Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > 23 de Novembro de 1969 > Na véspera dos seus 22 anos, o Tony Levezinho, furriel miliciano da CCAÇ 12, assiste, impotente, ao atascamento da autogrua Galion, que a Engenharia Militar mandou para Bambadinca... A solução foi passar a noite dos seus anos em plena bolanha ( de Samba Silate / Nhabijões, de má memória) a montar segurança ao monstro... (1)
Guiné > Zona Letse > Sector L1 > Bambadinca > Pelotão de Intendência > 1970 > A autogrua, Galion, a operar no cais de Bambadinca, no rio Geba Estreito. Foto gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf Mil Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).
Foto: © Luís Moreira(2005). Direitos reservados.
Amigos & camaradas da Guiné:
1. Deixem-me hoje usar do privilégio de editor do blogue - do latim, priviligiu(m), de privus (privado, pessoal) + legem, lex (lei) > lei excepcional feita em favor de uma pessoa singular, um privado...
Refiro-me ao privilégio de (i) poder pôr entre parênteses o interesse colectivo da tertúlia, (ii) atrasar os ponteiros do relógio e (iii) abusar do meu tempo de antena - neste caso, de espaço de postagem - para fazer aqui uma homenagem a um amigo que hoje faz anos. O público e o privado não se devem misturar, mas acontece que o meu amigo também é camarada da Guiné e, mais do que isso, membro desta tertúlia. Convenhamos que não é dos mais activos (e, sobretudo, regulares), mas cumpriu as regras da praxe e figura, de pleno direito, na nossa fotogaleria.
Refiro-me ao António Levezinho (Tony, para os amigos). Faz hoje 59 anos (já lhe dei os parabéns pelo telemóvel) e vive, retirado, com a sua encantadora Isabel, na sua casa do Algarve, em Sagres. Ainda não fui lá visitá-lo, com muita pena minha e apesar da insistência dele. Sabem como é: as desculpas, estafadas, e sempre as mesmas, dos nossos desfasamentos de calendário, de agenda, das nossas vidas trocadas (uns que já se reformaram, outros que ainda trabalham).
Não me esqueço (nem eu nem o Humberto Reis) dos anos do nosso amigo Tony, não por que eu tenha a memória de elefante do Humberto, mas porque há 36 anos atrás, em 24 de Novembro de 1970, a folha do calendário dessa semana ficou para sempre impressa na matriz da minha memória...
Abreviando razões: houve uma sucessão de acontecimentos marcantes: (i) a 22 de Novembro de 1970, Conacri é invadida por forças anfíbias onde participam homens que nós conhecíamos há meses, e que eram nossos vizinhos (a 1ª Companhia de Comandos Africanos, com sede em Fá Mandinga, a Fá do Amílcar Cabral e do Jorge Cabral); (ii) nesses dias estivemos em estado de alerta e multiplicaram-se as acções de segurança e imediata, durante o dia e durante a noite; (iii) o Tony e o Humberto estiveram de serviço com o pelotão deles na Missão do Sono, em Bambadincazinha; (iv) os amigos mais próximos (ou os disponíveis) foram cantar-lhe os parabéns à meia noite, transportando com eles uma garrafeira ambulante; (v) a festa sobrou para a manhã seguinte: fomos todos (já não posso precisar quantos) a Bafafá, almoçar à Transmontana - um almoço bem regado, já que estávamos na fase do repouso do guerreiro...
O problema é que no dia seguinte, dia 25, pelas 7h da manhã, nós os três - eu, o Tony e o Humberto - mais outros 250 camaradas, estávamos a sair do Xime, para uma operação na área definida pelo Rio Geba- Rio Corubal-Buruntoni-Canhala... O resto já é sabido, está escrito no nosso blogue (2)...
De facto, foi a descida aos infernos do Xime... Regresso ao quartel, às 21h00, devido a dois casos de intoxicação alimentar, provocadas pelo mau estado das rações de combate (!), nova partida às 5h45 do dia 26, seguindo o mesmo trilho (!)... Cito a História da CCAÇ 12, de que eu próprio fui o relator:
(...) "Três horas depois, pelas 8.50h, já perto da Ponta do Inglês, o IN desencadearia uma violenta emboscada em L sobre a direita, precedida por um tiro isolado que foi confundido com um sinal de aviso duma eventual sentinela avançada, e que apanhou na zona de morte os 3 Gr Comb do Agr C [ CART 2715] e 1 Gr Comb (4º) do Agr B [CCAÇ 12].
