domingo, 25 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1548: As cartas do nosso (des)contentamento (A. Teixeira-Pinto / Luís Graça)

Guiné > Bissau > Postal da época. Estátua de Teixeira Pinto. Foto: © João Varanda (2005). Direitos reservados.

 
1. Do Prof Doutor A. Teixeira-Pinto, da UTAD - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, recebi a seguinte mensagem (creio tratar-se do Prof. Doutor Amândio Teixeira-Pinto, do Departamento de Engenharias da UTAD, Vila Real). Os negritos são da responsabilidade do editor do blogue: 

 Caro Colega: Vi a Carta da Região de Teixeira Pinto (agora Cachungo) na Guiné, que considero um excelente documento. Já não posso concordar com a preocupação que espelha em não ofender os guinéus, como se a publicação de uma carta ou a divulgação da nossa História e de antepassados (de que pessoalmente me orgulho) pudessem ser ofensivos para quem quer que seja (1). 

 A divulgação é feita em Portugal, não na Guiné, e parece-me perfeitamente descabida essa referência de "que não pretende por em causa a independência ou soberania do povo irmão da Guiné". Desta feita jamais poderíamos falar no nosso passado por esse Mundo fora, sem ter de pedir desculpa de lá termos estado. É perfeitamente lamentável e indesculpável esse tipo de atitude. Não precisamos de fazer qualquer exorcismo para nos redimirmos do passado. Quer queiramos quer não, ele pertence-nos com defeitos e virtudes, não o podemos renegar. Não conheço outro País onde se ande permanentemente a pedir desculpa do que fomos e dos pretensos males que fizemos no passado

Como investigador de História, como creio que é, basta lembrar o quase extermínio dos índios americanos, a questão dos aborígenes na Austrália e dos maoris na Nova Zelândia, o tratamento miserável que os árabes ainda hoje dão aos negros, as guerras fratricidas selváticas entre tutsis e hutus, os problemas do Darfur, entre tantas e tantas outras situações. 

 Muito para além das opiniões em que todos nós, Portugueses, somos tão pródigos, fala a realidade da herança cultural e humana que deixámos por onde andámos: os testemunhos que colhi em Malaca, em Goa e em Damão, no Uruguai ou em Timor, são suficientes. O que os outros dizem de nós (a gente simples sobretudo) é que conta. Não o que tristemente denegrimos na nossa alma. 

 Atentamente A.Teixeira-Pinto, professor universitário 

  2. Comentário do editor blogue: 

 Caro professor e colega A. Teixeira-Pinto: Não sou, como sugere, historiógrafo nem historiador. Profissionalmente, sou docente universitário (ENSP/UNL), na área da sociologia e saúde pública. Sem ter na minha árvore genealógica antepassados recentes tão ilustres e valorosos como o Capitão Teixeira Pinto (2), sinto-me tão português, nem pior nem melhor, como qualquer outro. 

 Tenho também para com os guineenses uma atitude de respeito, de apreço e de amizade. Passei quase dois anos da minha juventude na terra deles, numa guerra conduzida por uma elite (portuguesa) cuja legitimidade contestava. Mas isso, para o caso, não importa. 

Queria apenas frisar que não faço questão de mostrar nenhuma atitude de falsa superioridade nem de complexada inferioridade em relação aos nossos amigos da Guiné-Bissau, que falam a mesma língua do que eu... (E esse é um dos traços de união que nos aproxima, a par da história, dos bons e maus momentos do nosso convívio histórico). 

 Sobre o pomo da discórdia em relação às cartas da Guiné: é preciso, no entanto, contextualizar a divulgação do documento a que você faz referência, e que aplaude, a carta de Teixeira Pinto (h0je, Canchungo). 

Transcrevo abaixo o teor da nota que acompanha a divulgação, na Net, das cartas da Guiné, que eu próprio reconheci serem uma obra-prima da nossa cartografia militar (3). É bom dizer, urbi et orbi, que essas cartas foram usadas por nós, soldados portugueses, durante a guerra colonial (ou do Ultramar, como queira) para fins militares. O inimigo de ontem (os nacionalistas do PAIGC) sabe-o bem. É natural que da parte dos guineenses - não gosto do termo guinéu, quiçá um pouco arcaico e paternalista, muito usado por Spínola - possa haver ainda alguma susceptibilidade quando confrontados com a divulgação dessas velhas cartas na Internet. Pelo menos, por parte da geração dos guineenses que, com brio e coragem, nos combateram de armas na mão... 

 Há uma dúzia de anos atrás foi exigida, ao meu camarada e amigo Humberto Reis, uma autorização escrita (!) da Embaixada da Guiné-Bissau para poder adquirir a totalidade das cartas da Guiné... portuguesa. Ele nunca quis saber porquê, mas a verdade é que sem isso o Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, em Lisboa não as vendia, ao meu amigo ou a qualquer outro português, em viagem de turismo ou de negócios à Guiné-Bissau. 

 Ao digitalizarmos essas cartas e ao pô-las, na Internet, ao dispor dos antigos combatentes da guerra da Guiné (portugueses e guineenses), eu e o Humberto estavamos apenas a afirmar o direito à memória que cada um de nós tem, indivíduos e povos. 

 Fiz questão de lembrar, para os mais distraídos, que a Guiné-Bissau é hoje um país independente. É, de resto, esse o sentido da expressão, usada por mim (e que o Prof. A. Teixeira Pinto não gostou): a divulgação da carta (geográfica) de Teixeira Pinto (hoje, Canchungo) bem como as demais cartas desenhadas pelos cartógrafos portugueses, durante os anos 50 e 60, não tinha outro propósito senão o de ajudar à reconstituição, reorganização e preservação da memória dos lugares e das experiências (humanas) dos ex-combatentes portugueses que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações nos mais diversos sítios da Guiné até desde os anos 60 até à independência. 

