Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 9 de dezembro de 2007
Guiné 63/74 - P2337: Humor de caserna (4): Cancioneiro do Niassa: O Turra das Minas (Luís Graça)
Guiné > Região do Oio > Mansabá > CART 2732 ( 1970/72) > Estrada (asfaltada) Mansabá-Farim > O Carlos Vinhal e o Sousa à sua esquerda, segurando uma mina anticarro detectada a tempo e levantada.
Foto: © Carlos Vinhal (2006). Direitos reservados.
Texto do editor L.G., a pretexto do post P2327, de 4 de Dezembro, sobre a guerrilha e as suas minas (1):
No final dos anos sessenta, no norte de Moçambique, na região do Niassa, os soldados portuguesas entoavam fados, baladas e outras canções que relatavam as alegrias e as tristezas do seu quotidiano de guerra.
O registo era, umas vezes, de bravata, de brincadeira e de paródia, e outras vezes mais triste, saudosista e intimista... Era uma forma de exorcizar os fantasmas do medo, da morte, da solidão, de lidar com a angústia dos ataques aos aquartelamentos, das emboscadas no mato e nas picadas, e das minas nos trilhos, de lidar com o stresse, de manter viva a ligação com a sua terra natal (que ficava, física e simbolicamente, a muitos milhares de quilómetros de distância), de reforçar o seu espírito de corpo como combatentes e até, de certo modo, de humanizar uma guerra, desgastante e cruel, que não parecia ter uma solução militar à vista.
Nalgumas das letras dessas músicas (escritas por milicianos, com formação universitária, ou por alguns militares mais politizados, ou simplesmente com jeito para versejar), podia-se inclusive descortinar sinais, mais implícitos do que explícitos, de contestação e até de resistência, sinais esses que tinham um efeito perverso, introduziam o famigerado espírito dissolvente, denunciado pelos arautos do regime político não-democrático, então dominante, acabando por, de algum modo, minar o moral das tropas e a vontade de combater.
O mesmo se passava, de resto, noutras frentes de guerra, como a Guiné, como todos nós, camaradas da Tabanca Grande, podemos testemunhar pela nossa própria experiência pessoal: as longas noites da Guiné eram passadas, muitas vezes, entre muitos copos de uísque, cerveja, intermináveis jogos de lerpa e longas sessões de fados, baladas e outras canções (com o Manuel Freire à cabeça, seguido do Zeca Afonso, do Adriano Correia de Oliveira, dos Beatles, do Bob Dylan, do Donovan e de tantos outros...):
"Eles não sabem nem sonham / Que o sonho comanda a vida...", era uma das nossas preferidas,no meu tempo de Bambadinca (1969/71), sendo cantada e acompanhada à viola com um misto de saudades da nossa terra e de rebeldia contra o aparelho político-militar (Eles eram os chefes, os oficiais superiores do batalhão, o comando-chefe, o Estado Maior do Exército, e por aí fora até ao poder político, protagonizado pela parelha Caetano e Tomás).
Vários poetas e versejadores, de maior ou menor talento, pertencentes aos três ramos das forças armadas, contribuiram anonimamente para aquilo a que depois se veio a chamar o Cancioneiro do Niassa. As letras eram acompanhadas por melodias em voga na época, incluindo tangos, fados, baladas. tradicionais ou não, ainda hoje facilmente reconhecíveis (por ex., A Casa da Marquinhas, de Alfredo Marceneiro, ou a Júlia Florista, da Amália). O seu interesse não é literário mas sim documental, socioantropológico.
Na Net, o meu primeiro contacto com as Canções do Niassa (2) foi através de duas páginas:
(i) uma, a Joraga, acrónimo de José Rabaça Gaspar, a mais antiga, a mais criativa, a mais pessoal, também a mais confusa... São uma série de páginas encavalitadas uns nas noutras, desde a página da família aos coros alentejanos... O início do sítio que é uma verdadeira rede... ilimitada, como diz o autor, um andarilho alentejano, remonta a 2002, se não me engano. Rabaça Gaspar foi Alf Mil Capelão, da CCS do BART 2838 (Moçambique, 1968/70). Mora hoje em Corroios.
