1. Mais uma crónica do Cherno Baldé, enviada em 31 de Julho último, com as memórias do seu tempo de menino e moço em Fajonquito (*):
Ambientes e ambiguidades > O meu amigo Julio e as brigas de futebol
por Cherno Baldé
O Júllio era um garoto muito estimado entre os colegas do grupo de Sambaro Djau, bem constituído, duro que nem um pau esculpido e ágil como um animal selvagem. No futebol de salão era o mestre no drible de frente a frente. O seu nome verdadeiro era Abibo. Ficámos amigos logo a seguir ao nosso primeiro duelo. Os bons adversários respeitam-se mutuamente, não é?...
Ele trabalhava na caserna de um dos pelotões da companhia, uma construção em betão armado enterrada alguns metros debaixo do solo e onde se alojavam mais de 20 homens e que estava situada nos confins do aquartelamento. Nós, que éramos crianças e naturais da terra, na altura, não sentíamos o efeito do calor, mas muitos anos depois, quando me recoradava daqueles homens brancos metidos naquele buraco, mal conseguia imaginar o tamanho do sacrifício a que estavam sujeitos.
Ele ficou a ser o Júlio e eu o Chico, nomes emprestados a dois técnicos africanos que tinham vindo a Fajonquito para efectuar a reparação de alguma avaria da rádio de transmissões do quartel. Desse dia para a frente passámos a constituir um duo infernal no futebol juvenil.
Para além da irreverência e alma de desportistas natos, unia-nos o gosto da aventura e a frequência do quartel o nosso palco de actuação predilecto. Ao contrário dos outros rapazes da mesma idade, tínhamos a particularidade de andar sempre de calções em saia, sem ligações entre as pernas, a violencia da prática de futebol e a vagabundagem constante não permitiam tanto aprumo e tambem éramos daqueles que raramente voltavam a casa para o habitual banho da tarde e a troca de roupas, a água lamacenta da bolanha para nós ja era suficiente mesmo se pareciamos mais com porcos de mato com a lama branca da bolanha a cobrir a maior parte do corpo e os olhos cor de tijolo.
Na altura toda a gente queria ser o Pelé ou o Eusébio, sobretudo este último que estava muito em voga. Mas nem tudo era assim tão simples, os mais fortes é que escolhiam primeiro, se o Sambaro era Eusébio, então tínhamos que contentar com outros nomes menos sonantes, o baixinho Simões, por exemplo, quem conhecia o Simões?..
Para nós tudo o que era afro era melhor, isto enchia-nos de orgulho contrabalançando assim um pouco a superioridade evidente dos brancos que, mesmo sendo nossos amigos não deixavam de ser diferentes de nós, na verdade, esta fronteira racial nunca deixou de existir e de se manifestar no comportamento dos actores em cena, verificando-se uma espécie de invasão ou interpenetração de comportamentos estranhos, a cultura e educação tradicional de parte a parte e em especial dentro das nossas moranças que a insolência e incontinência dos soldados no baixo do escalão da hierarquia militar, e não só, agudizavam cada dia mais.
Será que podia ser doutra forma?... Não se esqueçam, estamos no princípio dos anos 70 e já existe no ar uma certa africanizaçao dos espíritos e começa a apontar uma certa confrontação atiçada pelos desafios de futebol entre africanos (que ou são tropas auxiliares em preparação ou serviçais no quartel) contra soldados portugueses, que sempre terminavam em brigas, sem consequencias graves, de resto.
Nós ja tínhamos os nossos atletas preferidos entre os africanos, claro, mesmo se a vantagem era quase sempre do lado dos brancos mais fortes e exímios em jogadas rápidas e golpes traiçoeiros de bola parada. Quando havia briga, os brancos venciam na mesma. Não eram soldados preparados para a guerra?... Os africanos tomavam a sua desforra durante os bailes da noite, com ritmos de Angola e do Congo com a luz de vácuo meio apagada para apalpar, na escuridão, os corpos redondos e suados das bajudas nas coladeiras.
O mal estava feito e o fosso ganhava contornos de um racismo ainda primário e de um proto-nacionalismo africano. Na verdade, o que parecia ser, na nossa opinião, o início de um conflito entre raças nao era senão o confronto nascido da vontade de suplantar o outro, o estranho e usurpador que, na realidade, era considerado superior e logo dominador no exíguo espaço da aldeia que constituia o palco central do cenário dos actores envolvidos na peça.
Hoje, passados que foram os anos e depois de todas as verdades e inverdades â volta das independencias, as vitórias e as derrotas no palmarés dos clubes que uns e outros pertenceram, por vontade própria ou por força das circunstâncias (pondo de parte, só por alguns segundos, os ideais e a obra do Amílcar Cabral), ainda questiono-me se a essência da nossa "gloriosa luta de libertação nacional" não terá sido isso mesmo: A vontade de suplantar o outro, o dominador, e de ocupar o seu lugar mas no sentido de que tudo continue na mesma, apenas mudando a sua posição de baixo para cima, afastando para isso o outro, o estranho que o impedia de usufruir de privilégios e de ser o epicentro das atenções das imaculadas bajudas.
__________
Nota de L.G.:
(*) Vd. postes de:
2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4767: Blogoterapia (118): Os Fulas, o PAIGC e... os tugas (Cherno Baldé / Luís Graça)
27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
No fundo, a questão é: houve apenas uma substituição de elites dirigentes ?
Cherno,
Rendo-me a este post. Não te excedas Chico!
Um abraço
J.Dinis
Caro Cherno
Tenho continuado a ler com muito interesse os teus escritos e considero-os de extrema importância para quem quer reflectir e compreender melhor os tempos que viveu na Guiné.
No que diz respeito ao que hoje escreves, para além da história em si, as tuas reflexões, interrogações ou especulações da parte final, podem vir a revelar-se "perigosas" porque, a afirmarem-se, podem reduzir a um objectivo menor o que foi, ou devia ter sido, algo verdadeiramente superior, o desejo do direito à afirmação de independência, da condução dos próprios destinos.
Um abraço amigo
Hélder S.
CARO CHERNO,
CONTINUO À ESPERA QUE DIGAS O QUE NÃO SEI.
UM GRANDE ABRAÇO.
MANUEL MAIA
"A vontade de suplantar o outro, o dominador, e de ocupar o seu lugar mas no sentido de que tudo continue na mesma, apenas mudando a sua posição de baixo para cima, afastando para isso o outro, o estranho que o impedia de usufruir de privilégios e de ser o epicentro das atenções das imaculadas bajudas."
A propósito do escrito acima, para Cherno Baldé, de quem estou a ler aqui, interessadíssimo, as suas crónicas, um trecho de um muito longo poema que acabei há dois dias e que se publicará como livro, julgo, em 2011. O poema intitula-se K3, onde em 1968 estive enterrado.
(...)Não fazemos história,
a História não regista
a sina dos anti-heróis
que pululam em toda a parte,
o mundo sublevado em armas,
o mundo velho que noutro se transforma,
mas a essência do mundo
não é tornar-se novo,
é afinar o modo de fazer
que o novo permaneça antigo,
anti-heróis
que não chegam a ser anti-heróis,
são uma chapa com número
no fio ao peito, à prova de fogo,
o corpo esturricado,
a medalha de Fátima, fundida,
mas não o número,
útil aos funerais anónimos
dos que «morreram pela pátria»,
dizia-se em Lisboa.(...)
Nuno Dempster
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