"Os primeiros tiros do IN, especialmente de LRockets, atingiram mortalmente o picador e guia do Agr B, Seco Camará, que ia na frente, e os quatro homens que o seguiam, incluindo um graduado [furriel miliciano Cunha], tendo ferido gravemente outro. Com rajadas sucessivas de LRockets e armas automáticas o IN, fixando as NT, lançou-se ao assalto sobre os primeiros homens, mortos ou gravemente feridos, conseguindo apanhar-lhes as armas, e só não os levando devido a pronta reacção das NT.
"É de destacar aqui a acção heróica dos soldados Soares (CART 2715), que veio a ser mortalmente ferido, Sajuma (apontador de bazuca do 4º GR Comb/CCAÇ 12) que ficou ferido numa perna, e Ansumane (apontador de dilagrama, também do 4º Gr Comb/CCAÇ 12, ferido ligeiramente nas costas), que se lançaram ao contra-ataque, juntamente com outros camaradas e alguns graduados, a fim de quebrar o ímpeto do IN e de recolher os mortos e feridos.
"0 ataque durou cerca de 20 minutos, sendo a retirada do IN apoiada com tiros de mort 82 e canhão s/r que incidiram sobre a estrada, e especialmente sobre os 2 últimos Gr Comb (l° e 2º) da CCAÇ 12, assim como rajadas enervantes de pistola metralhadora, de posições que ainda não se haviam revelado, nomeadamente de cima das árvores" (...).
(...) "Em consequência da emboscada IN, uma das mais violentas de que há memória na região do Xime, pelo seu impacto sobre as NT, a CART 2715 [Xime] sofreu 5 mortos (l Furriel Mil) e 7 feridos, e a CCAÇ 12 teve 2 feridos (dos quais 1 grave, o Sold Sajuma Jaló), e 1 morto (o picador e guia permanente das NT Seco Camará, na altura ao serviço da CCS do BART 2917, e que do antecedente já tinha dado provas excepcionais de coragem e competência, tendo participado com a CCAC 12 em quase todas as operações a nível de Batalhão no Sector L1)" (...).
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > 1970 > Furriéis Levezinho e Henriques, à civil... "Dois amigos para a vida"...
Foto: © António Levezinho (2006). Direitos reservados
2. Como se pode concluir, os aniversários do Tony (Levezinho), na Guiné - o 22º e o 23º - foram sempre celebrados em condições, no mínimo, insólitas. Eu Setembro do ano passado (1), eu tinha prometido reconstituir esses dias loucos (e trágicos) que se seguiram às copiosas celebrações do seu 23º aniversário (24 de Novembro de 1970, dois dias depois da invasão de Conacri e na véspera da Op Abencerragem Candente) ... Ainda não é desta, talvez por pudor, ou por falta de coragem...Mas as promessas são mesmo para se cumprir...
Hoje vou-me limitar a cantar-lhe os parabéns, em público, no nosso blogue, e dar-lhe aquele abraço caloroso de um "amigo para a vida"... As palavras são dele, extraídas de uma mensagem que ele me mandou já há tempos (11 de Maio de 2006) e que eu não publiquei na altura:
"Meu Velho AMIGO,
"Surpreendeste-me com o teu escrito a meu respeito (3), o qual me suscita o breve, mas muito sentido, comentário seguinte.
"Se por um lado tenho dúvidas quanto ao merecimento das palavras que usaste para a mim te referires, tenho, por outro, a GRANDE CERTEZA de nos podermos considerar DUPLAMENTE FELIZES, a saber: desde logo porque regressámos inteiros do pesadelo (isto apesar de, no meu caso, ter partido o polegar da mão esquerda, numa renhida partida de futebol na catedral de Bambadinca, conforme a foto com o Fernandes documentava); mas, sobretudo, por termos tido a oportunidade de trazer na bagagem AMIGOS PARA A VIDA.
"Mais do que qualquer recordação, mesmo daquelas, poucas talvez(?), que não pertencem ao rol das que se encontram arquivadas no cacifo da memória dosdias dramaticos que partilhamos, guardo daqueles tempos já distantes a plena convicção de que a minha (a nossa) guerra foi ganha, pelas amizades conquistadas.
