sábado, 24 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6237: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (18): Estados de alma, aerograma de 20 de Abril de 1971

1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 15 de Abril de 2010:

Caro e amigo Carlos,
Junto encontrarás mais um pedacinho da minha história por terras da Guiné. Neste caso nem tive que rebuscar na memória; limitei-me a transcrever o aerograma que então mandei à minha madrinha de guerra.

Para este bate-estradas foi a sua última missão, e vai regressar ao baú das recordações de minha esposa.

Muita saúde para ti e para todos os nossos camaradas, com um abraço imenso do
José Câmara


Memórias e histórias minhas (18)

Estados de alma


Caros camaradas
Numa das trocas de correspondência que tive com o Carlos Vinhal, este ofereceu-me a possibilidade de abrir uma página para a correspondência que mantive com a minha madrinha de guerra. Declinei o convite, por me parecer que isso não traria nada de novo. Fui sempre muito comedido na minha correspondência, e nunca esqueci que me dirigia a uma jovem com apenas 16 anos de idade.

Estados de Alma é um exemplo do que escrevia e como escrevia. Caso raro, o aerograma que transcrevo é todo dedicado à Guiné. Para além disso, refiro um acontecimento da CCaç 3327 na Mata dos Madeiros. A primeira Missa que lá tivemos aconteceu no dia 17 de Abril de 1971. Para muitos de nós também era a primeira desde que deixáramos Santa Margarida em Janeiro desse ano. Para a religiosidade do soldado açoriano, e não só, esse acto de fé constituíu um dia de festa.


Aerograma de 20 de Abril de 1971

"Isabel,
Noite cálida e serena; convidativa ao devaneio do espírito e à conversa amena e sadia.

É, sem dúvida, uma excelente noite para escrever, e para me inteirar da tua saúde, o melhor dom que podemos ter, e que espero seja tua assídua companheira.

Isto por aqui vai óptimo, melhor mesmo do que aquilo que esperávamos. Para além do trabalho que é muito, diga-se de passagem, aqui sempre temos outra liberdade; claro que essa liberdade não é em todos os sentidos, mas estamos à vontade para comer, dormir, trabalhar e ainda temos tempo para pensar e sonhar. O que não há são notícias fresquinhas. E, sinceramente, é melhor não haver.

Nesta mata, vil e cruel assasssina, em que cada árvore pode esconder um turra e cada trilho mil e uma minas, quase tudo nos tem corrido da melhor forma. Não sabemos o que são as adversidades do tiroteio. Até já estamos admirados. Imploramos a Deus que possamos continuar admirados por muito tempo.




Por falar em Deus, não sei se algum dia te disse que os soldados da minha companhia tinham comprado uma imagem do Sagrado Coração de Maria... e, no último Sábado, tivemos a nossa primeira missa no mato.

Fizemos uma capelinha com folhas de palmeira; o altar, feito à pressa, era de caixas de cerveja. Os crentes vestiram a fatiota de gala: botas de lona, camuflado e espingarda às costas para o que desse e viesse.

Foi uma missa com um sabor especial... diferente... de muita fé, em todos os sentidos. Foi, por assim dizer, a inauguração da nossa Igreja... a Missa Nova do nosso muito amado Sagrado Coração de Maria

Foi um recordar de outros tempos, mas com a alegria própria de quem é jovem e sabe sê-lo.


Acampamento e localização da capela (seta amarela). Como nota a salientar, a cuidada vedação à volta da capela

E é tudo. Cumprimentos...".


A imagem do Sagrado Coração de Maria acompanhou sempre a CCaç 3327. Sem o poder confirmar, foi-me dito que a imagem está depositada na Igreja de São João Baptista, fazendo companhia a muitas outras imagens que acompanharam as companhias açorianas do BII17.

A majestosa Igreja de São João Baptista está ao centro do castelo que ostenta o mesmo nome, e que ao tempo era a sede do BII17, na cidade de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6127: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (17): Quem marca o destino é Deus

1 comentário:

Anónimo disse...

Bonito e cheio de simbolismo este "bate estradas".
À Paz de espírito que a Religiosidade podia trazer, junta-se o ombro amigo e confidente da Madrinha de Guerra,uma das "Figuras" impares na nossa guerra no Ultramar.
Um abraço

Luis Faria