos, a cultura da sua gente. Talvez eu tenha pecado por não o alertar para as coisas más e desagradáveis que também existiam, e que seriam muitas.
Também nunca lhe menti sobre seus pais. Podia ter dito que tinham morrido mas digo-lhe que tanto podem estar mortos como terem fugido no momento em que ele foi apanhado. A verdade é que ele acredita mais na morte deles do que eu. Tento deixar-lhe entreaberta a porta da esperança, sempre.
Ao acabar o nono ano, em 1977, o rapaz pensa em voltar à Guiné. Começo a procurar maneira de lhe fazer a vontade. E, em Setembro, consegue-se lugar num avião militar português.
Temos então o JM a despedir-se dos amigos, dos familiares e do pessoal da(s) aldeia(s) com quem conviveu nos primeiros anos portugueses e onde passava férias escolares nos últimos cinco anos. Prendas arrumadas, enxoval emalado, despedidas lacrimosas e , na data marcada, ida para o aeroporto. Na manhã seguinte, estava-me a bater à porta!
– Então? !!! - pergunto, muito admirado.
– Pifou tudo, padrinho! Ao preparar o embarque, e ao verem a minha idade, perguntaram-me quem é que estava em Bissau à minha espera. Como não sei o nome de ninguém, disse-lhes que era o PAIGC e eles responderam-me que PAIGC é muita gente, não serve.
Fico espantado. Estava tudo tratado, o cônsul da Guiné-Bissau até tinha ajudado a conseguir esta boleia e... afinal, cá temos o rapaz de novo em casa! Ele pode estar frustrado mas para a família cá de casa não há problema. As suas “maninhas” têm seis e nove anos, gostam muito dele e ficam todas contentes.


Sintra > Azenhas do Mar > Setembro/1977 > Na véspera da partida (falhada) para a Guiné, num passeio de despedida com as suas queridas “maninhas”

Retoma-se o processo, tentando não haver falhas. O Consulado guineense assume a orientação e eu apresento-lhes uma espécie de curriculum vitae do JM, com um relato das circunstâncias que me tinham levado a trazê-lo para Portugal. Não demorou a sua aprovação.
Agora só falta comprar a passagem e querem que seja eu a fazê-lo. Perante a minha recusa, o governo de Bissau paga-lhe a viagem na TAP e lá vai ele a caminho da Guiné, agora sim, recomendado a uma figura destacada do PAIGC. Estamos em Janeiro/1978, fez há pouco 17 anos e tem quase 11 de vida em Portugal.
Muito bem recebido em Bissau, a Organização do PAIGC toma conta dele, garante-lhe residência e alimentação até ter emprego. Retoma os estudos. E começa uma nova etapa da sua vida, sozinho, às vezes inseguro mas maravilhado com o novo mundo que lhe aparece, cheio de esperança e entusiasmo.
9. Os anos de Guiné
Razões várias me levam a não fazer grandes referências ao percurso do JM na Guiné-Bissau, quer por princípio quer por respeito pela sua privacidade, não só a pessoal mas também a cívica.
Continua a estudar, integra-se na vida política como militante da JAAC (Juventude Africana Amílcar Cabral), trabalha na administração pública. Sozinho, sem família nem “padrinhos”, vai marcando o seu lugar.
(Obs.: O regresso do JM à Guiné natal vai criar-lhe um natural desejo de saber da situação dos seus pais. Estariam vivos? Como irá ele reagir, que sentimentos vai ter de enfrentar? Que tipo de emoções vai sentir? É sobre tudo isto que, em Apêndice, ele vai ”falar” através da correspondência que me dirigiu.)

A certa altura é escolhido para frequentar o Instituto Superior Karl Marx, de Berlim, na então República Democrática Alemã, na área de formação administrativa e política ou coisa parecida. E assim, alguns anos depois, cá temos o rapaz outra vez na Europa mas, infelizmente, gora-se a espectativa de uma passagem por Portugal.

Alemanha ( RDA ) > 1986 > Convivendo

Acabado o curso, regressa a Bissau.
A Guiné que ele tinha deixado estava a começar a resvalar para o que, na altura, ninguém imaginaria. Mas os sinais já lá estavam. A propósito diz-nos, em Agosto de 1986:

Como é do vosso conhecimento as coisas por cá não vão lá muito “católicas”. (...) os vencimentos mal chegam para um indivíduo comer - a inflação é galopante e, quando assim é, o pessoal (...) e reclama, outros lembram-se dos bons velhos tempos do colonialismo em que havia de tudo (...), outros ainda só pensam em emigrar (...) situação não muito alarmante mas que precisa duma certa atenção por parte das entidades responsáveis (...).