Foi ele o primeiro a divulgar, na Net, o registo fonográfico das 13 primeiras Canções do Niassa, parte de uma gravação da Rádio Metangula, da Marinha (que tinha uma base naval, no Lago Niassa, justamente em Metangula). Essa gravação data de 1969, e a interpertação é de João Peneque, que seria um guarda-marinha (equivalente ao posto de Alferes, no Exército).
O Rabaça Gaspar diz que os ficheiros áudio foram obtidos a partir de uma cassete gravada em 1969, e graças ao apoio técnico de dois amigos, Manuel Aleixo e Manuel Cruz. Este primeiro lote de canções faz parte do Cancioneiro I. O autor prometeu - até agora, em vão - um Cancioneiro II e um Cancioneiro III.
Aqui vai a lista das 13 canções do Cancioneiro I (que podem ser ouvidas no sítio original, na voz de João Peneque). Segundo o Rabaça Gaspar, o Jorge [Pereira] Ferreira, Fur Mil, da CCS do BART 2838, seria o autor de quatro ou cinco letras:
1. Fado do Checa
Adapt. de “Rosa Enjeitada” – Fado
por Jorge Ferreira - BART 2838
2. O Turra das Minas
Adapt. de “Júlia Florista” - Max
por Jorge Ferreira - BART 2838
3. Adeus Metangula – Fado da Despedida
Adapt. de “Adeus Mouraria”
por Jorge Ferreira (?)
4. Fado das Partituras
5. Fado do Render da Guarda
6. Fado do Turra
Adapt. de “Fado Corrido”
por Jorge Ferreira
7.Hino do Lunho
Adapt. de “Vampiros” – Zeca Afonso
por Alferes Herculano de Carvalho (o Carvalho 100, da 1ª Companhia de Engenharia)
8 .Fado do Destacamento Veterano
9. Fado das Comparações
Adapt. de “Estranha Forma de Vida”
por Jorge Ferreira
10. Fado do Estado Maior
Adapt. de “São Caracóis” - Amália
11. Fado do Buldozer
12. A Júlia Golpista
Adapt. de “Júlia Florista” - Max
13. Fado a Metangula
(ii) outra fonte, por mim consultada em 2004, foi a excelente página do Jorge Santos, hoje membro da nossa tertúlia.
O Jorge fez também um trabalho excelente, notável, pioneiro, de recolha, preservação e divulgação desta documentação tão efémera mas tão importante para a sociologia histórica da guerra colonial, e onde se devem incluir o estudo das representações sociais do turra, o invisível e obíquo inimigo que combatíamos em Moçambique, Angola e Guiné. No total a recolha de Jorge Santos ultrapassa as 40 canções, disponíveis no seu site:
Página de Jorge Santos > Guerra Colonial > Canções do Niassa
Convirá lembrar que Jorge Santos faz parte dos primórdios da nossa Tabanca Grande: foi 1º Grumete Fuzileiro, pertencente à 4ª Companhia de Fuzileiros e esteve em Moçambique, na região do Niassa (Metangula e Cobué), entre Abril de 1968 e Janeiro de 1970.
Há ainda a referir a existência de uma edição discográfica das Canções do Niassa, que resultaram da colaboração do actor João Maria Pinto (que no início da década de 1970 fez, com um grupo de amigos, as primeiras gravações do Cancioneiro do Niassa, vendendo depois as cassetes piratas aos soldados recém chegados) e ao produtor Laurent Filipe: Canções proibidas: O Cancioneiro do Niassa. Lisboa: EMI - Valentim de Carvalho, Música, Lda. 1999. CD. 7243 5 20797 2 8.
