quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3450: Blogoterapia (72): Comentário ao P3402 (Raúl Albino)

1. Mensagem do nosso camarada Raúl Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá, Olossato, 1968/70, com data de hoje:

Caros editores,
Por ser longo demais para ser incluido nos comentários directos, junto envio este texto de referência ao post em epígrafe, embora já um pouco tardio.
Um abraço a todos,
Raul Albino


Referência ao post P3402 do nosso tertuliano Jorge Picado (*)

Achei bastante interessante a descrição que ele faz dum certo período da sua comissão, com destaque para as corridas de bicicleta, organizadas naquela época num teatro de guerra.

Mas, mais importante que isso e que pode ter passado despercebido, foi a sua preocupação em nos descrever e transmitir o seu estado de espírito na altura, como o causador da ausência de recordações que deveriam estar presentes, mais que não fosse porque a situação de estar na Guiné era inédita, num ambiente de paisagem por vezes bela outras triste, selvagem ou agressiva, mas sempre única. Confessa-nos ele que não compreendia a razão de não ter na sua memória recordações de muitos desses momentos que deveriam ser inesquecíveis. São dele as seguintes palavras: “ … alheamento pelo que nos rodeia … ” , “ … olhando mas não vendo … ” , “… demonstração do estado de alma …”, entre outras mais.

Quando o corpo está presente, mas a mente entrou noutra dimensão

Creio que ele gostará de saber que não foi o único a sentir-se assim. Uns mais do que outros, penso que muitos passaram por isso, apesar de poucos o confessarem. Tenho uma grande compreensão por quem por tal passou, porque eu sou um dos fortemente afectados por esse estado de alma. Tal como o Jorge Picado, eu não me consigo recordar, por exemplo, da paisagem que percorri quando das deslocações da minha companhia para os vários locais para onde foi destacada. E a paisagem teria, por certo, passagens de enorme beleza em contraste com outras de forte devastação. O próprio contraste deveria encarregar-se de as gravar na minha memória. Mas não o fez …

Razões que eu suponho terem contribuído, no meu caso, para tal situação:

1 – Encontrava-me na Guiné em situação militar, fortemente contrariado. E esse estado de espírito, meus senhores, mesmo em situações profissionais, provoca reacções de auto defesa interna, difíceis de analisar. Era como se procurássemos minimizar as imagens do ambiente que nos rodeava e se possível ignorá-las. Como as colunas de transporte de tropas em deslocação, eram organizadas em viaturas, condutores e protecção por outros militares que não os que estavam em trânsito, recordo-me que me sentia mais como um passageiro em transporte público do que como um militar armado e pronto a responder a qualquer ataque.

Vai daí, toca a procurar um lugar confortável para a viagem, desligar o switch da tensão guerreira, confiar nos seus camaradas que protegiam a coluna e tentar dormitar um pouco até chegarmos à nova localização que ficaria à nossa responsabilidade. Era como o Jorge Picado dizia: - … olhando mas não vendo … - ou como eu costumo dizer: - o corpo estava presente, a mente não … -, essa vagueava como num sonho, por lugares mais aprazíveis ditados pela nossa imaginação.

À chegada ligávamos então novamente o switch e voltávamos a ser aquilo que verdadeiramente sempre fomos até ao fim da comissão: militares em missão de soberania.

Roubar tempo à comissão

2 – Fui fortemente influenciado por um comentário do médico do Batalhão que permaneceu durante algum tempo com a nossa companhia.

Um dia, durante um período de descontracção em grupo, alguém - vendo-o dirigir-se para o seu lugar de recolhimento para descansar - lhe pergunta de rompante:

- Aonde é que vais tão cedo?

Ao que ele responde prontamente:

- Vou roubar algum tempo à comissão.

Ficaram todos a olhar para ele, pensativamente, sem palavras. Cá por mim fitei-o silencioso e disse para comigo: - Grande tirada, hei-de seguir esta “directiva médica” até onde me for possível. Tirando o inconveniente do alheamento pontual, o descanso passou a ser uma prioridade para mim, com a vantagem de estar sempre fisicamente pronto para integrar as operações surpresa com que o nosso comandante nos presenteava, muitas delas a meio da noite.