A sua atividade laboral desenvolve-se na área política, tendo nos anos seguintes trabalhado em diversos gabinetes ministeriais.
Entretanto, surge-lhe a oportunidade, que não perdeu, de vir passar seis meses em Portugal. Ótimo para matar saudades, cada vez maiores, da sua família portuguesa. E ei-lo de volta a Lisboa, a Agualva-Cacém e ao seu Casal Novo. Estamos em 1990, treze anos depois do seu regresso à Guiné, e temos o nosso JM de novo em Portugal e nos ambientes da sua infância e adolescência.
10. A reviravolta
A sua visita é uma grande alegria, para ele e para todos os seus familiares portugueses. Chega radiante e anda cada vez mais radiante. Aproveita para renovar o seu Bilhete de Identidade português. Não quer regressar sem este documento pois a vida social e política na Guiné começa a dar sinais de instabilidade. Tem alguns pressentimentos desagradáveis, está bem colocado para se dar conta disso. Infelizmente virão a concretizar-se e a um nível difícil de imaginar, naquela altura. Apesar de tudo, JM faz planos para desenvolver atividade económica em Bissau. Mas o destino baralha-lhe os planos. Um problema surge na Conservatória, não lhe aceitam o processo de renovação do B.I.
É verdade, tudo tinha mudado para casos como o dele. O que tem de fazer, agora, é pedir a recuperação da nacionalidade portuguesa. Tem direito a esta se tiver residido em Portugal, em permanência, num determinado período imediatamente anterior a 25 de Abril de 1974 (cinco anos?).
Ora bem, não há problema nenhum, é fácil provar a sua residência pois tinha frequentado a escola pública durante todo aquele período, há registos oficiais disponíveis e credíveis. Pois é… é fácil, mas a entrega do B.I. só acontece passados dois anos. Dois anos!!! Por isso não voltou a Bissau na data prevista, tendo por cá ficado à espera do B.I.
Entretanto, a instabilidade política e a degradação económica da Guiné vão aumentando rapidamente e afastam, cada vez mais, a ideia de regresso. Surgem mais razões para diluir esta ideia: confirma que a sua ligação afetiva à família portuguesa é muito grande e envolve-se sentimentalmente com quem, mais tarde, contrairá casamento e será mãe dos seus filhos.
Apesar de adorar a sua Guiné, sempre interessado e preocupado com o que lá se passa, também se sente muito bem como cidadão português. Para além da família constituída há relações fortes com muita gente, com os locais portugueses onde cresceu e com a outra sua “família” que o acompanhou nesse crescimento. Sem esquecer os ex-militares da CCaç 1419 que tomaram conta dele, desde Bissorã até Abrantes, com quem se encontra anualmente, de há 18 anos para cá. Não mais regressou.
11. Epílogo
Está no fim esta narrativa, feita sem outro objetivo que não o de referenciar momentos e aspetos da vida de um homem que, desde os seus 4 anos de idade, se podem caraterizar como especiais e o de dar a conhecer um outro lado da guerra colonial que criou afetos que perduram, pelo menos enquanto forem vivos os seus intervenientes.
Há ainda um acontecimento importante a referir, o reencontro de JM com seus pais.
Este acontecimento poderia integrar um processo de análise das possibilidades de reintegração de alguém que tenha sido afastado da sua família natural, nomeadamente quando esse alguém é uma criança nos seus primeiros anos de vida. Poder-se-á pensar que o processo é simples. Tudo leva a crer que só excecionalmente o será.
Este caso de um menino de quatro anos retirado, à força, da sua família e do mato da Guiné e catapultado para uma sociedade europeia, mesmo que seja rural-portuguesa, pode dizer alguma coisa sobre o assunto. Não esquecer que este é um caso inserido numa guerra, o que também o torna especial.
A seguir, em apêndice, JMSC relata os momentos que (e como) viveu aquando (e a partir) do reencontro com seus pais, quase doze anos depois da sua separação. São relatos,  a quente,  de sentimentos e sensações que, na altura, muito mexeram com ele e connosco, seus familiares em Portugal. E, no meu caso, ainda hoje. A composição deste Apêndice mostrou-mo.
(continua)


Um abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419

Fotos: © Manuel Joaquim (2010). Todos os direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Guiné 63/74 - P7260: Blogoterapia (166): Virar as costas sem se despedir (José Eduardo Alves)

Maria da Conceição, esposa do nosso camarada José Eduardo Alves, no meio dos miúdos de Mampatá.


1. Mensagem de José Eduardo Alves, (Leça) *, ex-Condutor da Cart 6250, Mampatá, 1972/74, com data de 9 de Novembro de 2010:

Caros editores e amigos
Sinto no escrever de muitos camaradas do blogue uma frustração pelo que aqui vou exprimir a minha opinião.

