terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2398: Evocando os furriéis da 1ª CCA, João Uloma e Carlos França : Acreditas que ainda sonho com aquela cabeça ? (Jorge Cabral)

1. No dia 1 de Dezembro último, escrevi ao Jorge Cabral, que era o régulo de Fá Mandinga, quando a 1ª Companhia de Comandos Africanos se instalou, naquela localidade da Zona Leste (Sector L1, Bambadinca), aquando da sua formação. Recorde-se que o Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71, e é autor da série Estórias Cabralianas.


Jorge: Como vais tu, querido amigo ?

Precisava que me identificasses o médico, periquito, que chegou à tua tabanca, Fá, com destino à 1ª Companhia de Comandos Africanos (CCA), em finais de 1969 ou princípios de 1970 (mais provavelmente, 1º trimestre de 1970) (1)... Eu estava lá, nessa noite, com o Capitão instrutor, o teu amigo Latérguy (que morreu há tempos) (2), quando ele chegou... Fizeram-lhe uma recepção à maneira, à comando, com fogo real, para o acagaçar... Estavas lá nessa noite ? Já não me lembro....

Julgo que era o Carlos França, médico, hoje especilialista em cuidados intensivos (pelo menos, vejo o seu nome associado a: Hospital de Santa Maria, Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, Revista Portuguesa de Medicina Intensiva )...

Em 10/4/1981, saiu no semanário O Jornal um artigo - no dossiê "Memória da Guerra Colonial" (em que eu colaborei muito, com o saudoso Afonso Praça, da redação do jornal, inclusive deixei com ele muita documentação, que hoje gostaria de recuperar...) – sob o título "Arame farpado em tempo de massacre". Era assinado por Carlos França, que residia então em Oeiras...

Será o mesmo, o médico ?... Faz referências detalhadas ao Furriel felupe, Uloma, e à suas colecção de 32 cabeças.... Deves ter lido o artigo... Recordo-me de termos falado sobre isto na altura... Tu tentaste-me explicar o inexplicável, que era o comportamento do comando felupe Uloma, teu amigo... Sei que discutimos isso à luz do relativismo cultural e das cumplicidades tácitas da hierarquia de um exército de um país da NATO, civilizado... Foi então que retomámos os nossos contactos. Não nos víamos desde a Guiné.

Eis um excerto do citado artigo do Carlos França:

(...) Havíamos de sonhar, em longas noites de hospital, com tudo aquilo. Era barulho em náusea, com cheiro a 'Petidina' e pensos gangrenados, entre duas anestesias de ocasião.

Quanta insónia e, meu Deus, que tempo perdido, e que arrepio ao ver ainda o felupe 'Uloma', uma montanha de carne, automatizado no 'ronco' de matar, contar as cabeças inimigas do PAIGC.

Fazia colecção e era o seu 'curriculum' de guerrilheiro. Trinta e duas, conteu eu, expostas como troféus de guerra, circuito obrigatório, quase turístico de todos os militares que por lá passavam (...).



Um cabo da CCAÇ 12, o Encarnação, o nosso fotógrafo de serviço, tirou fotografias do Uloma com uma das suas cabeças, acabadas de cortar, numa operação a norte do Rio Geba, se não me engano... Terá sido numa das primeiras saídas da 1ª Companhia de Comandos Africanos, ainda no tempo do BCAÇ 2852...

Isto passou-se na parada de Bambadinca, fomos todos testemunhas (incrédulos mas passivos) da chegada do herói... Dizia-se, na altura, que a cabeça era de um pobre camponês que, em zona controlada pelo PAIGC, cultivava pacificamente a sua bolanha... As fotos (e os negativos) desapareceram, rapidamente, por ordem do comando de Bambadinca, que ficou extremamente nervoso com o insólito da situação...

Em resumo: Lembras-te do Carlos França ? Deve ser o mesmo da medicina intensiva, não ?... Vou tentar contactá-lo, a partir do Hospital de Santa Maria e da SPCI... Já agora, vou perguntar também aos nossos médicos do blogue, o Amaral Bernado e o Mário Bravo (... que são do Porto) se o conhecem ou conheceram... O Beja Santos não sei se já o apanhou... em Bambadinca... Talvez.