"Por não ter dúvidas de ser este um sentimento comum de todos os tertulianos, aproveito para te FELICITAR e, ao mesmo tempo, AGRADECER (apesar da minha postura ser mais de voyeur) pelo empenho, trabalho, entusiasmo e muita qualidade que ao longo deste primeiro ano emprestaste a este ESPAÇO DE PARTILHA a que todos já nos habituámos, mesmo aqueles menos activos, como eu.
"BEM HAJAS. Tony Levezinho"
____________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 20 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXCVIII: Recordar é viver ou...a memória de elefante do Humberto Reis (Humberto Reis / Luís Graça / António Levezinho)
(...) "Texto do Humberto Reis:
"(...) A Galion a carregar vacas no cais fez-me lembrar o episódio dela no percurso do Xime para Bambadinca. A Galion veio numa LDG [ Lancha de Desembarque Grande] desde Bissau até ao Xime. E daí para Bambadinca ia pelos seus próprios meios . Passou bem pelo destacamento da Ponte do Rio Undunduma, mas quando chegou a meio da bolanha a estrada não aguentou o peso e cedeu. Resultado, a Galion desequilibrou-se e ficou meio enterrada na bolanha. Julgo que isto se passou em Novembro de 69 (dia 24 ou 25 - aniversário do Tony). Tenho este episódio documentado mas, como era hábito naquele tempo, está em diapositivo" (...).
(...) "Comentário meu (L.G.):
"Humberto: O Tony diz que tu tens memória de elefante e eu rendo-me à evidência… Tu lembras-te de coisas do arco da velho que se passaram no cu de Judas… E se havia um sítio, no mundo, que podia ser o cu de Judas, a Guiné era seguramente esse sítio, esse buraco… Lá tudo se enterrava: na lama, no tarrafo, no rio, nas bolanhas e lalas, nas picadas, nos buracos das minas… E quase a sempre a cabeça... no chão! Até a mastodonte da Galion se enterrou no seu passeio do Xime a Bambadinca! (...).
"Texto do Tony (António Levezinho), também da CCAÇ 12:
"Que ninguém duvide! Na verdade o Humberto tem mesmo memória de elefante. Foi todo o dia 24 de Novembro [de 1969] (4) na tentativa desesperada de desatascar a Galion antes que a noite caísse. Os esforços revelaram-se infrutíferos e assim não tivemos outra alternativa que não a de convidar a mosquitada da bolanha a juntar-se a nós para comemorarmos todos (em silêncio, como a situação de emboscada impunha) o meu 22º aniversário.
"À falta de Champanhe serviram-se rodadas de Repelente que, a julgar pela sua ineficácia, funcionou como uma iguaria de entrada para os mosquitos, antes que estes chegassem à nossa pele, já depois de perfurarem até aquela capa de borracha que, creio, chamávamos ponche" (...).
(2) Vd. post de 25 Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)
(3) (2) Vd. post de 9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Amigos para sempre (Tony Levezinho, CCAÇ 12)
(4) Tony: eu acho que esse episódio foi na véspera dos teus anos, ou seja, a 23... Passaste a noite (de 23 para 24), emboscado, mas nesse dia, já ao fim da tarde ou à noite, ainda deu para abrir o espumante: vê a foto inserida no post de 20 de Setembro de 2005, referido em (1)...
Mas isso também não é muito importante: não usávamos calendário... Por outro lado, tens suficientes estórias da Guiné - umas mais divertidas,temerárias ou loucas, outras mais tristes e dramáticas - para contar ao teu primeiro neto que há-de nascer em Janeiro de 2007, que é o meu mês, e que há-de ser um gajo porreiro como o avô materno, um grande ser humano como tu... Não me leves a mal estas (in)confidências e esta intromissão na tua vida privada: o problema é que as nossas estórias - quando tínhamos 21, 22 e 23 anos - estão todas irremediavelmente entrelaçadas... Bom regresso à tua de Ponta de Sagres, onde final tudo começou: a aventura dos Descobrimentos, o princípio, o meio e o fim do Império...Irei lá, seguramente, um belo dia destes, beber um copo contigo e com a tua Isabel...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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