No dia que cheguei à Guiné, olhei à volta e pensei: Que venho aqui eu fazer, isto não é meu para eu defender - olhei à volta e não podia ver nada amarelo, era tempo fraco e quase tudo que era amarelo, não prestava.
Talvez me enganasse, mas estava convicto, passaram-se 26 meses, chegou a hora da partida, que alegria, finalmente ia recomeçar vida nova.

Passaram 35 anos, olhei para trás e disse:
- Afinal deixei amigos na Guiné e não me despedi deles, quando embarquei eram 23 horas, noite escura, olhei para trás e não vi ninguém.

Falei com camaradas que também lá estiveram e um deles disse-me:
- A mim aconteceu o mesmo ou quase, quando embarquei estava nevoeiro, mas depois fui lá de propósito despedir-me.

Então eu fui lá encontrar os meus amigos, partir mantanha.

Voltei e vou novamente.

O que se encontra lá, é o que a Catarina Furtado encontrou, aquilo que semeámos e a verdadeira simpatia daquela gente. Acho que faz falta a muitos irem lá despedir-se dos amigos e verificar que não temos inimigos na Guiné.

Caros editores, se não tiver interesse fica a intenção.

Uum abraço do tamanho dos meus braços para todo o blogue.
J. Eduardo Alves ( Leça )
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4458: Bem-vindo, Comandante Marcelino! Obrigado por ter tomado conta de mim na Guiné (José Eduardo Alves)

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7195: Blogoterapia (165): A geração da guerra (Joaquim mexia Alves)

Guiné 63/74 - P7259: Notas de leitura (168): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
As memórias do Luís Cabral chegaram ao fim.
Passo agora para a crónica dos feitos dos fuzileiros.
Até 17, não desarmo. Depois, lembrem-se de mim enquanto percorro os itinerários por onde andei. Vou falar com a lavadeira do Jaime Machado, procurar os amigos do Torcato, comprar uma morança em Finete para o Jorge Cabral (mais dama de companhia e duas meninas para ir às compras), levo roupa para bebés, o Humberto Reis já me anunciou que tem vários quilos de esferográficas e lápis para a escola de Bambadinca. É bom sentir que estamos vivos e enternecidos. Contem comigo se houver encomendas pequenas. Ninguém pode viajar com mais de 23 kg e um saco de mão (neste levo todos os livros que pretendo oferecer), não se esqueçam.

Um abraço do
Mário



“Crónica da Libertação” (5), por Luís Cabral

Beja Santos

Do ataque a Conacri ao assassinato de Amílcar Cabral

A nova realidade a partir de 1970 eram os foguetões, o jato do povo. Mansoa, a cerca de 60 quilómetros de Bissau, foi o primeiro aquartelamento a experimentar a nova arma. Os comandantes eram Manecas e Baro, originários de Cabo Verde. 

Por essa época, tinha-se ganho a consciência de que o PAIGC adquirira uma grande capacidade de lutar e vencer. Por isso, os militares do Estado-Maior, em Bissau, planearam uma destruição do PAIGC dentro da República da Guiné. Escreve Luís Cabral: 

“Esta aventura sem precedentes na história africana contemporânea foi cuidadosamente preparada por Spínola. Apoiados por representantes em Conacri de outros países da Europa Ocidental interessados na queda do regime de Sekou Touré, este plano, que seria executado com a cumplicidade de altas personalidades do Governo e do Exército guineense, não tinha, segundo a opinião dos seus organizadores, qualquer hipótese de falhar”. 

São hoje sobejamente conhecidas as fases do ataque e a orgânica do seu planeamento. Houve desaires inesperados, resistência, desencontros e deserções. Tudo conjugado, a situação internacional ainda se tornou mais hostil com o regime de Lisboa.

Depois de descrever os redobrados ataques ao Morés e um grave acidente em que se afundou um barco do PAIGC no porto de Boké, o autor refere o novo encontro de Amílcar com os dirigentes do partido, a seguir ao ataque a Conacri. Era crucial mexer nas estruturas, alterar os estatutos do partido, encontrar novas orientações para o Partido-Estado. Para Amílcar, a situação tinha carácter temporário, na devida altura haveria uma separação entre funções partidárias e funções estatais. Foi criado o Conselho Superior da Luta, de onde se elegeria o Comité Executivo da Luta e este órgão incluiria os Membros do Conselho de Guerra, o Secretário-Geral, os Comités Nacionais das Regiões Libertadas do Norte e do Sul e os Comandos das três Frentes. 

Houve referências muito directas à vida pessoal dos quadros e dirigentes do partido e a certa altura terá ido directo ao assunto: 

“Ninguém dorme à noite como bom militante e se levanta de manhã disposto a trair, disse o Secretário-Geral. As condições muitas vezes subjectivas que levam o quadro à traição vão-se acumulando pouco a pouco sem que ele tenha sequer consciência disso. Até que um belo dia sente que tem todas as razões para ser contra o partido ou contra a sua direcção”. 

