Guiné > CCAÇ 1426 (1965/67) > Secção do Fur Mil Chapouto > "Militares que fizeram parte da escolta a Farim: da esquerda para a direita, em baixo, 1º Cabo Vitorino, 1º Cabo Enfermeiro Coimbra, 1º Cabo Alfredo, Soldados Costa e Guerreiro; em cima, eu, Fur Chapouto [, assinalado por um rectângulo a vermelho], soldados Matos, telegrafista, Cozinheiro Júlio, Paixão e Duarte... Faltam dois, o Leonel e o Valter" (FC).
Foto e legenda: © Fernando Chapouto Direitos reservados.
Texto de Fernando Chapouto, ex-Fur Mil, Op Esp, CCAÇ 1426 (Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, 1965/67). O Chapouto chegou, no Niassa, à Guiné em Agosto de 1965; em Outubro de 1965 foi para Camamudo; em Dezembro de 1965 foi destacado para Banjara; em meados de 1966 foi destacado para Geba; em Março de 1967 foi colocado em Cantacunda; e, por fim, em Maio de 1967 regressou à metrópole no Uíge. Recebeu uma cruz de guerra (1).
Passados uns dias [ da chegada à Guiné], entra o Fur Chapouto na baila numa missão muito delicada: fazer escolta a um barquito com dois batelões, carregados de géneros para as tropas estacionadas na zona de Farim. Lá fomos, a minha secção com um enfermeiro, cozinheiro, radiotelegrafista, o barco a dez à hora, mesmo na praia mar. Na baixa-mar, o barco parava. Entrámos no rio Cacheu, começaram a surgir os problemas: o rádio não funcionava talvez por falta de experiência, os alimentos todos estragados, com arroz cheio de bicho, feijão idem, azeite e algumas conservas e chouriços que tivemos que começar a racionar, pois ainda faltavam muitos dias e as rações de combate não dariam para todo o tempo.
Chegámos a Cacheu pedimos pão que nos foi fornecido em quantidade, aí conseguimos contactar com Bissau, que estava tudo a correr bem excepto a alimentação. A resposta foi que nos desenrascássemos, pois nada havia a fazer... E lá fomos ao som das marés até São Vicente, acompanhados de perto por uma lancha da marinha que ia e vinha, sempre com o barco à vista. Aí estivemos dia e meio à espera do barco patrulha. Para matar o tempo, pescávamos, e até se apanhou um tubarão ou da família, mas pequeno, deu para uma ou duas refeições.
Aí o comandante do patrulha alertou-me para o perigo que íamos enfrentar. Lá fomos atrás dele, ele ia para cima e para baixo tudo de noite, até que o inesperado aconteceu: eu estava a passar pelas brasas, de repente ouvi umas rajadas, pus a G3 em posição, mas nada mais... Chegou um dos meus cabos:
- Furriel, que está aí a fazer ? Temos um ferido!
- Mas eles já se calaram - ia dizendo eu.
- Não são terroristas, foi o preto que ficou-se a dormir e o barco meteu-se pelo arvoredo dentro, partindo-se.
- Pareciam rajadas, temos um ferido ?... Como se feriu o soldado ?
- A roldana do mastro ao embater nas árvores soltou-se e caiu-lhe em cima da perna e partiu-a.
Este soldado não pertencia à minha secção, ia para Farim para mais uma comissão como voluntário.
Tirei o preto do leme e pus lá o meu cabo, que era de Portimão e tinha carta de barcos. Lá continuámos até Binta onde deixámos o ferido e continuámos até Farim onde chegámos ao meio da manhã.
Depois de cumpridas todas as formalidades, fui ter com o Sargento dia que era um Furriel do meu curso, para nos dar uma refeição, contando-lhe a história. Por ele não havia entraves, mas o Oficial de dia só pôs problemas. Disse-lhe se era preciso pôr o problema ao comandante do batalhão, que eu ia ter com ele. Enfim, lá se ultrapassou o problema, mas andei nisto mais de uma hora.Comemos os restos do tradicional prato da tropa, feijão com chouriço, ninguém disse Feijão, venha ele - como diziam na Metrópole...
Por sorte nossa, Farim tinha sido atacada na manhã anterior com morteiradas e bazucadas, estava a coisa preparada para nós, mas como nos atrasámos um dia por causa da lancha patrulha, safámo-nos.
Lá empreendemos nós o regresso, parámos em Binta para carregar os batelões de madeira, foi rápido, pois a maré não esperava...
O regresso foi mais rápido e sem problemas até à entrada da barra. Ai apanhámos uma grande tempestade, pois estávamos na época das chuvas, uma grande trovoada, ondas com muita altura... O preto desamarrou os batelões que ficaram à deriva e o barquito onde fiquei com mais dois ou três soldados e a tripulação que era preta. Pensei:
- Não morro com um tiro, mas morro afogado...
Apesar de saber nadar, pensei que era o fim, os pretos rezavam, pareceu-me uma eternidade, com o clarão dos relâmpagos via o lamaçal na margem...Como é que nos safamos se o barco se volta ? Lá ficaremos atolados...
O pesadelo só terminou quando a tempestade passou, isto tudo de noite. Começou a romper o dia, agora a tarefa era ir atrelar os batelões que ficaram à deriva, um distante do outro... Os pretos lá os amarraram e lá fomos até ao cais de Bissau. Comuniquei a chegada ao comandante de companhia, as viaturas chegaram rapidamente, lá carregámos os restos nas viaturas, e ala que são horas e que a fome aperta... Toca a tomar banho, mudar de roupa que o perfume era óptimo! Pudera, doze dias com banho de balde e chuva e fome.
Conclusão: comecei a perceber o que se me ia deparar pela frente, pois isto só ainda era o começo de uns longos meses.
Fernando Chapouto
Fur Mil Inf op Esp
CCAÇ 1426
Guiné 65/67
_________
Notas dos editores:
(1) Vd. outros posts do Fernando Chapouto:
17 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2357: O meu Natal no mato (3): Banjara, 1965 e 1966: um sítio aonde não chegavam as senhoras do MNF (Fernando Chapouto)
20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1450: Operação Jóia ou o dia mais trágico da minha comissão (Fernando Chapouto)
1 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1233: O meu cantinho na Net (Fernando Chapouto, CCAÇ 1426, Geba, Banjara, Camamudo, Cantacunda, 1965/67)
30 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXIX: Recordando Geba, Banjara, Camamudo, Cantacunda, Bafatá (CCAÇ 1426) (Fernando Chapouto / A. Marques Lopes)
(2) Pelo que conheço do Fernando (já nos encontrámos três ou quatro vezes), o termo preto aqui utilizado não tem qualquer conotação racista, é apenas linguagem de caserna...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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