quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P523: Blopoesia: O meu país megalítico (Luís Graça)

o meu país megalítico / luís graça

um estranha maneira de dizer adeus.
um estranho povo este
que vem ajoelhar-se
no cais da partida.
não em oração
para aplacar a ira dos deuses
mas vergado.
vergado à toda poderosa razão
de estado.

a tentacular força centrífuga
que de há séculos
te leva os filhos teus
para fora.
paridos e expulsos da mátria
para longe.
bem para longe.
muito para lá do mar.

uma despedida breve
com lágrimas salgadas no rosto
e lenços brancos em fundo preto.

todas as despedidas são breves e tristes.
o momento
em que o niassa apita três vezes
e levanta a âncora
nunca se poderia eternizar:
diz o capitão de mar e guerra,
lencinho ao pescoço,
cheirando a vate 69,
fotocine, cinéfilo,
garboso, charmoso,
pronto para a acção.

há um briefing às cinco da tarde
já em velocidade de cruzeiro,
depois do bugio,
no mar alto português,
anuncia o capitão
pouco ou nada miliciano,
que serve de mordomo,
pequeno-burguês.
vai na segunda comissão,
o oficial provinciano,
que nunca ouviu falar
da batalha da ilha do como.

e o filme da noite é
uma comédia,
acrescenta o nosso primeiro,
a servir de porteiro
do cais do sodré.
um gajo bacano
num país de bacanos,
de soldados rasos, primeiros cabos,
furriéis e segundos sargentos.

uma tragicomédia,
escreverei eu
no meu diário
a que mais tarde chamarei
o diário de um tuga.
cadé os oficiais ?
cadé a elite da nação ?
os filhos-família
os primeiros
a fina flor
os morgados
os primogénitos
os fidalgos
a casta
a raça
o sangue azul
o pedigree
os melhores de todos nós ?
morreram todos
em alcácer quibir.

lisboa revista
em filme de oito milímetros.
a preto e branco.
ou a preto e negro,
uma só não,
valente e imortal,
ironiza alguém.
o niassa colonial
na azáfama do seu vai-e-vem
antes de ir
parar à sucata.
inglória a sucata da história
que eu perdi
aos dezoitos anos
quando dei o nome para as sortes.
estranha palavra esta, das sortes,
que rima com desnortes
e com mortes.

a despedida breve e triste
do niassa
e ainda mais triste é o filme.
sem som.
sem palavras desnecessárias.
a preto e branco
que alguém terá feito
no cais das sete partidas.
talvez a noiva
que ia vestidade de branco
com xaile preto.

a ponte de salazar.
o velho abutre que alisa as suas penas,
dirás sofia, pitonisa,
quase morto mas não enterrado.
os últimos golfinhos do tejo.
a última fragata de vela erguida.
a última caravela.
o último império.
lisboa e o seu casario.
branco.
o filme a preto e branco.
um gato preto à janela.
lisboa e as suas ruínas
pré-pombalinas.
o poço dos mouros.
o poço dos negros.
o lundum. a umbigada.
a procissão
da nossa senhora da saúde.
a santa inquisição
zelando pela pureza do sangue.
o cemitério dos prazeres
ao alto
com os seus altos ciprestes negros.
os mastros dos navios
da carreira colonial.
o império por um fio.
a vida que se recapitula
de fio a pavio
no último comboio da noite
que veio do campo militar
de santa margarida.

as santas das nossas mães
que ficaram em casa
a acender a vela à santa das santas.
um fado que eu ouvi no bairro alto
e que já não era batido
nem dançado nem cantada
um fado apenas gemido.

ordeiros os soldados
como os cordeiros da matança da páscoa.
no cais da rocha conde de óbidos,
alinhados
como os eléctricos amarelos
que vão para a cruz quebrada.
empilhados. aboletados.
requisitados
às mães para servir
a pátria.
o pai-patrão
que nos cobra o dízimo
em sangue suor e lágrimas.

mudos, agrilhoados, os básicos,
uns refractários,
outros desertores,
cozinheiros, corneteiros,
apontadores de diligrama,
municiadores de metralhadora,
atiradores,
coitadas mães que tais filhos pariram,
diz a letra do ceguinho.
subindo o portaló o cadafsaldo
com um nó na garganta
bem disfarçado.
os lenços brancos
como em fátima no 13 de maio.
algumas bandeiras verdes-rubras,
poucas e loucas,
que os tempos não são
de exaltação
patriótica.
o hino
canta-se com voz rachada,
em disco riscado
pelas tias
do movimento nacional feminino.

a mesma atitude
admirável
de patética resignação
perante o arbítrio dos deuses
que tudo podem.
diz o capelão,
cheio de unto e de virtude,
que é um povo religioso
porque tem o sentido do pathos.
da tragédia inelutável.

senhora minha, protege-me,
das minas e armadilhas,
dos fornilhos e das bailarinas,
das canhoadas e roquetadas,
das morteiradas,
dos estillaços
e dos tiros de costureinha
do IN.
dos esquentamentos e das sezões,
dos ataques de abelhas
e das formigas carnívoras.
mas também do cone de fogo
das nossas bazucas e canhões sem recuo.
das piçadas e dos louvores dos meus comandantes.
e sobretudo de mim mesmo,
soldado malgré moi
soldado à força
arrebanhado, arregimentado, aboletado,
requisitado, condenado, ameaçado,
camuflado.
livra-me, senhora,
da fome, da peste e da guerra,
e do inimigo da minha terra
que me manda para tão longe.

lisboa e as suas sete colinas
perdem-se na linha de água.
pus o combate do possível
na minha agenda
de expedicionário da guiné.
pus o fio com a medalha de ouro
ao peito.
que me deu a namorada,
coitada.
não, não uso a cruz. o crucifixo.
não vou para a guerra santa,
senhor capelão.
alguém há-de rezar por mim
para que eu volte
são e salvo.
do regulamento é apenas
a chapa de zinco
com o número mecanográfico
13151468
e o picotado ao meio.
para mais facilmente ser cortada
em duas partes
que seguirão caminhos distintos
tudo isto face ao risco,
bem real e concreto,
de eu morrer longe.
bem longe
para lá do mar
em terra que não me viu nascer.

descansa, camarada,
alguém fará o teu espólio.
cerrará os teus dentes,
fechará os teus olhos
e engraxará as tuas botas.
se não morreres de morte súbita.

levarei comigo a pedra-chave
que me liga ao além.
uma chapa de zinco,
picotada ao meio.
outrora era de xisto ou de grés,
entre os meus antepassados
da pré-história recente.

camaradas
(que colegas é só nas putas):
se eu morrer, que me enterrem
numa anta do meu megalítico país.

luís graça
lisboa/ niassa, maio de 1969 / lisboa, tejo e tudo, fevereiro de 2006

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