Vendo a coisa como um baú de recordações

As recordações omissas, creio que funcionam como o baú. Elas estão lá todas, mas algumas ficaram tão fundo, tão fundo… Muitas delas nunca chegarão à superfície, talvez a maioria, mas outras, aos poucos, vêm chegando ao cimo. A escrita das nossas memórias, os convívios anuais das Unidades, as leituras das memórias dos nossos tertulianos, as viagens à Guiné para quem as tem feito e toda a sã troca de argumentos e informação através do blogue, contribuem para a recuperação de muito do que está no fundo do baú.

Abençoado blogue…
______________________

Notas de CV

(*) Vd. poste de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3402: Acção psicológica a funcionar... O Desporto em Chão Manjaco (Jorge Picado)

Vd. último poste da série de 6 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3413: Blogoterapia (71): O regresso voluntário à África da nossa juventude (José Teixeira)

4 comentários:

Anónimo disse...

Raul Albino

Sinto exactamente o mesmo. Hoje mesmo, regressando a casa e conduzindo, dei comigo a pensar em situações idênticas a essas, na Guiné.É como se fossem "ausências" em que me recordo praticamente só da partida e da chegada.
Alberto Branquinho

António Matos disse...

Caro Raul Albino, pois embora tivéssemos estado na Guiné em períodos contíguos, não foi aí que nos conhecemos mas sim profissionalmente quando nos cruzámos nos corredores da mesma empresa na Praça de Alvalade em Lisboa.
Eu também fui dos que olhou muito mas viu pouco lá por aquelas bandas africanas e tudo porque preferia "radiografar" o que se escondia atraz dum arbusto do que pôr-me de cabeça no ar à procura de paisagens ...
Só via interesse em duas coisas que andavam pelo ar : por bons motivos, o avião da TAP quando sobrevoava a nossa zona operacional após levantar voo para Lisboa ; pelos maus motivos, o voo dos abutres que prenunciavam morte.
Extra essas duas curiosidades, lembro-me de um fim de tarde ter visto um bando de morcegos dependurados de cabeça para baixo nos fios da electricidade a baterem uma sorna e, em várias outras ocasiões, ver as trajectórias das balas tracejantes que nos passavam por cima.
Não te vejo há um valente par de anos e, fazendo minhas as tuas palavras, "abençoado blogue" que tem permitido o re-encontro de velhos amigos.
Continua a escrever pois assim também concordo que consigamos abrir o tal baú das recordações e trazê-las cá para fora para que outros as compilem e escrevam a história que nós ajudamos a fazer.
Um abraço,
António Garcia de Matos

Anónimo disse...