 Para um melhor entendimento da atitude e dos valores que nós defendemos aqui, neste blogue colectivo, convido o Prof. Teixeira-Pinto a ter a gentileza de nos ler com tempo e vagar - refiro-me à tertúlia dos amigos e camaradas da Guiné (3).

Saudações académicas
____________ 

 Notas de L.G.: 

 (1) Vd. nota que acompanha a divulgação da Carta da Região de Teixeira Pinto (agora Cachungo): 

  Quando voltou à Guiné-Bissau, em 1996, em viagem de negócios (mas também em romagem de saudade), o Eng. Humberto Reis (ex-furriel miliciano da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) já tinha adquirido as 72 cartas da antiga província portuguesa, à escala de 1/50.000. 'Em Dezembro de 94 já me custaram 450$00 cada uma'. O mapa geral custou 600$00. 

Para os eventuais interessados, essas cartas podem ser adquiridas no Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, em Lisboa. Algumas cartas podem já estar esgotadas. Na altura foi exigida ao Eng. Humberto Reis uma declaração da embaixada da República da Guiné-Bissau, a qual se transcreve, como simples curiosidade, com data de 29 de Dezembro de 1994: 

'A Embaixada da República da Guiné-Bissau em Portugal declara, para os devidos efeitos que está o sr. Eng. Humberto Simões dos Reis autorizado a adquirir cartas geográficas da Guiné-Bissau. Para que não haja nenhum impedimento a tal objectivo, se passou a presente declaração que vai ser
 assinada e autenticada com o carimbo a óleo em uso nesta Missão Diplomática'. Presumimos que esta exigência de autorização da embaixada da Guiné-Bissau para um turista levar consigo cartas geográficas do país seja ditada (ou fosse ditada na época) por razões de 'segurança de Estado'. 

A divulgação desta carta de Teixeira Pinto (actualmente, Canchungo) de modo algum pretende pôr em risco a independência e a soberania do país irmão. Nem muito menos pode ser interpretada como uma provocação. Também não tem quaisquer propósitos comerciais ou outros, de índole lucrativa. Pretende-se apenas prestar um serviço útil aos ex-combatentes da guerra colonial, e nomeadamente aos membros da nossa tertúlia e a todos os demais amigos do povo guineense. 

Esta carta, apesar de algumas lacunas (tem já meio século), é fundamental para a reconstituição da memória dos lugares e a reorganização das memórias dos ex-combatentes portugueses que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações no chão manjaco. Fica também aqui a nossa homenagem aos valorosos cartógrafos militares portugueses. 

Esta e outras cartas da Guiné resultam do levantamento efectuado em 1953 pela missão geo-hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do N. H. Mandovi. A fotografia aérea é da aviação naval (Março de 1953). Restituição dos Serviços Cartográficos do Exército. Fotolitografia e impressão: Lit Barrault, s/d. A edição é da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, do antigo Ministério do Ultramar, s/d. Digitalização efectuada na Rank Xerox (2006). 

(2) Sobre a figura do Cap Teixeira Pinto e a sua campanha de pacificação da Guiné, vd. post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos) Consultar também: Carlos Bessa - Guiné. Das feitorias isoladas ao 'enclave' unificado. In: Manuel Themudo Baraa e Nuno Severiano Teixeira, ed. lit - Nova Históira Militar de Portugal. Vol. 3. S/l: Círculo de Leitores. 2004. 257-270. João Teixeira Pinto - A ocupação militar da Guiné. Lisboa: Agência Geral das Colónias. 1936. 


  (...) A termos uma bandeira, será sempre a nossa, a da nossa Pátria (Portugal ou Guiné-Bissau) que cada de um nós amava e ama, à sua maneira. O nosso comportamento, agora como… tertulianos, deve apenas pautar-se por critérios éticos ou valores tais como: 

 (i) respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem); 

 (ii) manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos, saudavelmente, uns dos outros; 

 (iii) consagração do blogue (Luís Graça & Camaradas da Guiné > Blogue-fora-nada, 1ª série, até Maio de 2005; Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2ª série, a partir de Junho de 2005) como ágora ou como praça pública para a manifestação (aberta, franca, assertiva, leal, serena) dos nossas eventuais críticas e divergências de pontos de vista (se houver roupa suja, discute-se primeiro na caserna...); 

 (iv) socialização/partilha da informação e do conhecimento sobre a história da guerra colonial/guerra de libertação da Guiné; 

 (v) carinho e amizade pelo povo da Guiné (que ganhou a guerra mas não ainda a paz) (e vice-versa: idem, pelo povo português, que não se confundia com o regime político de então, como sempre fez questão de lembrar Amílcar Cabral); 

 (vi) respeito pelo inimigo de ontem (que, sempre o disse, nunca lutou contra o povo português, mas contra um regime político); 

 (vii) recusa da auto-culpabilização e da responsabilidade colectiva: nenhum povo pode ser culpado, em termos colectivos, pelas decisões e acções da sua elite dirigente, dos seus políticos, do seu Estado; 

 (viii) não-intromissão na vida política interna da República da Guiné-Bissau, salvaguardado sempre o direito de opinião de cada um de nós, como cidadãos (portugueses, europeus, globais...); 

 (ix) respeito acima de tudo pela verdade dos factos; (x) liberdade de pensamento e de expressão... Entre nós não há dogmas nem tabus... (xi) e, por fim, mas não menos importante, respeito pela propriedade intelectual, pelos direitos de autor...

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