terça-feira, 20 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2862: Estórias cabralianas (36): Uma proposta indecente do nosso Alfero (Jorge Cabral)

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Nossa Tertúlia > Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > 17 de Maio de 2008 > III Encontro Nacional da Nossa Tertúlia > O apanhado do Alferes Cabral , à direita, com o seu inseparável cachimbo, em amena conversa com dois periquitos da CCAÇ 12: o António Manuel Sucena Rodrigues, que mora em Oliveira do Bairro, ex-Ful Mil Inf na CCAÇ 12, no período final da guerra (1972/74), tendo estado no Xime e regressado em Agosto; e o Victor Alves, de Santarém, que chegou à CCAÇ 12, em Fevereiro de 1971, para render o Jaime, o Fur Mil Vaguemestre... (Ainda conheceu, portanto, em Bambadinca, os pais-fundadores da CCAÇ 12, que vieram no Niassa, como CCAÇ 2590, em Maio de 1969, e a que se juntariam em Contuboel 100 recrutas africanos...).

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71, seguramente uma das figuras mais conhecidas, mais populares e mais queridas da nossa Tabanca Grande:
Caro Amigo,

Estás de Parabéns! Tu, o Mexia, o Vinhal, estamos todos nós.

Em cada Encontro, por magia, recuo quarenta anos, e volto a ser o apanhado Alferes Cabral. Diferentes, o muito que nos separa, desaparece e dá lugar ao tudo que nos une.

Como te prometi, envio mais uma 'estória' (1).

Abraço para ti

Abraço para todos

Jorge



2. Estórias cabralianas > Alferes cai em desgraça por via de Proposta Indecente
por Jorge Cabral

Quando ele chegou, o Pelotão era pluriétnico. Fulas, Mandingas, Manjacos, dois Bijagós, um Balanta e um Papel, conviviam sem grandes problemas. Um ano depois, porém, só existiam Fulas, sempre acompanhados das mulheres.

Na guerra desde o início, alguns que já haviam ultrapassado os quarenta anos, formavam um Comité de Homens Grandes, cujos conselhos eram acatados, inclusive pelo Alferes, que frequentemente os consultava. Cansados, só queriam calma e sossego. Poucas operações, uns óculos escuros, um rádio, arroz para o mês inteiro e algum dinheiro para a jogatana, e sentir-se-iam felizes.

Um Pelotão mesmo à medida do Alferes, sem qualquer vocação guerreira e que apenas ali estava… porque sim. Para eles o Cabral devia ser rico pois lhe pediam tudo e às horas mais despropositadas… Às vezes no meio da noite, era acordado, porque durante o dia chegara um vago parente que era preciso presentear…

Com infinita paciência lá ia aguentando. Já comprara oito pares de óculos escuros e cinco rádios para uso alternado, quando alguns soldados resolveram arranjar mais uma mulher, recorrendo mais uma vez aos seus préstimos. Impossível garantiu, mais mulheres custariam uma fortuna...

A não ser que se fizesse como com os óculos e os rádios. Uma mulher para três ou quatro… Recusada a proposta, o Alferes arriscou:
-E se fosse a meias comigo? Sou vosso Comandante e vosso Amigo. Mais oito meses, vou-me embora e elas serão só vossas.
Nem responderam. Retiraram-se, zangados.

Logo dois dias depois, vindo não sei de onde, um velho Marabu veio falar com o Alferes. Altivo, através do intérprete Sambaro, pregou-lhe um sermão. Uma valente piçada, pensou o Alferes.

Porra, não lhe bastavam as do Capitão, do Major, do Comandante, agora até de um Marabu!...

Claro que, dias depois, fez as pazes com os soldados, afiançando-lhes que estivera a brincar... Mas teria estado mesmo?


Jorge Cabral
_________
Nota de L.G.:

4 comentários:

história e arte disse...

Viva!

não resisto a mais uma vez meter a foice em seara alheia... uma estória destas merece pelo menos um comentário, ainda q seja de uma "outsider" como eu...
q estória tão curiosa!! Suponho q o Alferes em questão terá sofrido de excesso de cafrialização criando esta situação culturalmente chocante mas muito divertida!!

Luís Graça disse...