Caro Camarada Raúl Albino
Acabo de ler as tuas palavras, são precisamente 0H25M25NOV e nem calculas o bem que me fizeram. Julgava que era único e que fosse da idade (são quase 72!, mas agora compreendo certas coisas. Aliás, logo de entrada no Blogue, expliquei que tinha tentado mentalizar-me parame transformar em Robot. Dizes que o facto de se estar contrariado pode induzir a mente a reagir desse modo. Se isso for verdade, terá sido essa a causa para os meus "apagões", pois eu não estava somente contrariado, estava revoltado...
Um grande abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Ola Amigos visitantes desta tabanca tao grande e onde a CC2402 tem um pequeno espaco. Espero que todos tenham passado umas Boas Festas de Natal, com muita familia, alegria e saude. E bom ver que o meu amigo Raul Albino tem tanta gente a ler estas coisas que todos nos por la vivemos. Eu sei que o segredo do Raul, para estar sempre em forma, era descansar o maximo. Ele gostava de ver, mas para dentro. Depois o calor ajudava. Eu, pelo contrario, so dormi dois dias seguidos, quando o furriel miliciano Machado, que era um acoreano, me drogou fortemente para resolver o meu paludismo. Aquele rapaz era tao "corisco", mas curava todos. Era tao bom, tao bom, que ate sabia mais que o medico da Companhia. Bem, eu ia dizer que nao tive essa sorte. Dormia pouco. Era uma questao diferente de vencer o tempo. Eu desde que cheguei a Guine em 1968, decidi ocupar as 24 horas do dia. Assim e para alem da supervisao do Rancho e cozinha, da messe de Oficiais e Sargentos e cozinha, do Armazem de generos, da horta, dos animais, da padaria, da Cantina do soldado e do Bar de Of e Sarg, ainda fazia trabalhos na secretaria, dei aulas da 1 e 2 classes a miudos locais, supervisava as duas bibliotecas, e ainda dava uns passeios pela tabanca a procura de qualquer pormenor estranho. As vezes da para ver e o meu amigo Furriel Lopes, o tipo da ferrugem, e eu encontramos uma crianca tao mal, que a levamos e a mae para o quartel de onde foi mais tarde evacuada para Bissau. Ah, e ainda fazia rondas, o que me permitia abastecer os militares que saiam cedo para operacoes, mas mais porque o Cap Vargas tinha um problema com os "confidenciais). Assim, cabia-me a mim ir acordar os oficiais e Sargentos, que depois acordavam os soldados. Era mesmo confidencial. Eu digo tudo isto, porque dormia pouco, e portanto tenho mil uma historias para contar. Eu decidi que ocupando o tempo, iria ser melhor. Mas nao quero, de forma alguma, dizer que todos os que pensaram em desligar o sistema todo por dois anos, fizeram mal.
Este Blogue tem-nos permitido a aproximacao entre todos nos.
Muito em especial para o Raul, eu quero adiantar mais um pouco sobre as mensagens de 1969 para a RTP. Quando nos foi comunicado que a RTP nos ia visitar para as gravacoes, o cmdt Vargas me chamou e me deu instrucoes para eu programar como iriam ser os locais e como iriam ser mostrados os militares e quem iria falar, ja que todos seria impossivel. Um dia eu mandarei as fotos que eu tenho deste episodio. No dia das gravacoes, ele decidiu tornar-se o "actor", e decidiu ignorar tudo o que tinha combinado comigo. Fiquei de tal modo perturbado que decidi rasgar tudo quanto era o programa pre-estabelecido e fui deitar-me para o meu quarto. Passados uma meia hora, batem a minha porta e quando abri, deparei com um Major de Bissau que me disse saber o que tinha acontecido, e porque achou ser injusto, me convidava a deixar a gravacao como eu entendesse, pois dava-me 5 minutos so para mim. Eu declinei educadamente, mas acho que nao gostou, pois a resposta foi simples." Nosso Furriel, e uma Ordem". Pronto, la fui eu. Se o Raul se lembra e onde eu e uns soldados e o miudo Godinho aparecemos a gravar a nossa mensagem de Natal, mesmo ao lado do presepio, que na altura estava feito junto a Enfermaria, no Olossato. Como podem ver, meus amigos, cada um de nos passou o tempo como entendeu, e felizmente, ainda estamos com saude para podermos falar destes episodios.
Eu adoro ler tudo o que por aqui escrevem. Apenas lamento que mais nao aparecam e deixem um ar da sua imaginacao. Os erros sao mesmos proprios, e para isso eu mesmo tenho esse defeito, nunca leio o que escrevo ate que ja saiu do meu monitor. Sabem, o Raul faz esse favor, e ja agora, com toda a justica, o Luis, o Carlos e o Virginio. Eu nao tenho acentos nem sinais, os ingleses sao muito simples!!! nao usam isso.
Sao 19.38 em Toronto, Canada, ou 02.38 em Lisboa. Voces ja estao a fazer o que faziam na guerra... a descansar, e eu ainda tenho que esperar. Estao a ver? Fiquem bem. Um grande abraco para todos.

Joao G Bonifacio
Ex-Fur Mil do SAM CC2402
Guine 1968/70