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Susana > 8 de Julho de 2007 > Antigo aquartelamento das NT > A espada felupe estilizada, onde se encontrava o mastro da bandeira (portuguesa).

Foto: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2007)

2. Resposta do Jorge Cabral, em 3 de Dezembro último:

Querido Amigo,

Estive efectivamente na guerreira recepção do Médico Periquito, que ocorreu em Março de 70, tendo sido eu aliás, um dos mais entusiasmados. Era segundo creio, o Dr. Vasconcelos, homem de esquerda, que me tratou várias vezes e me salvou quando jejuei trinta dias, a conselho do meu assessor feiticeiro, o Nanque (3). Tenho quase a certeza, que ele também foi a Conacri [, no âmbito da Op Mar Verde, sob o comando de Alpoím Galvão]. A fotografia do Uloma (4), com a cabeça, foi tirada no Cais de Bambadinca, tendo tido um exemplar, que ofereci ao Padre Puim.

É das imagens que ainda não consegui esquecer. Naquela tarde, eu estivera com o Major Leal de Almeida [, supervisor da 1ª CCA,], em Bambadinca, a beber uns copos, antes de ir esperar os Comandos, à bolanha do Finete. E foi aí, que deparei com a cena. Primeiro olhei, e não acreditei.
- Quanto mortos fizeram ? - perguntou o Leal de Almeida.
- Dois confirmados - respondeu o Saiegh (6).
- E um confirmadíssimo! - retorquiu o Major.

O Uloma levou a cabeça para Fá, o que causou quase uma sublevação dos meus soldados que, nessa noite, se recusaram a dormir no quartel. Claro que conheci muito bem o cortador de cabeças, o qual de vez em quando era acometido por crises nervosas. Para o acalmar, matava-se uma galinha, derramando o sangue, sobre a sua cabeça.

Quanto ao mencionado França que escreveu no O Jornal, sempre o identifiquei com o furriel do mesmo nome, com quem convivi em Fá. Pertencia à Companhia de Comandos Africanos.

Penso que ficcionou um pouco, ao falar das 32 cabeças. Só se o Uloma as tivesse na sua Tabanca. Segundo o próprio me contou, cortada a cabeça do inimigo, a mesma era colocada na bolanha, de molho, e só depois uma parte dos miolos era comida... Obviamente que esta cerimónia acontecia em chão Felupe (4).

Parece, Querido Amigo, que tenho material para muitas estórias cabralianas.

Grande Abraço
Jorge

P.S.: Acreditas que ainda sonho com aquela cabeça?...

________

Notas de L. G.:

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

(2) Barbosa Henriques, que foi instrutor da 1ª CCA:

Vd. posts de:

19 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1536: Morreu (1)... Barbosa Henriques, o ex-instrutor da 1ª Companhia de Comandos Africanos (Luís Graça / Jorge Cabral)

19 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1611: Evocando Barbosa Henriques em Guileje (Armindo Batata) bem como nos comandos e na PSP (Mário Relvas)

(3) Vd. post de 3 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P836: Estórias cabralianas (10): O soldado Nanque, meu assessor feiticeiro

(4) Vd. post de 1 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2397: Cusa di nos terra (12): Susana, chão felupe - Parte VII: O guerreiro João Uloma (Luís Fonseca)

Vd. posts desta série, da autoria do Luís Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73):

15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2052: Cusa di nos terra (5): Susana, Chão Felupe - Parte I (Luís Fonseca)

31 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2074: Cusa di nos terra (6): Susana, Chão Felupe - Parte II: Religião (Luís Fonseca)

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luís Fonseca)

16 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luís Fonseca)

6 de Outubro de 2007 >Guiné 63/74 - P2156: Cusa di nos terra (10): Susana, Chão Felupe - Parte V: Casamento (Luís Fonseca)

25 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2215: Cusa di nos terra (11): Suzana, Chão Felupe - Parte VI: Princípio e fim de vida (Luís Fonseca)

Sobre os felupes, vd. ainda a excelente página do nosso amigo e camarada Carlos Fortunato, que lidou com balantas e felupes, considerando semore estes superiores àqueles, como guerreiros: Guiné - Os Leões Negros > CCAÇ 13 > Bolama > Felupes(...)