Querida amiga:

A seara também é tua e está mesmo a jeito de lhe meteres a foice. Outsider ? De que planeta é que vieste ? Em que tempo e sítio nasceste ? Há séculos que somos cafres, o que estamos "cafrealizados"... Donde pensas que vens ? No Séc. XVI, os nossos homens, os tetravós dos nossos tetravós, andavam embarcados, na aventura do ouro da Mina, da pimenta da Índia, do imaginário do mar sem fim... Abriam a autoestrada da globalização, eram os primeiros europeus a chegar ao longínquo oriente, depois de baterem, milha a milha, toda a costa de África... Eramos um milhão e meio... Quem cá ficou para cuidar das nossas mulheres e das nossas crianças e cultivar os nossos campos ? ... O preto da Guiné (Senegâmbia)... 15 % da população de Lisboa era de origem africana... A nossa 'pool' genética é também árabe, judia, africana... Também somos cafres, minha amiga!

Diz o dicionário:
(i) Cafre = indivíduo pertencente aos Cafres, povo banto da Cafraria, na África meridional, o qual vive sobretudo da agricultura e da caça e cuja designação tem origem da palavra árabe cafir, que significa «infiel»; por extensão, os africanos subsaharianos, os pretos...

(ii) Cafreal = relativo a negro africano...

(iii) cafrealização (não vem no dicionário) = tornar-se cafre, viver como um cafre, adoptar os usos e costumes dos cafres...

Na Guiné, durante a guerra colonial, vimos de tudo um pouco... Soldados, milicianos, oficiais do quadro "cafrealizaram-se"... Homens que "compraram" bajudas para poderem climatizar os seus pesadelos à noite... Ou simplesmente como "investimento", obrigando-as a prostituirem-se para os seus camaradas... Homens que se apaixonaram e tiveram belas estórias de amor com a "negrinha da Guiné"... Comerciantes brancos (poucos) que fizeram a sua vida em África, constituiram família (numerosa), mas que nunca nos mostraram a sua esposa, fula, mandinga, papel... que fazia um deliciosos chabéu de peixe ou carne, ou o famoso "frango à cafreal"... Conheci um em Bambadinca, cujo casa frequentei... Estava na Guiné desde os 17 anos, tinha um bando de filhos, não vi a cara da esposa, que era a cozinheira (não sei se tinha mais do que uma...).

A história do "nosso alfero" é também a nossa história, a metáfora de um povo que, para sobreviver, soube plasmar-se, adaptar-se, aculturar-se, "cafrealizar-se" (um termo pejorativo, usado pela elite ocidental para classificar "comportamentos regressivos" dos civilizados em África: o antropólogo, o missionário, o administrador, o soldado,. o comerciante...).

história e arte disse...

Viva!!

obrigado pela resposta e por toda a informação anexa, desconhecia a etimologia da palavra e o uso q dela fiz vejo agora q foi leviano. Peço desculpa não queria de maneira alguma dar um tom pejorativo ao meu comentário. Na verdade adorei a estória e se vos visito com frequencia é porque gosto de ler as vossas memórias, q me estão proximas porque tal como o Prof refere venho do vosso mesmo planeta!!
tenho consciencia q sou fruto de uma "pool" genética variada, sou de Bragança!!... q foi couto de homiziados e refugio de judeus e a minha estadia pelos bijagós permitiu-me acrescentar + esse código, portanto é sem qualquer juizo de valores q faço a leitura da cultura a q pertenço, aliás é com todo o orgulho q a assumo. Claro q ando às apalpadelas e não tenho ainda a clareza de perspectiva global q o Prof reflete e por isso lhe agradeço + uma vez

cumprimentos

Luís Graça disse...

Querida amiga Emília:

Só agora é que dei conta... que a autora do comentário anterior é a Emília Nogueira, editora do blogue História & Arte (http://historia-e-arte.blogspot.com)... E que já trocámos mails por causa do apoio a um projecto de museologia militar em Bragança. Bate certo ?

Emília, se calhar fui um pouco enfático ou até grosseiro. I' m sorry... Mas o meu comentário não era tanto para ti, como sobretudo para a generalidade dos jovens, das pessoas da tua geração, e até para os meus camaradas... Talvez por defeito de professor, gosto muito de ir à origem etimológica das palavras de modo a não usá-las em vão, ou levianamente... É que e estão carregadas de materialidade, de historicidade, de sentido social, ... São armas poderosas, e algumas letais. As palavras também matam, também ferem... É o caso de cafrealização que é altamente insultuosa para os africanos...

Agora, fico muito feliz por uma bela e culta transmontana se associar a estas blogarias da Guiné e da guerra colonial... Para já, obrigado pelo link. E ficas convidada a escrever mais vezes, e não só comentários de pé de página... Por que não sobre os Bijagós, que tu conheces ? Poucos de nós lá foram, no tempo da guerra. Boa sorte para o teu blogue e para os teus projectos. LG