Amílcar mostrava-se muito crítico sobre o comportamento de alguns dirigentes e justificou algumas desorientações pelas características da luta: grandes distâncias, carências de meios de comunicação, sérias dificuldades numa verdadeira coordenação das forças ao nível nacional.

Nas páginas seguintes, Luís Cabral dá conta da vida organizativa do PAIGC a partir do Senegal. Mais adiante, refere os acontecimentos de 20 de Abril de 1970, em que, em pleno chão manjaco morreram três majores, um alferes e alguns acompanhantes. Para Cabral tinha sido urdido um plano para levar uma parte significativa das forças do PAIGC na região entregar-se às autoridades portuguesas. André Gomes, o dirigente local, limitara-se a dirigir fogo sobre os oficiais. Como se sabe, esta versão é uma descarada mentira, os oficiais foram pura e simplesmente chacinados, não ofereceram qualquer resistência, vinham parlamentar e foram retalhados com armas brancas.

Os relatos seguintes prendem-se a acontecimentos vividos por Luís Cabral na região de Zinguichor. Depois relata a vinda a territórios libertados de uma missão especial da Comissão de Descolonização da ONU. Não deixa de aludir à passagem por Zinguichor de dirigentes fugidos da colónia como Momo Turé e Aristides Barbosa, que faziam parte do grupo de Rafael Barbosa. Para Luís Cabral, Momo era conhecido pelas suas actividades contra o partido (que tipo de actividades e com que práticas de sabotagem, nunca ficamos a saber).

Iniciou-se um processo eleitoral para seleccionar os candidatos a conselheiros regionais, e Cabral considera que todo este processo deu alento à consulta popular que veio a desaguar na declaração unilateral de independência, em 1973. De 1972 para 1973, aumentou a projecção internacional de Amílcar Cabral, presente em conferências em três continentes. A ONU, através de uma resolução adoptada pelo Conselho de Segurança, consagrou o reconhecimento do PAIGC como representante legítimo da Guiné e Cabo Verde. 

Em Moscovo, Amílcar Cabral obteve armamento susceptível de destruir a Força Aérea, os mísseis denominados Strela. No regresso, Amílcar encontra-se com Luís e confessa-lhe que há problemas graves nas fileiras do partido. Na noite de 31 de Dezembro, Cabral dirigiu a tradicional mensagem de Ano Novo aos combatentes. Referiu-se às eleições para Assembleia Nacional Popular e à necessidade de proceder a modificações na estrutura da direcção do partido com o fim de dar a um certo número de camaradas a possibilidade de se dedicarem inteiramente ao desenvolvimento da luta das ilhas de Cabo Verde.

No fim da tarde de 21 de Janeiro de 1973, Luís Cabral chegou a Dakar, vindo de Zinguichor. É aí que recebeu a notícia do assassinato de Amílcar, na véspera. Em estado de choque, recebe pêsames de representantes do Governo, dos seus familiares, dos colaboradores mais íntimos. Recordou a sua infância e juventude e tudo quanto devia ao irmão, não lhe saia da mente aquela inteligência viva, a sua infatigável capacidade de trabalho, a sua alegria de viver. São páginas de saudade incontida, é impossível lê-las a não ser com profundo respeito e aceitar a sinceridade da dedicação. Por exemplo: 

“Era espantoso como conseguia fixar os nomes dos seus camaradas. Podia passar meses sem ver um combatente, mas ao reencontrá-lo na sua base ou na fronteira, chamava-o quase sempre pelo seu nome. Se tratasse de alguém que vira doente ou ferido, num hospital, queria logo saber da sua saúde com o sincero interesse que consagrava à vida de cada militante do partido, de cada elemento da nossa população”.

Luís Cabral parte para Conacri, não sem antes ter feito uma declaração dizendo que o crime não poderia parar o avanço da luta que ia continuar vitoriosamente. E termina: 

“Fui surpreendido pelas minhas próprias palavras. E compreendi que não podia haver dúvidas de que o partido de Amílcar Cabral seria capaz de ultrapassar a maior prova da sua história. Nós, seus companheiros, tínhamos de encontrar forças para serrar fileiras, e, no caminho por ele traçado, levar o partido e os nossos povos para as vitórias por ele tantas vezes anunciadas”.

É um livro muito importante, não se pode descurar este entusiasmo e esta devoção a Amílcar Cabral. O PAIGC, goste-se ou não, foi edificado à semelhança da imagem que lhe deu Amílcar Cabral. Foi esta a sua grandeza, foi esta a contingência de tanta ambiguidade e das roturas que chegaram, não muito tempo depois.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7241: Notas de leitura (167): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (4) (Mário Beja Santos)