(...) Adversários temíveis, os felupes possuem elevada estatura e grande robustez física. São referidos como praticantes do canibalismo no passado, são coleccionadores de cabeças dos seus inimigos que guardam ou entregam ao feiticeiro, e usam com extraordinária perícia arcos com setas envenenadas.

Embora se assegure que o canibalismo pertence ao passado, não era essa a opinião das restantes etnias, as quais referem igualmente que estes fazem os seus funerais à meia noite, pendurando caveiras nas copas das arvores, e dançando debaixo delas. O felupe é conhecido como pouco hospitaleiro para com as restantes etnias, pelo que existe da parte destas um misto de animosidade e desconhecimento.

Os felupes são igualmente grandes lutadores, fazendo da luta a sua paixão. Este desporto tão vulgarizado nesta etnia, prende-o, empolga-o, constituindo o mais desejado espectáculo (...).


(5) Ex-Alf Mil Capelão Puim, da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), vd. posts de:

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1925: O meu reencontro com o Arsénio Puim, ex-capelão do BART 2917 (David Guimarães)

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

(6) Zacarias Saiegh, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 52, ainda no tempo do Beja Santos, e depois Alferes, Tenente e Capitão da 1ª CCA. DE oriegm sírio-libanesa, já foi aqui evocado várias vezes, nomeadamente pelo Mário Beja Santos que com ele privou, em Missirá. Vd. posts de:

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)

(...) O Zacarias Saiegh [da 1ª Companhia de Comandos Africanos] foi meu amigo. Era um homem extraordinário, ele e outros que foram meus camaradas e foram fuzilados. Nunca os esqueço e não sei perdoar (...).

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

(...) Saiegh na véspera, depois do jantar, dera-me um sinal de cortesia levando-se ao seu abrigo para bebermos um uísque. Olhando à volta do seu ambiente privado, vi frascos que me lembraram aqueles que se encontram nos laboratórios de biologia. Vendo-me intrigado, sopesando as palavras mas atirando-as a frio, esclareceu-me:
- São restos dos meus despojos. Aproveito sobretudo orelhas.

Aclarei a voz e fui cortante:
- Saiegh, ainda nada sei desta guerra, mas asseguro-lhe que a partir de hoje não haverá despojos humanos, nem relíquias nem troféus. Não trago ódios nem os vou despertar. Recordo-lhe que esta disposição é irrevogável.

Os olhos de Saiegh cuspiram fogo, mas ele conteve a dimensão da chama. Com o tempo, virei a saber que este descendente de sírio-libaneses também se movia por razões raciais, independentemente dos seus interesses económicos têm sido profundamente afectados pela luta de guerrilhas. O nosso conflito estava armado, mas passados estes anos todos reconheço que ele me deu uma colaboração exemplar, apagando-se progressivamente do mando e da decisão militar. Irei chorar amargamente no dia em que soube do seu fuzilamento (...).


16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

(...) Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha? (...).

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2317: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (11): O fantasma de Infali Soncó

(...) Na Casa Gouveia[, em Bissau,] compro chá e vou ao mercado com a lista na mão para satisfazer os pedidos dos meus soldados. A partir de agora e até jantar com Saiegh ando a cheirar a especiarias. Durante a tarde, procuro encontrar o Botelho de Melo, o meu milagroso oftalmologista, para lhe dizer que espero partir amanhã logo após a consulta do dentista, mas escreverei logo que saiba quando vier a Bissau.

O encontro com o Saiegh é muito agradável, tão agradável que vamos a pé pela estrada de Santa Luzia, onde nos despedimos prometendo eu uma visita a Fá, dentro de semanas. Tal nunca veio a acontecer, estou a despedir-me do Saiegh pela última vez, guardo o seu sorriso e a sinceridade da sua estima, tudo me vem à lembrança no dia em que soube do seu fuzilamento, oito anos depois (...).
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