Foram seleccionadas e gravadas 13 canções, cantadas pelo João Maria Pinto e seus convidados (entre outros, Carlos do Carmo, Rui Veloso, Paulo Carvalho, Janita Salomé, João Afonso). Aqui vai o alinhamento:
1. Ventos de Guerra - João Maria Pinto/Rui Veloso;
2. Taberna do Diabo - João Maria Pinto/Gouveia Ferreira;
3. Fado do Checa - Paulo de Carvalho;
4. O Turra das Minas - João Maria Pinto/Rui Veloso;
5. Erva Lá Na Picada - João Maria Pinto/Janita Salomé;
6. Luta p'la Vida - João Maria Pinto;
7. Neutel d'Abreu - João Maria Pinto/Mariana Abrunheiro;
8. Bocas Bocas - Lura, João Maria Pinto/Mingo Rangel;
9. Fado do Miliciano - Janita Salomé;
10. O Fado do desertor - Carlos do Carmo;
11. O fado do Antoninho - Teresa Tapadas;
12. Hino de Vila Cabral - Carlos Macedo/João Maria Pinto;
13. O Hino do Lunho - João Maria Pinto e outros (João Afonso, Ana Picoito, Tetvocal...).
Destas 13 canções, apenas se conheciam, em 1979 - segundo a informação do produtor do disco - os autores de duas: Gouveia Ferreira (Taberna do Diabo) e Carlos Macedo (Hino de Vila Cabral).
Como ilustração do post de 4 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2327: PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI Parte): Minas I (A. Marques Lopes), reproduzimos aqui a letra do Turra das Minas:
O Turra das Minas
O turra das minas,
Pequeno e traquinas,
Lá vai na picada
E a malta escondida,
Na mata batida
Monta a emboscada.
O turra passou,
A malta esperou,
Já toda estafada,
E a Berliet
Sempre foi estoirada.
Refrão
Ó turra das minas,
A tua vida agora
É pôr as marmitas
Pela estrada fora.
Oh turra das minas,
Tua arma soa
Por léguas e léguas,
Aqui no Niassa,
Onde a Guerra entoa [ecoa].
Há mortos e feridos
E os mais comidos
Somos sempre nós,
Vamos pelos ares,
Gritando por todos,
Até pelos avós.
Ó turra, bairrista,
Mas pouco fadista,
Já é tradição
Ser pára-quedista
Sem tirar o curso,
Ai isso é que não.
Refrão:
Oh turra das minas,
A tua vida agora... (3)
______________
Notas de L.G:
(1) Vd. nota de 4 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2327: PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI Parte): Minas I (A. Marques Lopes)
(2) Vd. post de 11 de Maio de 2004 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa
(3) Comentário:
Paródia do fado A Júlia Florista, uma das muitas criações de Amália. Segundo o sítio da Tuna Feminina do Instituto Superior Técnico, a letra é de Joaquim Pimenal e a música de Lionel Villar.
Recorde-se que a Berliet era uma das viaturas mais usadas no transporte de tropas: de origem francesa, eram montadas no Tramagal.
É interessante a analogia, óbvia, entre a mina A/C, e a marmita... Não sei se o termo fazia parte da gíria do pessoal, na época, ou se trata apenas de uma metáfora do poeta... Por outro lado, é curiosa a descrição, quase simpática, irónica, e até cúmplice, do turra, como se este fosse um velho compincha: Ó turra das minas, pequeno e traquinas (...); Ó turra, bairrista, mas pouco barrista (...). Enfim, uma cumplicidade ou uma duplicidade, própria dos combatentes, que vem introduzir na guerra brutal das minas, anticarro e antipessoais, uma nota de humanidade, de humor negro, de
Há outro sítio na Net onde se pode ouvir o Turra das Minas, uma das 13 Canções do Niassa que fazem parte da gravação, feita da Rádio Metangula, da Marinha, em 1969.
Letra e Música:
Fado do Checa
Fado do Turra das Minas
Fado da Despedida
Fado das Partituras
Fado do Render da Guarda
Fado do Turra
Hino do Lunho
Fado do Destacamento Veterano
Fado das Comparações
Fado do Estado Maior
Fado do Buldózer
Fado da Júlia Golpista
Fado a Metangula
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